sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Por que Medellín é tão especial?

Por Silvia Colombo (Folha de S.Paulo, 02/12/2016)

Em seu mais famoso relato de não-ficção, “Notícias de Um Sequestro”, Gabriel García Márquez afirma que os “paisas” (habitantes da região de Antioquia, cuja capital é Medellín) combinavam de uma forma muito particular “a reza e a parranda” (parranda significa festa, de modo geral).

Aos brasileiros que se comoveram com a linda homenagem que o Atlético Nacional de Medellín fez aos jogadores do Chapecoense e às demais vítimas do acidente aéreo desta semana, os “paisas” deram mais uma prova de serem uma sociedade muito especial, dentro de um país que é nosso vizinho, mas que conhecemos tão pouco.

 Medellín é colombiana em sua essência, mas possui uma personalidade muito própria, marcada pela solidariedade, pela força dos laços familiares, pela fé, pela religiosidade extrema, e pelo gosto pela festa coletiva.

No livro mencionado, o costenho García Márquez observou os “paisas” quase como um estrangeiro. Gabo nunca viveu em Medellín. Conhecia bem as características dos caribenhos, pois nascera na região, antipatizava levemente com certa arrogância da elitista Bogotá, mas em Medellín se deparou com um desafio.

Como uma sociedade era capaz de produzir um contexto de extrema violência _que era, exatamente, a razão pela qual ele escrevia sobre ela, afinal, “Notícias” é um relato sobre uma série de crimes cometidos pelo Cartel de Medellín_ e ao mesmo tempo atravessar esses anos de forma tão compacta, tão forte, e com tanta união entre seus cidadãos?

A literatura mesmo oferece outras chaves. Uma obra de um antioquenho célebre, “El Olvido que Seremos”, de Hector Abad Faciolince, vai no centro da questão. Trata-se de um relato memorialista. O autor teve o pai assassinado por paramilitares quando ele pouco mais que um adolescente.

Já sabemos isso desde o começo, mas o livro tem uma força desde a primeira linha, porque Abad Faciolince o constrói para mostrar não como era a violência em Medellín, apesar de esta ser o pano de fundo o tempo todo, mas sim como era o círculo de amizades, afetos e familiares na Medellín em que ele cresceu, em tempos tão difíceis.

Apesar de a história terminar com uma tragédia, encerra-se também com uma mensagem de esperança. A de que a força está no outro, no apoio dos que te rodeiam, sejam eles de seu próprio sangue ou não.

Medellín carrega de modo sofrido esse rótulo de ter sido, por vários anos, uma das cidades mais violentas do planeta. Justamente durante os tempos da atuação do cartel liderado por Pablo Escobar. Não ajuda nada que tanto se celebre sua imagem como ícone cultural nos dias de hoje. Escobar precisa ser mostrado e entendido para jamais ser repetido. Não estampado em camisetas vendidas nas esquinas das grandes cidades como se fosse um ídolo nacional.

Mas o que vale ressaltar aqui é o que Medellín conquistou depois de 1993, ano em que o chefão do narcotráfico foi morto. Muitos apontam que a esperança surgiu com uma série de gestões de prefeitos e governadores progressistas, com uma visão de que mudanças urbanísticas poderiam transformar a sociedade.

De fato, a aposta, iniciada por Sergio Fajardo quando foi prefeito da cidade (2003-2007) foi correta. Mas não basta para explicar porque a cidade, de sangrenta e perigosa, se transformou em uma urbe moderna e generosa.

 Andar de “metrocable”, o sistema de teleféricos que une periferia e centro, poderia ter se transformado apenas numa facilidade para as pessoas que vivem no subúrbio chegarem mais rápido ao trabalho. Mas não, o “metrocable” virou também passeio de fim de semana. É ao mesmo tempo um modo de famílias de classe média levarem os filhos para conhecer as partes altas da cidade como um meio para que os habitantes das favelas tenham acesso mais rápido às ofertas de diversão do centro, entre elas o futebol.

Além das inovações nos transportes, houve também grande investimento na rede de museus e bibliotecas. Mas, novamente, elas de nada adiantariam se, como no caso do “metrocable”, não fossem abraçadas e incorporadas pela sociedade. Essas obras são concebidas para serem inclusivas e acessíveis, e assim foram recebidas.

Entre a costa alegre e festeira e a capital sofisticada e europeia, Medellín é uma Colômbia à parte. Uma sociedade também da montanha, com fama de trabalhadora e religiosa, e que aprendeu, ao longo de décadas de percalços, a ser solidária para atravessar junta períodos difíceis.

Já é hora de parar de associar Medellín ao perigo e à violência. E sim de celebrar Medellín por sua imensa generosidade, e por ser capaz de chorar mortos que não são os seus, de estender a mão ao outro que está sofrendo, mesmo que este seja um desconhecido. De unir “reza e parranda” também para consolar o próximo em um momento de terrível luto como o que assistimos nesta semana.

Foi bonita e emocionante a festa, Medellín. Gracias.

O jornalista é notícia? Xi, deu merda

Por Murillo Victorazzo

Nunca trabalhei com Guilherme Marques nem o conhecia de fato, a não ser de vista. Mas alguns amigos tiveram essa oportunidade, e diante de seus desabafos hoje, não poderia escolher outro para ainda expressar, após tamanha comoção nas redes sociais o dia inteiro, o meu misto de incredulidade e pesar (sim, hoje chorar não foi força de expressão). Não mais como um desses milhões de brasileiros loucos por futebol, perplexos com a triste ironia que o destino reservou ao Chapecoense, a, como estampou o diário esportivo espanhol "As", "linda menina" que "apaixonou o Brasil", após o feito histórico de semana passada. Sobre esse meu lado, me tornaria repetitivo. 

Aqui, agora, é o jornalista que fala mais alto, ainda me lembrando das palavras de Galvão Bueno no arrepiante encerramento da emocionante edição de hoje do JN: "Os jogadores sempre serão os protagonistas, mas é através dos jornalistas que essa paixão chega a vocês". Pois é, em um momento tão triste, paradoxalmente, por segundos, despertou em mim um sentimento bom, o do orgulho pela profissão. 

Guilherme, além de tudo, começou na imprensa carnavalesca. Salgueirense (na foto, com o mestre Marcão), amava o samba e agora estava no esporte. Quem me conhece não terá dificuldades de encontrar nele gostos comuns aos meus e entender por que, dentre tantas, sua morte me tocou tanto mais.

Que Deus te proteja onde agora estiver, garoto. É em seu nome, mas com os outros vinte no coração - impossível não bater palmas para Vitorino Chermont, um dos melhores repórteres esportivos do país -, que encho o peito pra dizer o quanto é bom poder chamá-los de "coleguinhas".

 A maior tragédia do futebol brasileiro ter vindo junto a maior do jornalismo deste país foi uma porrada forte demais. Porém, talvez faça sentido. Este dia 29/11 nos mostrou um outro lado, aquele com que ninguém gostaria de ter se deparado, de uma obviedade que até então só conseguia ver com satisfação: futebol e jornalismo são indissociáveis. 

Na faculdade, um professor gostava de repetir a máxima de que, se o jornalista é notícia, é porque deu alguma merda. Tenho certeza que ele não imaginava o tamanho e o sentido da merda de hoje. Que merda. (foto: página oficial do Salgueiro)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Para Irã, demonstrar força junto com abertura faz parte do plano

Por Thomas Erdbrink (New York Times/UOL, 27/10/2016)

Assim como opositores conservadores do acordo nuclear feito com o Irã avisaram, Teerã parece estar se movimentando agressivamente para expandir sua influência regional enquanto trabalha para conter os interesses americanos em todo o Oriente Médio.

No entanto, assim como os proponentes do acordo prometeram, o Irã também está se abrindo aos poucos, fechando contratos com empresas ocidentais, criando conexões de telefone com os Estados Unidos, aumentando a velocidade da internet, dando boas-vindas às hordas de turistas europeus e afrouxando algumas restrições sociais para seu próprio povo.

O que pareceria uma bizarra contradição é na verdade uma política de duas vias cuidadosamente pensada pelo líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, e pelo círculo de líderes ao seu redor.

Os generais iranianos estão conduzindo a guerra em solo na Síria. Consultores iranianos estão treinando milícias xiitas que lutam no Iraque e na Síria. Armas iranianas e outros tipos de apoio estão ajudando os rebeldes houthis no Iêmen.

Além de sancionar as pegadas militares mais agressivas do país na região, Khamenei tem feito regularmente discursos contra os Estados Unidos, prometendo que não haverá uma flexibilização na posição de Teerã contra o Grande Satã, ao mesmo tempo em que abre as portas para o capital e as técnicas do Ocidente.

No entanto, embora o presidente Hassan Rouhani enfrente ataques dos conservadores linha-dura, Khamenei quase sempre o protege, pelo menos não publicamente.

"Sim, é parte de nossa nova política mostrar nossa força, mas também tentar nos aproximarmos do Ocidente", diz Saeed Laylaz, um economista e analista político próximo do governo de Rouhani. "Ambos pretendem fortalecer nosso país e aumentar nossa influência. Contradição? Estamos fazendo exatamente o que os Estados Unidos têm feito há décadas."

Não há muita dúvida de que o Irã esteja exercendo um maior poder na região. Nos campos de batalha da Síria, consultores iranianos e "voluntários"—muitas vezes milícias afegãs e xiitas— estão lutando e morrendo ao lado de tropas do governo sírio para expulsar os rebeldes de Aleppo.

Perto de Mosul, no Iraque, as Forças de Mobilização Popular, outro nome para dezenas de milícias xiitas, estão se guiando por outros consultores, normalmente associados à força de elite Quds da Guarda Revolucionária.

Com a região em meio a tanta turbulência, esse pode parecer um momento inoportuno para flexibilizar as restrições em acordos de negócios com o Ocidente e nas liberdades pessoais em casa. Mas é exatamente isso que parece estar acontecendo. As mudanças estão vindo aos poucos e podem ser revertidas a qualquer momento, mas elas são inegáveis, dizem os analistas.

A mudança mais óbvia é na política. Depois de dominar por 15 anos, a fação linha-dura do Irã —uma elite conservadora de clérigos, líderes militares e políticos— sofreu uma série de derrotas.

O testa-de-ferro deles, o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad, se tornou o símbolo de uma nação que recusa qualquer concessão. "O Irã nunca vai fazer concessões a seu programa nuclear", costumava prometer Ahmadinejad.

Mas em 2012, um ano antes de terminar o mandato de Ahmadinejad, Khamenei permitiu que seus representantes contatassem os Estados Unidos para discutir exatamente essas concessões.

Desde então, os conservadores linha-dura perderam todas as batalhas para um grupo de tecnocratas e moderados que eram os únicos no pequeno establishment do país capazes de conversar com o Ocidente.

Durante as eleições de 2013, os linhas-duras perderam para o moderado Rouhani. Recentemente, Khamenei descartou qualquer perspectiva de uma volta de Ahmadinejad, que ainda é o único conservador com muitos seguidores.

Por dois anos durante as negociações com os Estados Unidos e outras potências mundiais sobre a questão nuclear, os linhas-duras se declararam contra qualquer tipo de concessão. Perderam. Eleições parlamentares? Perderam também.

Os linhas-duras se declararam contra qualquer tipo de investimento estrangeiro, liberdade na internet, mais visitas de estrangeiros, shows e menos polícia da moral nas ruas. Em todas essas questões, eles perderam ou foram amplamente ignorados.

E isso não é por acaso, dizem os analistas.

Vem da decisão de Khamenei de liberar o Irã —por ora, pelo menos— de uma interpretação rígida de sua ideologia revolucionária e de encerrar o isolamento que dificultou a economia e frustrou jovens iranianos que ansiavam viver em um país "normal".

Aos 77 anos, e com pelo menos uma internação em anos recentes por câncer de próstata, Khamenei parece determinado, enquanto ainda tem poder total, a fazer as mudanças essenciais para o Irã realinhar relações com o mundo, dizem os analistas.

"Na visão de Khamenei, nós deveríamos ser como a China", diz Hamidreza Taraghi, um analista com ligações próximas dos linhas-duras. "Tendo relações econômicas com o Ocidente, mas sem sua influência política e neocolonização."

Assim, as restrições de visto foram afrouxadas e as políticas de investimentos estrangeiros foram relaxadas, enquanto os diplomatas iranianos estão disseminando a mensagem de que o Irã é o último grande mercado inexplorado do mundo.

"Precisamos das técnicas ocidentais e dos investimentos ocidentais", diz o economista Laylaz. "Agora que as sanções não estão mais no nosso caminho, estamos nos aproximando do Ocidente pelo dinheiro e pelo conhecimento deles. Mas, é claro, não queremos a política deles."

Rene Harun, um expatriado alemão e diretor da Câmara de Indústria e Comércio Alemã-Iraniana, fala de uma "nova era" na república islâmica. "O governo está dando grandes passos para melhorar a economia", ele diz.

Nos últimos meses, o iraniano médio tem notado algumas bem-vindas mudanças também. A internet, que por muito tempo foi mantida lenta pelas autoridades, está visivelmente mais rápida, o suficiente para assistir vídeos online, algo que nunca fora possível antes. A televisão estatal criou novos canais digitais, introduzindo mais comédias e até mesmo uma versão persa de "House of Cards", série do Netflix.

O Parlamento, livre da dominação por parte dos linhas-duras pela primeira vez em mais de uma década, pediu por restrições sobre a pena capital, mais liberdade de imprensa e reintegração de uma política mulher que foi barrada depois de aparecer em fotos sem o véu islâmico obrigatório.

"No geral há esperança, e embora precisemos ver ainda como isso se dará e quanto tempo levará, as pessoas estão esperando pelo futuro mais do que antes", diz Nazanin Daneshvar, a presidente da Takhfifan, um site de compras com desconto.

Ao mesmo tempo, Khamenei tem feito o possível em seus pronunciamentos públicos para garantir a seus apoiadores linhas-duras que sua visão de uma teocracia islâmica conservadora em oposição aos EUA e ao Ocidente ainda tem muita influência. Em um discurso feito na semana passada, por exemplo, ele disse que "os problemas entre o Irã e os EUA nunca serão resolvidos."

Khamenei também emite alertas frequentes sobre o Estado Islâmico, que em sua essência é uma violenta insurgência sunita que representa uma ameaça ao Irã xiita. Ele diz que se deve ou combater os militantes na Síria, ou combatê-los nas cidades iranianas ocidentais de Kermanshah e Hamadan.

Embora as ações militares do país pareçam distantes da vida cotidiana para muitos iranianos, elas de fato se alinham com as visões frequentemente nacionalistas da população. "O Irã deveria ser forte e influente", diz Mohammad Heydari, ex-jornalista. "É só olhar para o mapa, ver onde estamos localizados e o tamanho do nosso país, que você vai entender."

As guerras também podem servir como uma distração, talvez aplacando os linhas-duras em um momento em que os limites ideológicos também estão sendo ultrapassados, e acontecimentos que antes pareciam impossíveis, como a compra de aviões americanos, agora se dão regularmente.

Publicamente, Khamenei costuma criticar o acordo nuclear, mas os linhas-duras mais influentes entendem que foi ele o arquiteto do pacto. Ele também não impediu as conversas entre a Boeing e a empresa nacional Iran Air, embora o acordo que está surgindo vá resultar em relações de negócios de grande escala com os Estados Unidos.

"Muitas coisas no Irã são ditas para consumo doméstico", diz Amir Kavian, um analista político próximo do movimento reformista iraniano. "Não devemos levar as coisas tão a sério. As ações falam mais alto que as palavras."

Tanto a abertura parcial do Irã para o Ocidente quanto seu envolvimento nos conflitos do Oriente Médio são conduzidos por Khamenei, de acordo com analistas.

"Todas as principais políticas externas e internas são comandadas pelo líder", diz Taraghi, o analista político linha-dura. No entanto, ele diz, os ocidentais não deveriam alimentar a esperança de que haja mudanças profundas e significativas no Irã.

Tradução: UOL

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Na ONU, Temer se legitima junto à comunidade internacional

Por Matias Spektor (Folha de S.Paulo, 22/09/2016)

A estreia de Michel Temer na política internacional é uma obra em três atos: a reunião do G-20, a Assembleia Geral das Nações Unidas e uma visita à Argentina, daqui a dez dias. Ao fim do périplo, o governo terá encerrado a longa transição.

Claro e direto, o discurso de Temer na ONU reafirmou pautas tradicionais da diplomacia brasileira, algumas das quais defendidas com vigor pelo PT. Da necessidade de compensar os perdedores da globalização à reforma do Conselho de Segurança, ele passou em revista toda a agenda diplomática.

Em seu melhor momento, o presidente bateu forte contra as mensagens do candidato republicano Donald Trump: Temer celebrou a abertura americana para Cuba, comemorou o acordo nuclear com o Irã, aplaudiu compromissos formais sobre mudança do clima, denunciou a xenofobia e a proliferação nuclear. Na sequência, encontrou-se com o vice de Obama.

As diferenças com o PT ficaram claras. Ao prometer uma "diplomacia com os pés no chão", Temer marcou distância do que vê como exuberância irresponsável na diplomacia petista. Naquele dia, sua imagem no púlpito da ONU contrastou com a de Lula na Lava Jato e a de Dilma na campanha municipal de Jandira Feghali.

Antes de Temer discursar, Venezuela, Equador e Nicarágua saíram do plenário. Tendo em vista o autoritarismo cleptocrata de seus presidentes, muitos acharam que o gesto depôs a favor do governo brasileiro. Costa Rica também saiu, mas sua chancelaria soltou nota minimizando o ocorrido.

Em Nova York, Temer ouviu seu colega uruguaio pedir a restauração das boas relações, depois da fricção. O presidente de Portugal afirmou que a Comunidade de Países de Língua Portuguesa quer um novo capítulo com o Brasil, tamanha a irritação com o tratamento dispensado ao grupo por Dilma.

A visita de Temer à ONU também teve silêncios. Na expectativa de baixar o fogo, ele nada disse sobre a situação na Venezuela. E, para perplexidade geral, o presidente nem sequer mencionou a palavra "corrupção", tema que chacoalha com vigor a sociedade que ele representa.

Sobre a crise global dos refugiados, não propôs nada. Pelo contrário, apresentou números inflados de quanta gente recebemos. A pedalada estatística é uma herança do governo Dilma, quando se fez uma gambiarra jurídica para receber milhares de haitianos sem violar a legislação sobre a matéria. Temer poderia ter dito que seu próprio líder no Senado apresentou um projeto de lei que, com apoio das principais organizações de direitos humanos, promete começar a modernizar o tratamento da questão. Buenos Aires é a próxima parada.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

A "Justiça" que só merece aplausos

Por Murillo Victorazzo

Elogiar "Justiça" depois de todas as críticas favoráveis dos últimos dias é chover no molhado. Pela direção, elenco, narrativa diferente, em que, entre outros artifícios, para mostrar vidas se cruzando, cenas iguais são repetidas por outro ângulo em outros episódios, nos quais protagonistas se tornam coadjuvantes e vice-versa, e por mostrar uma capital nordestina fora dos estereótipos típicos de produções globais quando se fala da região, a série merece aplausos de pé. 

Mas mais do que por tudo isso, merece porque é um soco no nosso estômago, principalmente nos dos reducionistas, maniqueístas, aqueles que só conseguem analisar mazelas sociais e relações interpessoais através de palavras de ordens e prejulgamentos.

Essa "Justiça" é irrepreensível...

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Turquia e Rússia: uma desigual reaproximação

Por Jeffrey Mankoff (Foreig Affairs, 20/07/2017)

A normalização do laços entre Turquia e Rússia no final de junho foi uma das raras boas notícias para o país. Sob a pressão de uma onda de guerrilha curda, de ataques terroristas e o auto-proclamado Estado Islâmico; um afluxo maciço de refugiados sírios; problemas econômicos decorrentes das sanções russas; e crescente atrito com União Europeia e Estados Unidos; o presidente turco Recep Tayyip Erdogan parece ter decidido que seu país já não podia pagar por uma guerra fria com Moscou.

Ao pedir desculpa pela derrubada de um avião de guerra russo em novembro de 2015, Erdogan pavimentou o caminho para a retomada dos laços econômicos e de maior cooperação em segurança entre os dois países. O pedido de desculpas, no entanto, não diminuirá a influência crescente da Rússia no quintal da Turquia.

Esta  ampla mudança geopolítica  —  vista no crescimento do poder russo na região do mar Negro, no Cáucaso e no Médio Oriente, muitas vezes às custas de Ancara — pôs fim à curta parceria estratégica russo-turca surgida na primeira década deste século.

Nos próximos anos, essa crescente influência vai continuar a limitar as possibilidades de uma parceria genuína entre Ancara e Moscou. E embora os ruídos com o Ocidente causados pela tentativa de golpe criem oportunidade de maior cooperação a curto prazo, deixa, por outro lado, a Turquia mais fraca e, portanto, mais vulnerável à coerção russa.

A primeira década deste século viu uma estreita parceria russo-turca transformar séculos de confronto. As ambições estratégicas dos dois países começaram a convergir: ambos esperavam moldar um maior papel para si na ordem global e foram se frustrando cada vez mais com o que eles viam como recusa do Ocidente em lhes dar um lugar à mesa.

Ancara e Moscovo começaram a concentrar-se na cooperação econômica, aprofundando laços comerciais e de investimento. Até 2015, Rússia era o terceiro maior parceiro comercial da Turquia, quarta maior fonte de investimento estrangeiro e o principal fornecedor de gás natural. Turistas russos tornaram-se frequentes nas cidades turcas.

A decisão russa de novembro de 2015 de impor sanções sobre a Turquia após derrubada do caça debilitou fortemente a economia turca. Moscou centrou suas sanções nos três pilares das relações econômicas bilaterais: agricultura, construção e turismo.

Entre outras medidas,proibiu a importação de alimentos turcos, restringiu as atividades de empresas de construção turca na Rússia, proibiu voos charters entre os dois países e cancelou um acordo de isenção de visto finalizado em 2010. A gigante de gás russa Gazprom engavetou planos de construir um novo gasoduto através do mar Negro para a Turquia, e a Rosatom, empresa estatal nuclear, suspendeu a construção de um reator na cidade turca de Akkuyu.

Tomados em conjunto, de acordo estimativa do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, as sanções diminuiriam o PIB  turco em 0,7 pontos percentuais em 2016 caso fossem mantidas.

Igualmente prejudiciais para a Turquia foram os efeitos do confronto com a Rússia na crise na Síria. Junto com o Irã e a milícia xiita Hezbollah, os russos apoiam o governo deBashar al-Assad, contra a Turquia, que, juntamente com Estados árabes do Golfo e ocidentais, dão suporte a vários grupos rebeldes sunitas, em busca da deposição de Assad.

Nos meses após o incidente com o caça, Moscou intensificou as ações contra interesses turcos na Síria, usando sua Força Aérea para atacar rebeldes apoiados por Erdogran. Por sua vez, mais sírios  se refugiaram na Turquia, que agora abriga mais de três milhões de refugiados.

Ao mesmo tempo, a Rússia forneceu apoio adicional para o Partido da União Democrática Curdo (PYD), baseado na Síria — motivo de angústia entre os líderes turcos, que vêem o PYD como uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), grupo que luta um sangrento conflito separatista  no sudeste da Turquia e que tomou vida nova no ano passado.

Os russos permitiram ainda que o PYD abrisse um escritório de representação em Moscou e, através de bombardeios aéreos, abriram caminho para os curdos sírios ganharem territórios (Ankara protestou que armas russas entregues ao PYD teriam sido contrabandeadas na fronteira sírio-turco, caindo nas mãos do PKK.)

Neste contexto, não deveria ser surpresa a brusca mudança de postura de Erdogan, a fim de restaurar os laços com a Rússia. Emparedado pelo surto de ataques do Estado Islâmico na Turquia, o fracasso de sua estratégia para a guerra civil síria, o isolamento internacional mais profundo, o agravamento do conflito com o PKK e os custos econômicos e estratégicos da retaliação russa, ele pareceu convencido a não mais pagar pelo confronto com Moscou.

A demonstração de arrependimento de Erdogran parece destinada a preparar o caminho negociar sua demanda pela deposição de Assad (algo aparentemente improvável há algum tempo) em troca do fim das sanções russas e o do apoio russo ao PYD. Se bem-sucedida, Ancara será capaz de focar seus desafios mais imediatos no PKK e  no Estado Islâmico — neste último caso, talvez em conjunto com a Rússia.

Nas últimas semanas, a Rússia cancelou as proibições impostas aos voos charter para cidades turísticas turcas e autorizou negociações com vistas à normalização dos dos laços econômicos. Na sequência do atentado suicida no Aeroporto Internacional de Istambul, os chanceleres russos e turcos reuniram-se em Sochi e concordaram em retomar  contatos militares e a cooperação antiterrorismo.

Qualquer detènte russo-turca, no entanto, provavelmente não irá restaurar a parceria estratégica que definiu a relação entre Ancara e Moscou antes do conflito sírio. As primeiras sementes desta parceria foram semeadas na década de 1990, mas foi quando Erdogan tornou-se primeiro ministro, em 2003, que realmente floresceram.

Como agora, Erdogan e o presidente russo Vladimir Putin, dois homens autoritários que compartilham alguma química pessoal, tinham em comum a frustração com uma ordem internacional dominada pelo Ocidente que estimulou a integração plena entre os dois países. Tanto a Turquia de Erdogan Turquia como a Rússia de Putin compartilham alguns interesses econômicos — por exemplo, enviar o gás russo para a Europa por meio de dutos pela Turquia.

O que, no entanto, realmente possibilitou a parceria russo-turca foi a retirada do poder militar de Moscou das fronteiras turcas após o colapso da União Soviética. Da guerra da Crimeia à Guerra Fria, a insegurança da Turquia perante tal poder forçou-a a amarrar-se aos Estados mais poderosos da Europa e América do Norte  — França e o Reino Unido na década de 1850, Alemanha durante a I Guerra Mundial e a OTAN, a partir da década de 1950.

Isso mudou em 1991, quando o esfarelamento militar da Rússia e o declínio de sua influência nos Balcãs, no Mediterrâneo Oriental e no Cáucaso do Sul acabaram com a ameaça representada por ela pela primeira vez em séculos, permitindo que a Turquia prosseguisse com uma política externa mais ambiciosa, com o intuito de aprofundar o seu papel no Oriente Médio.

Nos últimos anos, no entanto, as Forças Armadas da Rússia se fortaleceram, em grande parte como resultado do enorme programa de modernização de defesa do país, iniciado em 2008.

Na vizinhança da Turquia, Moscou está reforçando sua presença militar. Criou zonas de exclusão área no Mar Negro, onde, desde a anexação da Crimeia, em 2014, tem trabalhado para atualizar suas forças navais. Moveu forças adicionais e equipamentos para sua base naval na cidade síria de Tartus e fechou acordos com Assad para posicionar outras em outros locais do país, especialmente em Latakia.

Em dezembro de 2015, Putin prometeu reforçar seu contingente de cinco mil militares na Armênia, na fronteira turca, e estabeleceu um sistema de defesa aérea conjunto com aquele país. (Alguns destes passos, tais como a implantação das forças adicionais na Armênia, podem não acontecer na sequência da aproximação russo-turca, mas a maioria deles provavelmente resistirá.)

Essas mudanças,  uma vez mais, tornaram Ancara vulnerável à coerção russa. Ao mesmo tempo, os interesses estratégicos de Rússia e Turquia divergiram: não só na Síria, mas também na Ucrânia, a qual a Rússia tem trabalhado para desmembrar enquanto a Turquia aprofunda laços, e no Cáucaso, onde a renovada luta entre Armênia e Azerbaijão exacerbou a rivalidade entre Ancara e Moscou na região.

O golpe fracassado na Turquia pode amenizar algumas destas tensões no curto prazo, já que Moscou, ao contrário dos EUA e outros aliados turcos da OTAN, estará disposta a olhar de outra forma a "caça as bruxas" contra oponentes domésticos de Erdogran. Com efeito, a Rússia provavelmente levará vantagem com o distanciamento turco em relação ao Oeste e tentará puxá-la para perto.

Nem importa que a Força Aérea turca, que tanto se irritou com as violações russas do espaço aéreo e incentivou robustas respostas a elas, agora se encontra diante da ira do Erdogan pelo papel central desempenhado no plano para derrubá-lo. (Na verdade, os pilotos que abateram o jato russo estavam entre os presos após o fracasso do golpe).

A longo prazo, porém, as conseqüências do golpe irão exacerbar a insegurança relativa da Turquia. O expurgo de militares conduzido por Erdogran vai deixá-lo menos capaz de resistir à expansão do poder russo, ainda mais com o estranhamento  de seus aliados ocidentais.

Com a Turquia enfrentando as incertezas mais profundas vista em décadas, Erdogan não está em posição de afastar-se de Moscou. Rússia vai continuar a expandir a sua influência na vizinhança compartilhada, oferecendo Ancara apenas a perspectiva de um relacionamento desigual.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O dia em que Erdogram foi Chávez: por que engolimos tiranetes

Por Murillo Victorazzo

Os regimes não liberais ( no sentido político, não necessariamente econômico), cuja característica mais perigosa é a extrema concentração de poderes no Executivo e o desprezo pelas minorias, separam-se tanto das democracias de fato como das ditaduras por uma tênue linha. Transitam entre estas com nuances, roupagens democráticas ou cerceamento de direitos em maior ou menor graus, que dificultam a atuação da comunidade internacional e a aplicação de normas em favor dos direitos humanos e liberdades civis.

Em abril de 2002, um grupo de militares chegou a tirar Hugo Chávez do poder. Com o apoio de grandes empresários, inclusive donos de veículos de comunicação, detiveram-no, colocaram no seu lugar Pedro Carmona, presidente de uma das principais entidades patronais, dissolveram o Parlamento e a Corte Suprema e anularam a Constituição de 1999, entre outros atos à margem da lei.

Após repúdio internacional, mobilização popular e reação da outra parte das Forças Armadas, fiéis a seu colega de farda, o levante foi sufocado. Em 48 horas, o presidente reeleito pelo povo dois anos antes estava de novo à frente do Palácio Miraflores.

Umas das principais vozes a se levantar contra a ruptura da ordem constitucional na Venezuela foi o então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, cabeça das pressões e do manifesto assinado por líderes latino-americanos contra a quartelada. Posição oposta a dos Estados Unidos de George W. Bush, que prontamente reconhecera o governo golpista, acompanhado apenas da Espanha.

Embora por razões e em contexto diferentes, aquele filme foi  repetido na última sexta-feira na Turquia, quando o também polêmico presidente Recep Erdogran balançou após parcela das Forças Armadas colocar seus tanques nas ruas e anunciar estar tomando o poder. A "defesa da democracia e dos direitos individuais" era sua justificativa.

Manifestantes em peso desafiaram metralhadoras e blindados e foram às ruas em defesa de Erdogran. Partidos políticos representados no Parlamento, inclusive os de oposição, posicionaram-se ao lado do governo eleito, assim como toda a comunidade internacional - desta vez unanimemente, inclusive os EUA. Em apenas uma madrugada, forças de segurança (militares e policiais) desmobilizaram os rebelados. A rapidez com qual foi derrotado  o movimento, porém, não refletia seu saldo sangrento: cerca de 300 pessoas mortas.

Quando as armas quase o depuseram, Chávez começava a colocar em prática  sua retórica populista-nacionalista.  Expropriara terras, aproximara-se de Fidel Castro e ganhar poderes com a Carta de 1999, referendada por dois terços da população. No entanto, ainda não havia descambado para o autoritarismo explícito visto em anos recentes. Não haviam, por exemplo, notícias de adversários presos.

O ataque à democracia liberal inerente ao projeto chavista já dava sinais. Passos semelhantes aos de Erdogran, que, depois de três mandatos como primeiro-ministro, elegeu-se presidente em 2014, com o voto popular e em primeiro turno. Desde então, com a submissão de primeiros-ministros aliados, vinha acumulando funções alheias às de chefe de Estado, cargo mais protocolar no parlamentarismo turco. Não por outro motivo, trabalhava para  a convocação de nova Constituinte, através da qual se implantaria o presidencialismo.

Considerado até pouco tempo atrás um islamista moderado, capaz de fazer conviver a democracia secular com o Islã político, Erdogran passou a ser visto com preocupação e ceticismo pelo mundo e pela oponentes internos por avançar também o sinal da laicidade fundada por Kemal Atatürk há quase cem anos.

O fim da proibição do uso de véus islâmicos em locais públicos e a tentativa de criminalizar o adultério e proibir a bebida alcoólica me certos locais foram vistos como indicadores da islamização de seu governo. Perseguições a adversários e ataques até policiais à imprensa, sempre sob a retórica típica dos protoditadores da "traição à pátria", tornavam-se mais frequentes.

Reconduzido ao cargo, Chávez se fortaleceu. Reelegeu-se em 2006, após derrotar um referendo revogatório dois anos antes, quando quase 60% dos eleitores disseram querer a continuação de seu mandato. Progressivamente foi  endurecendo o regime, conforme ele se fragilizava economicamente. A cada crítica,  o apoio dos norte-americanos e de empresários ao golpe de 2002 era relembrado para reforçar a ideia de ser vítima de boicotes e conspirações das elites e do "império yankee". Hoje o protoditador Maduro esta aí.

Ainda que rapidamente sustado, as tensões decorrente da última sexta-feira não cessarão imediatamente na Turquia. Mais do que a volta do fantasma das quarteladas, tempos que pareciam ter ficado para trás, o levante expôs graves fissuras no regime turco e dá a Erdogran a oportunidade de, vestido com o mesmo uniforme de vítima, aumentar a perseguição aos seus adversários. Sob  o argumento de, em suas palavras, "eliminar o vírus golpista" do Estado, acelerará o processo de concentração de poderes.

A alusão à volta da pena de morte; as mais de sete mil detenções, entre eles seis mil militares e 755 magistrados; a destituição de 30 dirigentes políticos, como governadores e prefeitos; e a demissão de 8.500 policiais, evidenciam essa direção. Uma verdadeira caça a bruxas se iniciou.  A imagem de um parlamentarismo estável e laico, exemplo raro no Oriente Médio e norte da África, não condiz mais com a verdade.

Aspirante à potência regional - objetivo número um da política externa de Erdogran -, a Turquia é estratégica geopoliticamente, na luta contra o terrorismo e nas discussões sobre refugiados com a União Europeia, além de membro da OTAN. A instabilidade de um país com estas credenciais causa arrepios aos líderes ocidentais. Tudo que não precisam é de um aliado cujo único contraponto a regimes islâmicos seja ditaduras militares, dicotomia comum no Oriente Médio e norte da África.

Algumas vozes acusaram os Estados Unidos de terem se pronunciado contra o golpe somente após evidências de sua insustentabilidade. Integrantes do governo turco foram além: insinuaram digitais norte-americanas no golpe. Teorias que, se não podem ser descartadas, fazem a alegria do presidente turco, que não tardou para pressionar publicamente pela deportação de seu maior inimigo, o clérigo moderado Fethullah Gülen. Radicado na Pensilvânia, ele é acusado de ser o mentor do levante. Pela mesma cartilha usada por Chávez, Erdogran enforca internamente posando de enforcado pelos "imperialistas ocidentais".

Historicamente, os Estados Unidos, quando não apoiaram, foram complacentes com os ditadores seculares, "o mal menor", na luta contra a islamização política de Estados. Em 2013, diante da deposição por militares do islâmico Mohammed Mursi, eleito pelo povo egípcio apenas um ano antes, a diplomacia de Obama "mostrou-se preocupada" com a situação e, com o golpe bem sucedido, suspendeu boa parte da ajuda militar ao país.

Dois anos depois, contudo, cessou a sanção. A luta contra o terrorismo falou mais alto, mesmo não se podendo dizer que o general Abdel-Fattah al-Sisi, eleito em pleito, embora direto, carente de legitimidade e imparcialidade, tivesse colocado o Egito no trilho da democracia. Muito pelo contrário.

Ilações são complicadas de se analisar, pois fogem ao concreto . O fato é que o secretário de Estado, John Kerry, no início da noite de sexta-feira, em conversa por telefone com o chanceler turco, ofereceu "apoio absoluto ao governo eleito". Jogada de cena ou não, uma resposta mais rápida e assertiva do que a emitida sobre Egito, provavelmente por ele e os europeus terem consciência do protagonismo turco na região e, portanto, no contexto atual, dependerem mais da Turquia do que o contrário.

Não se sabe qual seria a reação das potências ocidentais na hipótese de sucesso golpista. Mas, diante dessa dependência, parece pouco provável que, além de estrilar, tivessem espaço de manobra suficiente para pressionar a médio prazo os militares em favor de liberdades e direitos. Do mesmo modo, acontece agora com Erdogran, com a faca e esse queijo para lidar com Estados Unidos e europeus em sua espiral autoritária, eufemismo para, partir de agora, não se dizer ditatorial.

Os regimes não liberais, tornam o mundo mais complexo. Mas é preciso ressaltar que, se eles, por serem mutantes e complexos, embarreiram ações do Ocidente na defesa da democracia,  uma sociedade internacional cujo lastro retórico e normativo seja a manutenção de mandatos constitucionais, mesmo que existam variáveis pragmáticas, cria barreiras para a proliferação de governos autocráticos, sem o mínimo de legitimidade popular. Se não por razões morais, pelo perigo de se abrir precedentes, a objetividade legal é melhor do que a subjetividade política.

A quebra de normas através da força nesses casos, além de ser uma caixa de pandora que como seu alvo, acaba por perseguir e cercear direitos, torna o opressor um falso oprimido. O caminho é a vigilância, a pressão diplomática, a negociação caso a caso, por mais lentos e muitas vezes falhos que sejam.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Messi X CR7: a mais tola disputa do mundo

Por Murillo Victorazzo

Sabe-se lá por que, o ser humano, não sei se desde sempre, mas certamente nos últimos tempos, a péssima mania de separar em dois lados incomunicáveis, de forma maniqueísta, tudo que envolve gostos, preferências, visões de mundo. 

Quando o alvo é alguém com personalidade, digamos, polêmica, as divisões se acentuam ainda mais, muitas vezes misturando o modo de ser com suas realizações. Os defeitos são realçados, enquanto as virtudes são minimizadas, quando não negadas. Ou o contrário. Se há outro para contrapô-lo, um elogio a este é visto como crítica a ele.

O futebol, passional por natureza, não teria como escapar, como visto na míope discussão sobre quem é o melhor jogador do mundo.

Marrento, antipático, narcisista, midiático, "fominha". Todos esses adjetivos sempre perseguiram Cristiano Ronaldo com eficácia maior do que o melhor dos zagueiros conseguiria. E, admitamos, motivos não faltaram para tachá-lo assim em algum momento. Seu modo de ser, solenemente ignorado pelos seus fãs mais passionais, serve para seus detratores diminuírem sua coleção de títulos em clubes e seu raro talento, que aliado à invejável força física, tornou-o diferenciado.

Ao passar, muitas vezes, a imagem de se considerar o Pelé do século XXI, Ronaldo causava o efeito oposto entre seus detratores: joga nada, é puro marketing. Sacrilégio de ambos. Falta de discernimento típica desses dias em que as pessoas parecem ver tudo através de uma televisão preta e branca, sem nuances.

Nesse mundo binário, o outro lado, o vilão ou bandido, se chama Lionel Messi. Sem personalidade, "modinha", favorecido por jogar num timaço com o Barcelona, e agora, após perder pênalti em mais uma final desperdiçada com a seleção argentina, "amarelão". Assim os "ronaldetes" rotulam um dos maiores gênios que o futebol nos deu. Elogios para recordes, dribles, golaços, jogadas de plasticidade incomum? Nenhum, nunca.

Para o azar do argentino,  ao conquistar a Eurocopa, Ronaldo conseguiu, além de uma façanha inédita para seu país, diferenciar-se do "rival" em termos de desempenho com a camisa de seu país. Pronto, prato feito para a velha ladainha de distinguir craques em função de títulos com seleções, critério que, se já era pouco consistente até poucas décadas atrás, quando representavam de fato os melhores times do mundo, hoje me dia, com os clubes europeus juntando sem a barreira da nacionalidade os maiores talentos possíveis do plante, perde qualquer sentido.

Alguém em sã consciência considera Kleberson e Cafu melhores que Falcão e Leandro? Ou prefere em seu time Burrochaga, OlarticoecheaTrezeguet, Petit, Lucatoni, Gattuso, Völler no lugar de Zizinho, Cruyff, Zico, Sócrates, Di Stéfano, Puskas, por exemplo?  

Duvidariam que Barcelona, Real Madrid, Chelsea, PSG, Bayern são superiores a grande parte das seleções, talvez a todas? Que a Champions League tem nível igual ou superior a Copas do Mundo e Eurocopas? Sem falar da imprevisibilidade de um torneio de sete jogos, sendo quatro eliminatórios sem jogo de volta, a cada quatro anos.

Rejeitar esse argumento não é afirmar que Ronaldo não é o maior dos últimos tempos. É inegável, aliás, que ele esteja à frente do argentino na disputa pela Bola de Ouro de 2016. Mas o título da Eurocopa e a ausência de conquistas argentinas em duas décadas pouco deve servir como parâmetro para, no futuro, nos virarmos e concluirmos qual foi  melhor - se é que temos que escolher. 

Prefira o madrilista ou o barcelonista, as razões para escolha devem ser seus gols, jogadas, passes, estilo, importância para suas equipes, e títulos, é claro, mas como um todo, durante toda carreira e sem fracassos em seleções como divisor de águas. Assim como a Eurocopa não faz de Ronaldo melhor do que Messi, um hipotético tetra mundial argentino em 2018 não tornará irrefutável o contrário, caso o "hermano" decida voltar à alviceleste.

Da mesma forma que se Iguaín não tivesse perdido três gols feitos, um em cada jogo, nas três finais que a Argentina disputou recentemente. Possivelmente Messi poderia hoje se gabar de ser campeão do mundo e da América em um espaço de três anos.

 Limitarmo-nos a esse tolo Fla x Flu acaba, além de tudo, por prejudicar o próprio capitão luso, craque de dimensão ainda maior depois do torneio, mas não por ter sido campeão meramente.

Sua determinação e liderança - provada até em vídeo-; o choro comovente na final, ao se ver, contundido, fora da partida;  e o discurso na chegada a Lisboa, no qual dedicou a conquista aos imigrantes, numa indireta ao radicalismo xenófobo em ascensão na Europa, mostraram um CR7 que poucos conheciam. Atitudes que humanizaram uma personagem marcada pelo narcisismo e acusada de egocentrismo. 

Se o torneio não pode sacramentar o reinado de Ronaldo no mundo do futebol, é certo que lhe assegurou espaço definitivo na galeria dos grandes ídolos históricos - os verdadeiros, aqueles que, além de craques, sabem o que representam para torcida e companheiros e fazem por merecer o carinho e admiração de tantos, até de "messiânicos".

Messi continua a ser o melhor para muitos dentro do gramado, inclusive para mim. Mas Ronaldo deu um passo à frente no quesito personalidade. Na balança dos prós e contras, defeitos ficaram merecidamente relegados; falso rótulos, como seu individualismo, esquecidos, virtudes descobertas e talento reafirmado.

Até por nenhuma das escolhas ser absurda, se  podemos nos deliciar vendo dois atletas desse nível, para que gastar tempo vociferando qual o melhor? Aproveitemos o privilégio que o futebol de hoje nos dá.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Por que rememorar (e esquecer) a Guerra Civil de 1932?

Por Daniel Bonin Barreto (Carta Capital, 8/7/2016)

Sou paulista, nascido em uma pequena cidade do interior, chamada Itararé. Desde muito cedo escutava, de meus familiares e conhecidos, histórias que relacionavam a minha cidade com acontecimentos maiores, conhecidos por “Revolução de 1930” e “Revolução Constitucionalista de 1932”.

Utilizando uma fala muito pertinente de Leandro Karnal, temos uma tradição de não chamar de “Guerra Civil” movimentos violentos que envolveram a história do Brasil. Falamos em revoltas, revoluções, insurgências e não lembramos do caráter do confronto como de mobilização civil e disputas bélicas entre habitantes de um mesmo país.

Hoje, passados 84 do maior confronto armado em território brasileiro no século XX, as lembranças que se envolvem com 1932 são geralmente de caráter saudosista, civilista, patriótico, regionalista e, em certa medida, elitista, quando não utilizados como argumento para a soberania e independência de São Paulo.

Acreditem: uma rápida pesquisa pelas redes sociais nos apresenta grupos de movimentos separatistas, muito bem engajados, dos mais radicais aos “constitucionais”, que pretendem, como os “bravos de 1932”, colocar São Paulo nos trilhos.

Este tipo de movimento e a valorização de certos ideais (escolhidos) se confundem, muitas vezes, com o trabalho de pesquisa histórica. Por conseguinte, a temática sobre os paulistas é cada vez mais deixada de lado pela produção acadêmica no Brasil. Coincidência? Acredito que não.

A brecha da produção histórica abre caminho para a difusão de ideais no mínimo perigosos acerca de um acontecimento extremamente importante na conjuntura do Governo Provisório de Getúlio Vargas. Muito já foi e ainda é escrito sobre a Guerra Civil de 1932. No entanto, assim como se percebe como outros assuntos de nossa violenta história, a leitura desses acontecimentos não tem alcançado, como deveria, a população.

Além das organizações que fervilham pelas redes sociais, a identidade e a memória de 1932 estão presentes em importantes nomes na cidade de São Paulo. A Avenida 23 de Maio (data da morte dos paulistas Martins, Maragaia, Dráusio e Camargo, que de suas iniciais se originou o MMDC) e a Avenida 9 de Julho (data de estopim do movimento) são dois bons exemplos.

Já o Obelisco do Ibirapuera é o principal local de homenagem ao movimento, a partir da construção do que se chama de “memória oficial”. No local estão guardados os restos mortais de centenas de combatentes paulistas mortos. São militares, estudantes, profissionais liberais, operários. As maiores vítimas de uma causa com forte poder de cooptação popular, tramada pela Frente Única Paulista, junção do Partido Republicano Paulista (PRP), dos oligarcas, com o Partido Democrático (PD), composto pela burguesia média paulista ascendente nos anos 1930.

Nos cabe uma atenção muito especial em como aspectos de simbolismo foram utilizados pela imprensa paulista na propagação do imaginário que visava construir São Paulo livre. Recorreu-se, entre vários elementos, à figura histórica do bandeirante paulista.

O bandeirante, como se sabe (não se deixando esquecer seu protagonismo no massacre das populações nativas por muito tempo), era fruto da miscigenação de europeus e indígenas, quando também não de negros, e foi ilustrado pelas publicações dos jornais paulistas em 1932 de uma maneira bastante peculiar: um homem branco, forte, alto, implacável e irredutível em seus propósitos.

Neste quesito, do trabalho da imprensa paulista em 1932, há de se reconhecer como os jornais diários incorporam o discurso das classes dirigentes. O Estado de S. Paulo, que dois anos antes exaltou o triunfo de Vargas, passou a empreender uma verdadeira cruzada pela vitória. Assim também fizeram os jornais Folha da Manhã, A Gazeta,Diário Nacional, entre muitos outros.

As rádios, inclusive as emissoras de tenentistas que foram invadidas, davam a tônica da campanha. Proclamava-se a vitória na voz emocionada e vibrante de Cesar Ladeira.

Os partidos políticos, a imprensa e os setores dominantes exaltavam uma vitória impossível. A população, num esforço descomunal, doava dinheiro e ouro em prol de uma guerra que, se vitoriosa, alcançaria uma nova Constituição, proposta ampla e ao mesmo tempo carregada de incertezas de melhorias sociais para os que pegavam em armas.

Neste sentido, cabe um questionamento: que tipo de Constituição as lideranças do movimento desejavam? Ou, mais especificamente, todo o esforço visou somente uma nova Constituição para o país?

Estudantes universitários passaram a construir máquinas de combate, mulheres deixaram suas famílias para costurar e, em alguns casos, comandar os hospitais de guerra e homens adultos, de diferentes profissões, marcharam a um front desconhecido. A historiadora Maria Helena Capelato, em uma das melhores obras sobre 1932, destaca como o trabalho de domínio das consciências serviu para que o episódio adquirisse uma aparente característica de larga participação das camadas sociais, com objetivos de solucionar as necessidades de todos os envolvidos:

O domínio das consciências, uma das técnicas mais eficazes de controle social, foi levado nesse período às últimas consequências. A “grande imprensa” veiculou a ideologia dominante através das manchetes, editoriais, anúncios, artigos; falou a “todos” e por “todos”, adequando os valores “eternos” às necessidades imediatas suscitadas pelas conturbações políticas e sociais. (CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 – a causa paulista. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 32)

Se o movimento conseguiu envolver praticamente todas as classes sociais, vale ressaltar que, como em muitas guerras regionalistas, 1932 também produziu seus excluídos. Ou melhor, tentou-se mobilizar populações marginalizadas para impedir, sob qualquer alegação, que a causa pudesse ser fator de exclusão. Todavia, ao arregimentar homens negros e tribos indígenas, e criar batalhões específicos para essas populações, quase sempre separados dos outros voluntários e militares, São Paulo dava mostras de sua face mais segregacionista.

Em menos de três meses de guerra, o número oficial de mortos pelo lado dos constitucionalistas foi próximo a 700 (contando os restos mortais no Obelisco Mausoléu). Sem dúvidas, este número passa a ser bem maior se incluirmos civis não contabilizados e soldados das tropas legalistas. Para se ter uma ideia da gravidade desses dados, a participação brasileira na libertação da Itália durante a Segunda Guerra Mundial fez menos vítimas fatais. Portanto, o Brasil assistiu nos anos 1930 a uma luta curta, ingrata e perdida – desde o seu começo.

Como o título deste texto sugere, há muito o que se lembrar e esquecer com relação ao movimento. Quando, em 17 de abril deste ano, acompanhava na TV o espetáculo circense em que se transformou a votação da Câmara Federal sobre o afastamento da presidente Dilma, percebi como o discurso raivoso, reacionário e conservador ainda insiste em tomar para si a memória de um acontecimento político complexo.

Me refiro à fala do deputado Eduardo Bolsonaro, (PSC-SP) filho de Jair Bolsonaro. Antes de proferir seu voto, o deputado esbravejou que tomava sua decisão “pelo povo de São Paulo nas ruas com o espírito dos revolucionários de 32...”

Sua expressão de rememorar a Guerra de 1932 transmite uma suposta seriedade no voto e comprometimento com a decisão. Pobres paulistas e brasileiros.... Enquanto a memória das batalhas e do derramamento de sangue servir para compor este tipo de fala, estaremos longe de encontrar a resposta mais sensata para, de fato, entender o porquê da valorização de 1932.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

BRICS ainda é prioridade estratégica para o Brasil

Por Oliver Stuenkel* (El País, 1/7/2016)

Há quase dez anos, em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva era um dos palestrantes mais esperados no Fórum Econômico Mundial de Davos. Um enorme fluxo de investimentos transbordava um dos mercados emergentes mais empolgantes do mundo, e o chanceler Celso Amorim — que mais tarde seria considerado “o melhor ministro das relações exteriores do mundo” pela revista norte-americana Foreign Policy — estava começando a expandir a presença econômica e diplomática do Brasil ao redor do mundo.

Era a primeira vez que um país da América do Sul estabelecia uma rede tão ampla de embaixadas, a ponto de rivalizar com as de grandes potências. Um ano mais cedo, Amorim começara a se encontrar regularmente com seus pares na Rússia, Índia e China para discutir como os países BRIC poderiam fortalecer seus laços de cooperação e articular posições para lidar com desafios globais de forma conjunta. O grupo BRICS (que desde 2010 passou a incluir a África do Sul) se tornou rapidamente uma das inovações mais importantes da política mundial desde a virada do século, e foi capaz de chamar a atenção de potências tradicionais para a necessidade de adaptar estruturas globais a novas realidades.

De volta a 2016, o desempenho da economia brasileira é um dos piores do mundo, o país é comandado por um Governo interino envolto em escândalos e abalado por protestos, medidas de austeridade e uma espantosa investigação de esquemas de corrupção que ameaça as carreiras de grande parte da elite política do Brasil. Observadores internacionais consideram os BRICS como algo do passado, e alguns analistas brasileiros acreditam que o grupo já não deve ser prioridade para a política externa brasileira.

Eles não poderiam estar mais errados.

A sugestão de negligenciar o BRICS não leva em consideração as amplas vantagens estratégicas que a participação no grupo traz ao Brasil. Não tratá-lo como uma prioridade (por exemplo, se esquivando de ir à Cúpula anual) seria um erro cabal. Há três razões pelas quais o grupo é essencial para os interesses estratégicos do Brasil.

A primeira e mais importante é que a adesão aos BRICS providencia ao Brasil acesso direto e institucionalizado às lideranças políticas em Nova Déli e Pequim — um privilégio que o país não necessariamente teria de forma automática a cada ano. Apesar da desaceleração do crescimento econômico, espera-se que a China cresça em torno (ou até mais) de 6% em 2016 e 2017. O desempenho da Índia tem sido ainda melhor e espera-se que o país crescerá mais rápido do que a China.

O FMI prevê que a China e a Índia contribuirão com mais de 40% da expansão da economia global até 2020 – em comparação, os Estados Unidos contribuirão com apenas 10%. Atualmente, já se contabiliza mais riqueza privada na Ásia do que na Europa, e espera-se que a China, independentemente da atual desaceleração, supere os Estados Unidos como a maior economia do mundo.

O Brasil deve fazer muito mais para se adaptar a essa nova realidade, e não há dúvidas de que o futuro do país dependerá em grande parte da Ásia. O grupo BRICS importa neste contexto porque representa muito mais do que cúpulas presidenciais anuais. Na realidade, o grupo inclui mais de 15 reuniões a nível ministerial por ano, que auxiliam na promoção de cooperação intra-BRICS em áreas tão diversas como agricultura, educação, economia, ciência e tecnologia — sem mencionar o Novo Banco de Desenvolvimento, criado no âmbito do BRICS.

Em segundo lugar, a próxima reunião de Cúpula do BRICS na Índia em outubro é uma chance única para o presidente interino Michel Temer apresentar como ele está tentando superar as atuais adversidades do Brasil. Com a reputação do país em frangalhos, investidores asiáticos precisam ser reassegurados de que a investigação sobre corrupção em andamento é um passo na direção certa, que em última instância levará o Brasil a ser um país mais amigável para investidores. Temer, portanto, deveria ser acompanhado dos principais líderes da sua equipe econômica, os quais deveriam visitar investidores em vários centros financeiros asiáticos após o encontro da cúpula.

Finalmente, a adesão do Brasil ao grupo BRICS, junto com seu status de membro fundador no Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, são sinais importantes de que a presença global estratégica do país estabelecida na primeira década do século 21 é permanente e não será afetada substancialmente pela crise atual. As instituições citadas acima são símbolos de um maior deslocamento em direção à Ásia, que impactará o Brasil mais do que muitos estão cientes.

Enquanto a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil em 2009, a elite brasileira na política, nos negócios, na mídia e na academia estão ainda lamentavelmente ignorantes em relação à China e à Ásia como um todo. Pouquíssimos diplomatas brasileiros falam chinês e jovens estudantes nas melhores universidades brasileiras ainda preferem passar seus semestres de intercâmbio em Barcelona ou Paris em vez de Pequim ou Xangai. Não há um único programa de dupla diplomação entre universidades brasileiras chinesas e, no lugar de enviar correspondentes para a China, muitos jornais brasileiros compram conteúdo relacionado à China de jornais estrangeiros.

Isso mostra que o Brasil está entre os grandes países menos preparados para o surgimento de uma ordem mundial centrada na Ásia. Considerando a crescente influência da China na América do Sul, esta falta de preparo cria sérios riscos estratégicos. Como a influência crescente da China na Venezuela afeta os interesses nacionais brasileiros? Como a região como um todo deveria responder ao papel da China? Nenhuma dessas questões tem sido abordada a sério. 

O fato de que alguns pensadores (particularmente entre a esquerda da América Latina) ainda veem o crescimento da influência chinesa na região como positiva simplesmente porque Pequim é tido como adversário de Washington mostra quão incipiente é o debate na região — como o exemplo africano mostra, as coisas são bem mais complexas do que isso.

Independentemente da orientação ideológica de seu Governo, qualquer país no mundo hoje deve construir o conhecimento necessário para se envolver significativamente com a Ásia (e especialmente a China), que será em breve o centro econômico do mundo. Com o grupo BRICS, o Brasil já tem a sorte de ser parte de um fórum institucionalizado que facilita esse processo.

É pouco provável que o Brasil se afastará do grupo de maneira abrupta. O chanceler sabe da importância do BRICS. No entanto, considerando que há algumas dúvidas em Pequim e Déli em relação ao compromisso do novo Governo com o grupo, José Serra faria bem em enviar um sinal inequívoco de que o Brasil está disposto a não só manter, mas a fortalecer a cooperação intra-BRICS.

* Oliver Stuenkel é professor-adjunto de Relações Internacionais da FGV/SP

A Otan ainda existe? Aliança parece ter esquecido o seu propósito

Por Jochen Bittner* (UOL/NY Times, 08/07/2016)

Tratados são feitos para transformar uma vontade em uma obrigação. Mas o que acontece quanto essa vontade muda? Os eleitores britânicos acabaram de dar um exemplo, apesar de mal informados, ao rejeitarem a ideia de que os tratados da União Europeia acrescentam valor ao seu país. Por mais desconfortável que possa ser, há motivo para se olhar de forma crítica para um acordo ainda mais antigo que une as nações do Ocidente: o tratado da Otan.

Assinado há 67 anos, o tratado encerra a promessa de que um ataque a um dos países membros da organização será considerado um ataque a todos. Essa cláusula de solidariedade, o Artigo 5º, foi escrita por políticos de outra geração, com experiências mais duras em uma ordem mundial mais simples. É claro, você nunca sabe até ser testado, mas vale a pena perguntar: o pensamento que mantém a Organização do Tratado do Atlântico Norte já está morto?

Sim, era apenas um exercício. Mas quando a Polônia pediu no mês passado aos seus aliados da Otan para ajudar a rechaçar invasores hipotéticos que penetraram no seu país pelo leste, a Alemanha ficou irritada. O exercício, chamado Anakonda, com 25 mil tropas de mais de 20 países, o maior desde o final da Guerra Fria, visava ser uma mensagem para Moscou, uma demonstração de força antes da cúpula da aliança nesta semana, em Varsóvia. Berlim enviou uma mensagem própria para a Polônia, contribuindo com um total de 400 soldados, nenhum integrante de tropas de combate.

Além da participação modesta da Alemanha, o ministro das Relações Exteriores alemão, Frank-Walter Steinmeier, atacou o mais recente exercício da Otan no Leste Europeu como "brandir sabres e dar gritos de guerra barulhentos". A aliança, disse Steinmeier, faria bem em "não proporcionar quaisquer desculpas para um novo velho confronto".

Era uma lógica que alguém esperaria ouvir do ministro das Relações Exteriores russo, não do alemão. Steinmeier também disse que a Alemanha não estava se esquivando de sua responsabilidade e de que ninguém poderia considerar o posicionamento previsto de quatro batalhões adicionais na Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia como uma ameaça à Rússia. Mas mesmo assim, sua declaração foi, na melhor das hipóteses, ambivalente.

A ambivalência pode causar grandes estragos a uma aliança cujo valor de dissuasão se apoia exclusivamente em sua credibilidade. A Alemanha não é o único país europeu a tornar indistinta a linha entre dissuasão e fomentação de guerra. A França, me dizem fontes na Otan, oficialmente não queria chamar o Anakonda de um exercício de guerra da Otan, por medo de desagradar o governo russo, como se o Kremlin não tivesse expandido enormemente o orçamento militar russo nos últimos 15 anos, mesmo sem nenhuma provocação externa.

Se exercícios podem criar rachas na aliança ocidental, o presidente russo não precisa de muita imaginação para perceber como submeter a Otan a um teste definitivo: empregar uma tática híbrida de guerra para mergulhar os Estados Unidos e os europeus em dúvida sobre se uma ação militar é necessária e que diplomacia é possível. O presidente Vladimir Putin poderia, por exemplo, instigar sentimentos separatistas entre os cidadãos de etnia russa na Lituânia e fornecer armas para os mais exaltados entre eles. Então ele só precisaria se reclinar e assistir a aliança militar mais poderosa na história se desintegrar enquanto briga em torno de como reagir.

É fácil imaginar como o cenário se desdobraria: a Polônia e os países bálticos pediriam por uma resposta forte para prevenir outra anexação, como a da Crimeia. Alemães e franceses pediriam por negociações com Moscou, duvidando que o Artigo 5º seja invocado. Gregos, italianos e espanhóis deixariam claro que suas economias já sofreram demais devido às sanções contra Rússia após a anexação da Crimeia. E grande parte do público por toda a Europa, manipulado pela propaganda russa, se perguntaria se os russos não estão certos em tentar apoiar seus conterrâneos nos países bálticos. Afinal, não foram os imperialistas Estados Unidos que provocaram isso tudo, alguns argumentariam, assim como agentes de Washington estiveram por trás do golpe em Kiev?

Os autores do tratado da Otan, em 1949, podiam contar com algo que alguém poderia chamar de patriotismo ocidental. Ao menos esse sentimento existia na esfera do governo. Mas hoje ele deu lugar ao relativismo e falta de confiança. O que antes eram princípios de política externa sólidos agora são moeda de troca em campanhas eleitorais, tanto pela esquerda quanto pela direita.

O Partido Social-Democrata de Steinmeier está buscando um novo parceiro de coalizão e tentando se abrir aos eleitores que consideram a Otan como, no mínimo, uma coagressora no tabuleiro de xadrez da Eurásia. E Donald Trump ataca a Otan para inflamar os sentimentos de injustiça nos Estados Unidos, acusando os aliados europeus de "explorarem" o contribuinte americano. Barack Obama usou palavras diferentes para dizer a mesma coisa. Ele chamou os europeus de "caronistas" não dispostos a gastar uma "parcela justa" em defesa, uma alegação que certamente não está errada.

A Otan tenta impedir esse declínio empunhando seu maior sabre. Fontes dentro da aliança dizem que a dissuasão nuclear é uma prioridade. Um artigo publicado dias antes da cúpula em Varsóvia na revista "Otan Review" parece articular a nova posição. O que é necessário agora, diz o artigo, é "enfatizar a natureza dissuasiva e de último recurso das armas nucleares". O quartel-general da Otan quer transformar os países bálticos no que Berlim Ocidental já foi: um fio de disparo nuclear. Mas o governo alemão pode rejeitar isso como uma provocação ainda maior a Moscou, e o que visaria fortalecer a determinação poderia criar ainda mais rachas na aliança.

A Otan sempre foi um casamento de conveniência, mas não sem nenhum afeto. Mas com todas essas dúvidas partindo a aliança (sua coesão política, suas cadeias de causa e efeito e a disputas em torno dos custos de segurança), é difícil imaginar que a Europa e os Estados Unidos elaborariam, caso tivessem a chance em 2016, outro Artigo 5º.

*Jochen Bittner é um editor político do semanário "Die Zeit"

terça-feira, 21 de junho de 2016

Habemus sinopse, salgueirenses!

A DIVINA COMÉDIA DO CARNAVAL

“Carnaval do Rio, vendaval de sentidos! (…) Tu és o espasmo da fera na civilização”. (João do Rio)

Quem sou eu nessa selva de ilusões que se ergue quando o mundo real acaba em cinzas para renascer vibrante nas chamas de mais um Carnaval?

Muito prazer! Sou um aventureiro errante, passageiro do delírio. Mas podem me chamar de poeta…

Embarco numa viagem desvairada pelos três reinos místicos de Momo, navegando por um rio de escaldantes tentações.

“Se ‘essa barca’ não virar / Olê, olê, olá… Eu chego lá!”

De mente aberta e alma liberta, lá vou eu!

ALEGRIA INFERNAL

No “Balancê, Balancê”, a embarcação avança pelas águas assombradas de onde avisto as loucas fantasias dos que se entregam sem temor às garras da folia. São milhares de vozes que ecoam pelos abismos mais profundos, entoando uma ladainha profana, hino de tantos carnavais:

“Mas que calor ô-ô-ô-ô-ô-ô”!

Estou em pleno Inferno, ardendo numa incontrolável febre de alegria. No rebuliço dos salões subterrâneos, o Bloco dos Mascarados arma as trincheiras para uma intensa batalha de confetes e serpentinas, libertando as feras que se escondem em cada um de nós.

No decorrer do trajeto, vejo uma procissão pagã inundando de beleza a Avenida das Labaredas, onde ressoam alto os clarins pedindo passagem para os “Tenentes do Diabo”. Numa triunfal aparição, é carregado em glória o Senhor das Profundezas, que uma vez por ano segue a comandar o soberbo desfile das Grandes Sociedades do Além-Túmulo. Nessa euforia aterradora, a ordem do Rei do Mundo Inferior é lavar a alma num irresistível transe coletivo, como se fosse o último Carnaval sobre a face das trevas.

Mas sinto que é hora de partir, ainda que atraído pelas fogosas tentações espalhadas no caminho maligno que tanto me seduz. Sigo, então, a minha trajetória. Ainda há muito Carnaval para pular.

PECADO É NÃO SE ENTREGAR…

Depois de abandonar as veredas infernais, eis que estou aos pés do imponente monte Purgatório, onde o Cordão dos Penitentes se divide em sete grupos de foliões, cada qual com seu pecado capital. Em um cortejo alucinante, sacodem a ladeira sem culpa, sem juízo e sem medo de ser feliz. Afinal, não há castigo para pecados cometidos em nome do prazer.

Mas que folião sou eu nesse reino entre o Inferno e o Céu? Para avançar pela trilha da temperança, é preciso mergulhar nas águas que purificam o espírito e seguir o caminho da salvação.

“Vê? Estão voltando as flores…”

O cenário se modifica e dá lugar a um gracioso cortejo de sonhos e recordações. Abram alas para o esplendor dos Ranchos e suas deslumbrantes flores, aves exuberantes e borboletas telúricas. É a natureza se revelando em um suntuoso Jardim do Éden, bordando de beleza a travessia rumo às portas do reinado derradeiro de Momo.

A DIVINA FOLIA

Purificado, cruzo a grande entrada que me defronta com a visão divinal do firmamento, onde estrelas giram como um carrossel místico suspenso no infinito. Ao seguir o rastro de poeira cósmica, vou percorrendo um universo magnífico e reluzente. Nos altos círculos celestiais, um Corso espacial desfila encanto e lirismo:

“E a lua anda tonta… com tamanho esplendor!”

A minha alma caminhante sorri diante da vastidão do espaço ornamentado de saudade. Decorado por grandiosos painéis multicores, flutuo em glória rumo à Apoteose que encerra esta jornada foliã. Chego, enfim, ao meu destino final!

No último portal do Paraíso, sinto o pulsar da magia dos tambores que emanam o axé das divindades. Iluminado, adentro o templo da divina criação, na dimensão afro-cósmica dos reis, heróis e deuses de Yorubá.

Nesse plano superior, ponho-me diante da Santíssima Trindade do Carnaval, que molda em arte tudo o que nasce do coração do povo. Pai, Filho e Espírito Santo… Juntos de novo na missão de interpretar a alma da nossa gente. Assim, celebro, extasiado, a beleza criada pelas mãos do gênio Arlindo, o eterno querubim arlequinal, a trançar a Divina festança entre rendas e fitas; contemplo a obra magistral deJoãosinho, o menino que virou rei, a tecer em luxo e brilho o maior espetáculo do universo; e, por fim, reverencio o supremo Deus com voz de trovão, Fernando Pamplona… Salve o mestre de muitas artes que enfeita, nas altas esferas de Orum de Todos os Deuses, a grande Festa para os Reis Negros da Academia do Samba, o meu sagrado Paraíso!

Em estado de graça, completo a minha Odisseia carnavalesca. É hora de revelar em poesia todas as maravilhas que vi e que senti ao longo do percurso.

Meu nome é Dante! Sou poeta peregrino que anuncia o grande aprendizado desta Divina Comédia:

A REAL FELICIDADE ESTÁ EM NOSSA INADIÁVEL MISSÃO DE

CARNAVALIZAR A VIDA.

Há um Dante dentro de você. Liberte-o!

                                         Renato Lage, Márcia Lage e Diretoria Cultural


SETORES DO DESFILE:

 Setor 1 – INFERNO
– A Barca para o Inferno
– Os Tenentes do Diabo

Setor 2 – PURGATÓRIO
2.1 – O Cordão dos Penitentes – Os Sete Pecados Capitais
2.2 – Ranchos: A Purificação

Setor 3 – PARAÍSO
3.1 – O Corso Espacial
3.2 – A Santíssima Trindade no Orum de Todos os Deuses

domingo, 22 de maio de 2016

"Desfazer o que Lula fez em política externa não é bom para o Brasil"

Por Luiza Bandeira (BBC Brasil, 20/05/2016)

As medidas que "desfazem" ações dos governos do PT - como parte da guinada na política externa brasileira proposta pelo novo ministro das Relações Exteriores, José Serra - não são boas para o país, na visão do editor de uma das principais revistas dedicadas a relações internacionais do mundo, a Foreign Policy.

"Se Serra acha que reformar a política externa é desfazer o que o Lula fez, ele não está agindo em nome dos interesses do Brasil", disse à BBC Brasil David Rothkopf, em referência à possibilidade de fechamento de embaixadas abertas em gestões anteriores.

Após assumir o posto de chanceler do governo interino de Michel Temer, Serra criticou o que chamou de "partidarismo" da política externa dos governos do PT e indicou que, além de buscar uma gestão focada em comércio internacional, possivelmente fecharia embaixadas abertas por Lula em países da África e do Caribe.

Para Rothkopf, Lula "fez mais para aumentar o peso do Brasil no cenário mundial do que qualquer presidente do Brasil". Ele também dá crédito ao ex-chanceler Celso Amorim - que chegou a chamar de "provavelmente o melhor chanceler do mundo" em um artigo em 2009 - pelo papel em transformar o país em um ator de peso no cenário internacional.

O CEO e editor da Foreign Policy, no entanto, critica a excessiva complacência do governo com o regime de Hugo Chávez sob Lula e a perda de importância da política externa sob Dilma.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista, separados por temas:

Discurso de Serra

"O maior problema que o Brasil tem em termos de política externa é que o país está paralisado e perdeu muita credibilidade. Não é só que Dilma tenha sofrido impeachment ou que haja uma nuvem de suspeitas sobre a cabeça de Temer, é que há uma nuvem de suspeitas sobre a cabeça de muita gente no Congresso, no Executivo, e é muito difícil saber quando esse escândalo de corrupção vai parar de prejudicar o Brasil.

Então os mercados estrangeiros perderam a confiança no Brasil, não tem certeza de com quem vão lidar, e esse tipo de previsibilidade, saber com que você está lidando, como são as políticas, é absolutamente crucial.

Então o discurso de Serra não significa nada se não soubermos por quanto tempo essa administração vai ser efetiva, ou se vai ser efetiva."
Política externa do PT

"Sobre as críticas às políticas do governo de esquerda, a questão é: qual governo? Lula, no auge de sua popularidade, fez mais para aumentar o peso do Brasil no cenário mundial do que qualquer presidente do Brasil, seja por abrir embaixadas e consulados pelo mundo, seu papel de liderança, Celso Amorim e o Itamaraty envolvidos nos assuntos mais importantes e dizendo 'o Brasil é um dos países mais importantes do mundo e temos que ser tratados desta forma'. Aderir à ideia dos Brics foi outro componente disso, a diplomacia Sul-Sul, e também o fato de que as coisas estavam funcionando no Brasil.

Dilma não tinha muito tato para isso, Antonio Patriota era ótimo, mas ela não o empoderou, controlou muito, houve tensões com o Itamaraty. Depois veio Mauro Vieira, que era também muito capaz, mas era muito claro que ela estava com problemas na maior parte do tempo em que ele foi chanceler. De novo, se há um problema interno, isso se transfere para a política externa.

Ouço Serra e penso: é possível que o regime de Lula tenha se inclinado demais para Chávez e ignorado problemas no regime (venezuelano)? Sim, com certeza. Eles foram muito permissivos na mudança de Chávez para uma ditadura e nos abusos de direitos humanos. Eu nunca sugeri que a política externa do PT era perfeita. Teria feito mais sentido ter uma política equilibrada.

Mas se o Brasil voltar às políticas pré-Lula, que eram essencialmente 'vamos ter políticas de comércio com algumas partes do mundo, não vamos causar problemas, vamos adotar um tom cético-reflexivo em relação aos EUA, etc.', isso não seria bom.

Mas toda política externa começa com força interna, e neste momento o Brasil tem um problema tão grande que torna a política externa uma nota de rodapé dentro da política do governo."

Comércio bilateral

"Dependendo dos acordos bilaterais, priorizá-los pode ser uma estratégia mais eficiente. A maioria dos esforços recentes com acordos multilaterias resultaram em inação ou, se implementados, acordos ineficientes.

Mas isso parece ecoar uma noção de que política externa é essencialmente política de comércio. E a política externa pré-PT era muito orientada para comércio, e não pelo protagonismo no cenário político mundial.

Eu acho que em um país de 200 milhões de pessoas, uma das sete maiores economias do mundo, com a quinta maior população e área, merece estar na discussão política também.

Não tem nada de errado em querer acordos bilaterias, mas isso por si só não é política externa."

Fechamento de embaixadas

"No meu ponto de vista, a abertura de embaixadas foi uma forma de aumentar a influência do Brasil. E acho que, sejam quais forem as boas intenções que Serra possa ter, não é uma boa política, como aprendemos com os EUA, chegar e falar 'vou fazer o oposto do que meu antecessor fez'.

George Bush foi e fracassou em lugares como o Oriente Médio e Obama fez o oposto, foi muito pouco ativo nesses lugares, e isso foi um problema.

Se Serra acha que reformar a política externa é desfazer o que o Lula fez, ele não está agindo em nome dos interesses do Brasil. A política externa tem que ser guiada pelo interesses de longo prazo.

Minha reação inicial é que provavelmente não será estratégico fechar embaixadas, mas não tenho familiaridade suficiente com os problemas financeiros do Brasil."
Respostas 'duras ' a vizinhos e impeachment

"É dificil dizer exatamente como será essa relação no longo prazo, pode ser bom se colocar pressão nesses governos (como Venezuela) para se comportarem de forma mais responsável.

Mas o Brasil pertence ao cenário global, como um dos países mais importantes do mundo, então as políticas têm que olhar muito além do seu quintal.

Não sei se o problema (de Serra) vai ser convencer outros países de que o governo é legítimo, mas se é um governo de confiança, se estará lá por um bom tempo, se terá mandato para fazer as coisas, se representa os brasileiros.

Parece impróvavel que Dilma renuncie, e isso significa que o governo tem um prazo de 6 meses, não sabemos o que acontece depois. O presidente está cercado de suspeitas, os líderes do Congresso, não sabemos onde os dominós vão parar de cair.

Os governos estrangeiros serão educados com Serra, vão receber bem as mudanças que acharem que são de seu interesse, mas eles vão esperar para ver o que vai acontecer."

terça-feira, 17 de maio de 2016

Serra e o subterrâneo do Itamaraty

Por Roberto Simon* (Folha de SP, 16/05/2016)

Caso José Serra, novo ministro das Relações Exteriores, desça o elevador em frente a seu gabinete e cruze a rua até o prédio anexo ao Palácio do Itamaraty, onde fica o arquivo do ministério, poderá encontrar papéis carcomidos com trechos de sua biografia.

Serra, afinal, é velho conhecido da Casa de Rio Branco. A instituição que agora comanda o espionou por anos -quando era ainda "o asilado territorial José Serra", nas palavras do embaixador da ditadura no Chile, Antonio Candido da Câmara Canto.

A chancelaria listava-o, em 1974, entre os "elementos brasileiros subversivos considerados perigosos" que haviam escapado após o golpe contra Salvador Allende. O então professor universitário chegara a dormir uma noite no Estádio Nacional de Santiago, a arena convertida em campo de concentração.

Teve, contudo, a sorte de ser solto antes de cinco agentes do Brasil começarem a dar expediente no local, auxiliando torturadores chilenos. Naqueles dias, um bilhete do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo sobre Serra avisava: "trata-se de 'boa gente', que bem merece ser 'tratado' pelos chilenos".

Anos antes de receber asilo na missão italiana no Chile, Serra já era vigiado por arapongas-diplomatas. A chancelaria se encolerizava em especial com seu trabalho na Frente Brasileira de Informações, grupo de exilados que compilava e disseminava mundo afora casos de tortura no Brasil.

A embaixada em Santiago fez intenso lobby junto ao governo Allende para que o boletim da frente fosse proibido e os envolvidos, expulsos do Chile. Fracassou duplamente.

O ministério suspeitava (com razão) que Serra era "um dos mais ativos pombos-correios" da organização. Documentos secretos registram sua passagem por Uruguai, Argentina e Peru para atar
nós da rede de denúncias, além de uma viagem à Europa socialista.

O Itamaraty espionava suas mais prosaicas atividades, de jantares a conferências sobre inflação. Em 1969, Serra tapeou a vigilância da ditadura e tirou um passaporte no consulado em Santiago. O caso custou a carreira do cônsul-adjunto.

O novo ministro viveu um passado ainda quase ignorado por estudiosos das relações internacionais. A versão oficial construída desde a redemocratização é que, institucionalmente, o Itamaraty se insulou dos arbítrios da ditadura e se ateve aos "interesses permanentes" de Estado. Nela, meganhas e delatores são a exceção que confirma a regra.

Os arquivos recém-revelados contam outra história. A chancelaria era parte fundamental do aparato repressivo fora do território nacional, espionando centenas de brasileiros como Serra.

Tratou-se de uma colaboração institucional que violou de modo sistemático direitos e, em alguns casos, fez "desaparecer" brasileiros. Claro: alguns honrosos diplomatas se arriscaram agindo contra a ditadura, por exemplo, ao transportar listas de torturadores em malas diplomáticas.

O Itamaraty de hoje é outro. À frente do ministério que o perseguiu, Serra tem a oportunidade de jogar luz sobre esse passado e provar que suas lições foram assimiladas.

Em um governo de feições assustadoramente retrógradas, o ex-"asilado territorial" deve honrar seu passado de luta e provar que o Brasil, a maior democracia da América Latina, reconhece suas responsabilidades na promoção dos direitos humanos dentro e fora de casa.

*Roberto Simon é mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard (EUA). Prepara para a editora Companhia das Letras o livro "O Brasil de Pinochet"

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Respostas 'duras' de Serra a críticas de países vizinhos dividem Itamaraty

Por Ricardo Senra (Folha de SP, 16/05/2016)

A troca de poder na Presidência da República reverbera também em embaixadas, consulados e corredores do Itamaraty. Parte do corpo diplomático reagiu mal aos primeiros passos da gestão do novo chanceler José Serra, nomeado na última quinta-feira pelo presidente interino Michel Temer.

O grupo insatisfeito classifica as primeiras notas, divulgadas na sexta-feira pelo gabinete do novo ministro, como "eleitoreiras" e "agressivas", fugindo ao tom tradicional da instituição.

Os destinatários dos comunicados oficiais eram países como Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua - todos críticos à legitimidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Nas notas, a gestão de Serra responde ao posicionamento dos vizinhos com termos como "falsidades", "preconceitos" e "absurdo".

Nesta segunda, foi a vez de uma resposta a El Salvador, que criticou o impeachment e decidiu suspender os contatos oficiais com o Brasil. Em nota, o Itamaraty diz que a medida do país caribenho revela "profundo desconhecimento" sobre a legislação brasileira.

Para os críticos, o posicionamento de Serra colocaria acordos comerciais em risco (só com a Venezuela, o Brasil teve superavit comercial de R$ 38 bilhões entre 2004 e 2015) e atrapalharia a reputação diplomática do país. Eles também sugerem que os comentários enfáticos teriam "fins eleitoreiros", de olho em uma possível candidatura do ministro à Presidência da República em 2018.

De outro lado, alas do Ministério das Relações Exteriores entendem como "natural e necessária" a ofensiva do tucano a governos historicamente aliados da gestão petista. Para esses diplomatas, Serra e Temer precisam responder enfaticamente a questionamentos sobre a legitimidade do governo interino para que ele possa ganhar relevância na comunidade internacional.

Uma terceira via sugere ainda que o novo chanceler estaria antecipando um diálogo com possíveis sucessores de Nicolás Maduro (Venezuela) e Rafael Correa (Equador) caso se confirme uma guinada à direita em todo o continente nas eleições presidenciais em curso.

DISPUTA DE 2018

A reportagem ouviu membros de diversos níveis da instituição: de oficiais de chancelaria a embaixadores, passando por diplomatas. Todos pediram anonimato - por medo de represálias ou por temer dar declarações públicas "prematuras" sobre as mudanças no Itamaraty no governo interino.

Segundo a BBC Brasil apurou, Serra esteve duas vezes no Palácio do Itamaraty desde a nomeação. Na sexta-feira, saiu do edifício às 23h. No dia seguinte, conversou com líderes de sua nova equipe das 12h às 14h, já construindo seu discurso de posse.

Ele se apresentará oficialmente na próxima quarta-feira, quando falará pela primeira vez à frente do ministério.

"Nosso receio é que o Itamaraty seja usado como plataforma para avanço em interesses de curto prazo da política interna, em vez de perseguir objetivos de longo prazo do Estado brasileiro", avaliou um diplomata à BBC Brasil.

Ele se refere a uma possível candidatura do tucano à Presidência da República em 2018. Com as críticas públicas a lideranças de esquerda do continente, Serra estaria satisfazendo parte de seu eleitorado, que protesta nas ruas e redes contra o que entende como "eixo bolivariano" na América Latina.

Uma figura importante do Itamaraty minimiza os efeitos da suposta estratégia. "Serra foi um bom ministro da Saúde e nem por isso conseguiu se catapultar à Presidência da República."

"Ele se mostra como ministro candidato", rebate outro. "(Suas declarações) jogam para uma plateia treinada a odiar cegamente a Alba e a Unasul (órgãos multilaterais formados durante a predominância de governos de esquerda no continente)."

Na avaliação do professor Oliver Stuenkel, professor da FGV de São Paulo e especialista em relações internacionais, esse tipo de estratégia, se existir, é algo esperado. "A política externa sempre é feita com objetivos internos."

"Acho que ele tem boa perspectiva para 2018 porque a política externa é uma fonte de boas notícias", afirma. "Em um momento de cortes e ajuste, o ministro da Saúde dará notícias ruins, o mesmo para o da Fazenda ou do Planejamento. Sem avaliar aqui a orientação ideológica de Serra, ele usará sim o Itamaraty para produzir noticias positivas, com acordos binacionais, assinaturas de tratados, soluções de problemas de fronteira etc."

Stuenkel ressalta que a prática foi realizada em gestões anteriores. "Lula começou a promover o rótulo de potência emergente ao Brasil no justo momento em que o mensalão começou a surgir internamente. Foi uma tentativa bem-sucedida de usar a política externa para a produção de boas notícias."

TEOR DAS NOTAS

Em 2010, quando concorreu com Dilma Rousseff nas eleições presidenciais, o tucano disse que o governo boliviano é "cúmplice do tráfico" de cocaína e que "não teme incidentes diplomáticos" com o país vizinho.

"A melhor coisa diplomática para o governo da Bolívia é passar a combater ativamente a entrada da cocaína no Brasil", afirmou na época, em referência ao presidente Evo Morales, importante aliado das gestões Lula e Dilma no continente.

Mais recentemente, Serra fez críticas ao programa Mais Médicos, que traz médicos estrangeiros, na maioria cubanos, para atuar como médicos de família em regiões com pouca oferta no país.

"Afastar-se de países como Cuba, por exemplo, por motivações ideológicas, em um momento em que até os Estados Unidos estão se reaproximando, é ir na contramão da história", avalia um dos críticos.

Ele se refere à nota divulgada no último dia 13, logo após o anúncio da posse de Serra, em que o ministério "rejeita enfaticamente as manifestações dos governos da Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, assim como da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América/Tratado de Comércio dos Povos (ALBA/TCP), que se permitem opinar e propagar falsidades sobre o processo político interno no Brasil".

O texto oficial prossegue: "Esse processo se desenvolve em quadro de absoluto respeito às instituições democráticas e à Constituição Federal".

Em outra nota, respondendo ao secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Ernesto Samper, que sugeriu uma ruptura do sistema democrático brasileiro caso o impeachment se confirme, o ministério afirmou que "os argumentos, além de errôneos, deixam transparecer juízos de valor infundados e preconceitos contra o Estado brasileiro (...) e fazem interpretações falsas sobre a Constituição e as leis".

O tom surpreendeu alguns diplomatas. "A linguagem usada nas duas notas não soa a notas diplomáticas brasileiras. Isso vale mesmo na comparação com o tom usado na política externa do presidente Fernando Henrique", avaliou um dos críticos.

"Leva-se anos construindo a imagem de garantia da estabilidade sul-americana e, em um ato apenas, se coloca tudo a perder."

À BBC Brasil, o embaixador Frederico Meyer, porta-voz do Itamaraty, disse que "a nova administração está começando e não há nenhuma mudança de instrução e orientação".

Sobre as críticas internas às notas, Meyer afirmou que elas não são suficientes para se avaliar a postura do ministério.

"É muito cedo para julgar ou avaliar", afirmou. "São comentários anônimos, eles existem em qualquer instituição. Há pessoas que agradam e que desagradam."

'Sempre haverá críticas'

Na avaliação do professor Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, "nenhum chanceler poderoso gera unanimidade dentro do Itamaraty.

"Sempre haverá críticas. Foi assim com Celso Amorim, será assim com Serra", afirma.

Ele classifica as notas emitidas pela nova gestão como um posicionamento "como ministro forte de um governo no qual disputa espaço com a equipe econômica".

Para o professor Oliver Stuenkel, as cartas aos dirigentes de países vizinhos devem ter pouca influência nos rumos diplomáticos do continente.

"A Venezuela hoje não apoiaria o governo Temer independentemente da nota. A Bolívia idem, isso já está dado", afirma. "Mesmo sem essas notas, eles não dariam nenhum apoio diplomático ao Brasil."

Stuenkel ressalta que as previsões de resultados para eleições presidenciais no Peru e no Equador mostram fortalecimento de candidatos de centro-direita. "Sem juízo de valor, a tendência mostra um isolamento crescente da Venezuela. O risco dessas notas não é tão grande", avalia.

Parte dos diplomatas discorda e vê riscos em um possível afastamento.

"É importante esclarecer que a proximidade com os países vizinhos não é uma diretriz do governo, mas uma prática de Estado iniciada há mais de 100 anos, com o próprio Barão do Rio Branco", diz uma das entrevistadas. Ela teve altos e baixos, mas foi consagrada pela própria Constituição (artigo 4º, parágrafo único)."