sábado, 27 de fevereiro de 2016

Ainda os malandros salgueirenses

Por Murillo Victorazzo

Por sua riqueza, apelo, simbolismo e esmerada pesquisa, vale transcrever a justificativa de enredo do carnaval passado do Salgueiro, redigido pelo Departamento Cultural da escola, comandado pelo jornalista João Gustavo Melo:

"A Ópera dos Malandros"

"Um enredo sobre os Malandros reverbera alto no corpo social e na alma mística de uma escola de samba. A identificação direta do sambista com o personagem foi fundamental para trazer para a avenida temas e situações relacionadas a essa figura tão presente no imaginário carioca e brasileiro. Por isso, o Salgueiro se lançou de corpo e espírito nessa história que nos leva a desfilar por aspectos sociais, culturais, históricos e religiosos dos Malandros, que guardam em si um pouco de cada um de nós. Um enredo que, embora prime pela simplicidade e pela linguagem direta, traz em si a complexidade de uma figura que reúne malícia e jogo de cintura diante das dores e delícias do dia a dia.

OS BARÕES DA RALÉ – O Malandro é o herói e o anti-herói brasileiro. Tem em si, ao mesmo tempo, o espírito romântico, estrategista, integrador, cordial e negociador. É carismático, amado, invejado, desejado, temido, perseguido e cultuado. É o sujeito que transita entre as altas castas da sociedade e as camadas mais populares, de onde emergiu para conquistar o seu lugar no mundo. Caminha com desenvoltura entre as classes sociais, no limite entre a polidez exigida pela ordem dos espaços da chamada burguesia com quem convive e a informalidade do povo marginalizado que representa. Mergulhado sem culpa na boemia, sempre às voltas com amores fugazes com mulheres para as quais não importa a “reputação”, “o Malandro traz consigo as marcas do desejo e do prazer, além de representar as pulsões sufocadas pelo homem civilizado, enfim liberadas nas aventurosas e lascivas noites urbanas” (CRISTINO, 2005).

De acordo com o Dicionário da História Social do Samba (LOPES & SIMAS, 2015), uma das hipóteses para a origem da palavra “Malandro” vem do termo malandrino, nome italiano que, entre diversos significados, serve para caracterizar um indivíduo astuto, matreiro e sagaz. Mas como esse tipo se agregou de forma tão definitiva ao tecido social brasileiro? “Segundo Câmara Cascudo, a origem do Malandro surgiu a partir dos filhos dos escravos urbanos alforriados, os quais rejeitando o trabalho formal, com horários rígidos e obrigações definidas, procuravam representar, finda a ordem escravista, o papel do dominador branco” (CASCUDO apud LOPES & SIMAS, 2015). E uma das estratégias para que esse fenômeno acontecesse de fato, foi investir na própria imagem, desvencilhando-se da figura do “pé-de-chinelo”.

DA GINGA E DO BICOLOR NO PÉ – Foi no cenário carioca, especialmente entre os anos de 1920 e 1930, que a caracterização do Malandro de chapéu de palheta, camisa listrada, calça branca e sapato bicolor ganhou as ruas e tornou-se uma espécie de traje típico do homem-sambista-carioca. “O Malandro, com sua indumentária e seus modos sempre característicos e caricaturais, não deixa de ser um oprimido que permanece fantasiado o ano inteiro” (MATOS, 1982). A “fantasia” do Malandro é, portanto, um meio de penetrar onde jamais poderia, não fosse o processo de negociação claramente expresso na própria forma de se apresentar. Não por acaso, tornou-se uma figura tão identificada com o sambista.

O Malandro é, entre outras diversas características, um sujeito galanteador ligado ao prazer, às coisas do mundo e à satisfação imediata. É oprimido por um sistema em que muitas vezes não se encaixa, mas no lugar da revolta, constrói um trajeto original para se afirmar. Afinal, ser Malandro é “viver cada momento intensamente, gozar das delícias do aqui e agora sem pensar nas consequências” (LIGIÉRO, 2004). É o bon vivant das madrugadas, o dono de um universo paralelo onde é rei e senhor. Um mundo noturno, assimétrico, confuso, desordenado, desvairado, desencaixado e, por isso mesmo, absolutamente irresistível.

A ÓPERA E A RUA – Assim como o Malandro transita entre mundos socialmente distintos, o nosso enredo desfila entre a veia erudita da ópera clássica e os códigos populares das escolas de samba. A separação entre a alta e a baixa cultura cai por terra quando a cultura do cotidiano, do povo, dos conhecimentos cultivados nas ruas, mexe despudoradamente com os dogmas que insistem em separar aquilo que o saber popular teima em unir.

A palavra “ópera” surgiu na Itália, no século XVII, e é o plural de “opus”, ou “obra”, em português. As óperas são peças de teatro musical, “às quais se referia, com formulações universais, a dramma per música (drama musical) ou favola in música (fábula musical)” (GONÇALVES, 2011). As montagens das óperas, por sua vez, remetem às tragédias gregas e aos cantos carnavalescos italianos do Século XIV.

Ao traçarmos essa interseção entre a ópera e o carnaval, não há como deixar de lembrar de Joãosinho Trinta. Foi ele, artista maior do espetáculo visual das escolas de samba, revelado no carnaval pelas mãos de Fernando Pamplona, no Salgueiro, o primeiro a associar o desfile à ópera clássica. “O réssigeur é o carnavalesco. O maestro é o mestre de bateria. O enredo é o libreto. A bateria, a orquestra. Enquanto os passistas são o corpo de baile. As alas são o coro e os destaques são os personagens principais da ópera. Os carros alegóricos são a cenografia” (TRINTA apud GOMES, 2008).

É a partir desse cruzamento de linguagens artísticas a que o desfile das escolas de samba se permite, que nos inspiramos a encenar uma ópera popular dividida em seis atos, abordando aspectos da malandragem, tendo como ponto de partida o musical “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque de Hollanda. Assim, procuramos trilhar essa tentadora possibilidade em nome da instigante opção de mostrar diversos aspectos da malandragem, nessa grandiosa ópera de rua chamada carnaval. Mas para mergulharmos nas referências ao musical, é bom entendermos o contexto de sua criação na cena teatral brasileira.

A ÓPERA DO MALANDRO – O ano de 1978 marca a estreia da “Ópera do Malandro”, de autoria de Chico Buarque de Hollanda. A ideia da montagem do espetáculo surgiu de uma conversa entre o autor e o cineasta moçambicano Ruy Guerra, que mais tarde adaptou a peça para as telas do cinema. A Ópera do Malandro é inspirada na “Ópera dos Três Vinténs”, de Bertold Brecht e Kurt Weill, que por sua vez foi adaptada da “Ópera dos Mendigos”, escrita por John Gay, em 1724. Trata-se de uma ópera em formato de pastiche – jogo de imitações com alusões históricas – sobre os grandes espetáculos operísticos da época, que cada vez mais atraía um público burguês ávido por novas formas de entretenimento em obras teatrais e musicais mais dinâmicas.

Foi nesse cenário, ainda no século XVIII, que o pastiche ganhou espaço no circuito das óperas, firmando-se como “uma prática comum em encenações” (STOREY, 2001). Daí surgiu o mote para a adaptação de espetáculos clássicos à realidade carioca, presentes no segundo ato da nossa “Ópera dos Malandros”, com personagens consagrados da ópera clássica incorporados pelo espírito malandreado da nossa gente.

Mas voltando à montagem brasileira da Ópera do Malandro, a peça apresenta os amores, aventuras, tropeços e trapaças de Max Overseas, o herói que vive de golpes e conchavos com o chefe de polícia Chaves. Também fazem parte do musical personagens importantes, como as prostitutas do cabaré dos cafetões Duran e Vitória, pais de Terezinha, jovem que se envolve com o Malandro Max. Outra figura marcante no desenrolar da história é a travesti Geni, apaixonada por Max e que, malandramente, ocupa um lugar de destaque na trama.

A trilha musical da “Ópera dos Malandros” é uma das mais importantes da história do teatro brasileiro. Canções como “Folhetim”, “Terezinha”, “Geni e o Zepelim”, “O Meu Amor”, “Tango do Covil” e “A Volta do Malandro” ecoaram além das salas de espetáculo e viraram sucesso nas vozes de intérpretes consagrados da Música Popular Brasileira, como Gal Costa, Maria Bethânia, Ney Matogrosso e o próprio Chico Buarque.

Vale a pena ressaltar que muitas dessas canções inspiraram fantasias e alegorias presentes no enredo. Entretanto, o desfile das escolas de samba, como uma procissão que mexe profundamente com a porção devota do sambista, também evoca o perfil espiritual da malandragem, fundamental para completar o quadro de aspectos desses místicos protagonistas das ruas.

LAROYÊ, MOJUBÁ, AXÉ! – A apoteose da nossa Ópera dos Malandros, isto é, nosso último ato, representa a as crenças e a divinização dos Malandros, cultuados em terreiros espalhados pelo país. Entidades como Zé da Ginga, Zé Pelintra, Exu Giramundo, Pombas Giras e outras variações geralmente não costumam ser tão abordadas diretamente no carnaval por serem forças etéreas que trazem em si uma energia vital poderosa. Mas não fugimos a esse desafio que nos exigiu muita responsabilidade espiritual.

A saudação ao povo de rua presente nesse desfile não poderia prescindir da apresentação dessas entidades tão louvadas pelos sambistas, especialmente nestes tempos em que a liberdade religiosa é violada no Brasil em diversos episódios recentes de intolerância. Por isso, a Passarela do Samba é o palco maior do nosso canto de paz em respeito a todas as religiões.

Em nome de toda uma nação, o Salgueiro encerra sua ópera pedindo tolerância e respeito, declarando o samba como elemento agregador entre as diversas crenças que coexistem no nosso país. Afinal, o brasileiro carrega na pele e no sangue a marca da diversidade de povos que aqui se estabeleceram ao longo do tempo. Dessa mistura de saberes e credos, surgiu uma sociedade que, acima de tudo, acredita no futuro. A crença no intangível e a fé inabalável no amanhã conduzem nosso povo adiante.

Na luta de cada manhã, a luz do dia que surge após a infinita noite de ilusões, os personagens vestem a fantasia da realidade, tornam-se corpo e carne. Enquanto isso, a alma se guarda para outro momento em que a lua convocará seus reis e rainhas da noite para de novo brilharem num palco sob as estrelas.

Salve a Malandragem!! Laroyê!"

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

2013-2016: polarização e protestos no Brasil

Por Breno Bringel* (Open Democracy.Net, 18/02/2016)

O ano de 2016 começou no Brasil com novos protestos. Os motivos são diversos, mas continuam primando as reivindicações relacionadas ao aumento do transporte público, o encarecimento do custo de vida e o direito à cidade, de forma geral. Estas lutas auguram que as mobilizações iniciadas em junho de 2013 não se esgotaram. Ao contrário, inauguraram um novo ciclo político no país, produzindo uma abertura societária, cujas consequências são visíveis hoje em várias esferas e não somente nas ruas.

Desde então, emergiram novos espaços e atores que levaram a um aumento da conflitualidade no espaço público e a um questionamento dos códigos, atores e ações tradicionais que primaram no país desde a redemocratização política.

Embora com visões e projetos distintos (e, em geral, opostos) da sociedade brasileira, os indivíduos e coletividades à esquerda e à direita do governo mobilizados desde 2013 até hoje são fruto desta mesma abertura sociopolítica. 

As formas de ação e de organização por eles adotadas – próprias de uma transformação das formas de ativismo e de engajamento militante no país e no mundo hoje – favoreceram um surgimento rápido, a midiatização e a capacidade de interpelação e expressividade, mas também provocaram várias tensões e ambivalências em sua própria constituição e nos resultados gerados.

Entre junho de 2013 e o inicio deste ano o país transitou por cenários diversos, marcados por uma maior radicalização e polarização política. O desenlace ainda é incerto, mas vivemos um cenário de transição onde o “velho” não terminou de morrer e o “novo” ainda não floresceu totalmente. 

Neste processo de sedimentação, é fundamental entender os novos atores emergentes, os impactos imediatos dos protestos, os realinhamentos dos grupos políticos e suas construções políticas e discursivas.

Participaram das mobilizações de 2013 indivíduos e grupos sociais diversos e com um amplo espetro ideológico. Ficou patente a indignação difusa, a ambivalência dos discursos, a heterogeneidade das demandas e a ausência de mediação de terceiros e de atores tradicionais, algo também notório em várias mobilizações contemporâneas, a exemplo das ocorridas em países como a Espanha e os Estados Unidos.

A diferenciação dos ritmos, composições e olhares dos protestos nos vários lugares onde ocorreram, nos leva à importância de situar as mobilizações em diferentes coordenadas espaço-temporais.

 Embora o lócus de ação das manifestações fossem os territórios e espaços públicos (através da ocupação massiva de praças e ruas) havia uma conexão prática e simbólica com outras escalas de ação e significação, sejam elas nacionais ou globais, marcando uma ressonância de movimentos e de subjetividades, bem como dinâmicas de difusão e de retroalimentação.

Uma das características mais emblemáticas de Junho de 2013 foi sua capilaridade em todo o território nacional. Contudo, as lógicas de mobilização, a composição social dos manifestantes e a correlação de forças variou de modo considerável dependendo das cidades consideradas.

O momento posterior a Junho de 2013 também foi desigual no Brasil. Em alguns lugares como no Rio de Janeiro, os protestos seguiram com alta intensidade, com uma concatenação de mobilizações e greves (a maior delas a dos professores de escolas públicas, seguida de outras bastante simbólicas como a dos garis em fevereiro de 2014) que acabaram, na véspera da final da copa do mundo em 2014, com a prisão de 23 ativistas. 

Em várias cidades seguiram acontecendo ocupações, mobilizações por direitos e por causas específicas, novas ações e trabalhos de base e um aprofundamento do experimentalismo cultural. Em determinados casos a repressão e a criminalização pós-junho levou à desmobilização. Também geraram-se várias experiências mais subterrâneas entre indivíduos, comunidades, grupos e coletividades. 

Ao mesmo tempo, dada a dimensão continental do país, não se pode negar que junho também foi, em certas localidades, mais uma representação coletiva (que, por sinal, mostrou que as coisas podem ser mudadas com as pessoas comuns fazendo política) do que um processo contínuo de articulação e organização política.

Seja como for, é crucial entender Junho de 2013 como um momento de abertura societária no país. Uma vez aberto o espaço de protesto pelas mobilizações iniciais e pelos movimentos iniciadores (tais como o Movimento Passe Livre, central na cidade de São Paulo, mas não em todas as capitais brasileiras), outros atores se uniram para fazer suas próprias reivindicações, sem necessariamente manter os laços com os atores que as desencadearam e/ou repetir as formas, a cultura organizacional, as referências ideológicas e os repertórios de ação dos iniciadores essas mobilizações. 

De fato, como já propunha Charles Tilly, o uso de um mesmo repertório de ação não implica que estejamos diante necessariamente de um mesmo movimento, mas sim de uma gramática cultural e histórica disponível e interpretada pela sociedade e pelos grupos sociais. 

Alonso e Mische captaram com bastante precisão essas fontes sociais e culturais, bem como a ambivalência dos repertórios presentes em junho dentro do que elas definiram como repertórios “socialista” (familiar na esquerda brasileira das últimas décadas), “autonomista” (afim a vários grupos libertários e a propostas críticas do poder e do Estado) e “patriótico” (que usa um discurso nacionalista e as cores verde e amarela com um significado histórico e situacional bastante particular).

Ao emergir um novo ciclo de protestos, presenciou-se o que tenho definido como transbordamento societário, isto é, um momento em que o protesto se difunde dos setores mais mobilizados para outras partes da sociedade, transbordando os movimentos sociais que o iniciaram. 

No clímax desse processo, um amplo espectro da sociedade está mobilizada em torno de uma indignação difusa, portando diferentes perspectivas e reivindicações, que coexistiram no mesmo espaço físico e as vezes com um mesmo lema (contra a corrupção ou contra o governo), embora com construções e horizontes muito distanciados e em disputa. 

Houve uma confluência ambígua marcada por movimentos contraditórios de forças centrípetas (a externalização da indignação e a simultaneidade presencial e simbólica nas mesmas ruas e praças) e forças centrífugas (que, a despeito da co-presença nos mesmos espaços, indicavam diferentes motivações, formas de organização e horizontes de expectativas).

Nesta fase catártica, que começou em Junho de 2013 e durou alguns meses, a polarização ideológica já existia (levando, por exemplo, a agressões a manifestantes que portavam bandeiras, camisetas e outros símbolos vinculados à esquerda), mas estava mais diluída na indignação em massa e na experimentação das ruas.

Após a heterogeneidade inicial, começa em 2014 uma fase de decantação, com algumas reivindicações principais dos indivíduos e grupos já diferenciadas no espaço e alinhadas mais claramente à esquerda e à direita, conquanto estas noções (direita e esquerda) sejam vistas de forma crescente, para alguns ativistas e para boa parte da sociedade, como caducas, pouco capazes de traduzir e canalizar seus objetivos, expectativas e inquietações. 

Um dos motivos principais disso é a associação direta entre “ideologia” e grupos e ideologias políticas específicas (sejam partidos ou o “comunismo”, o “socialismo” ou o “liberalismo”).

 Neste momento, já não há manifestações massivas nas ruas e nas praças, mas seguem ocorrendo várias mobilizações mais pontuais, bem como uma reorganização mais invisível dos indivíduos, das redes e dos coletivos. A confluência no mesmo espaço público é paulatinamente deslocada por convocatórias com objetivos e recortes mais definidos.

Embora boa parte destas ações não se dirigissem ao campo político-institucional e político-eleitoral, que possui lógicas e temporalidades diferentes do campo da mobilização social, o cenário pré-eleitoral de meados de 2014 rumo à contenda presidencial acabou abrindo um novo momento de acirramento das polarizações que absorveu boa parte dos atores sociais e políticos ao longo de 2015.

A pesar das críticas formuladas ao Partido dos Trabalhadores (PT) em particular e aos partidos políticos em geral, as eleições presidenciais de 2014 mobilizaram massivamente os brasileiros, inclusive para defender, em alguns casos, o partido no governo como “mal menor”. A vitória apertada de Dilma gerou um clima de instabilidade que foi alimentado constantemente por setores da oposição, buscando forjar o impeachment da presidenta.

No calor da disputa presidencial, muitos analistas associaram a perda de votos do PT com as manifestações de 2013. Embora possam haver, de fato, algumas relações entre protesto e voto, não se pode estabelecer uma ilação e uma causalidade direta.

Além disso, o maior problema é que as leituras hegemônicas sobre os impactos das manifestações de 2013 continuam restringindo os efeitos ao campo político-eleitoral e político-institucional, como o faz recentemente Marco Aurélio Nogueira em seu artigo publicado em Democracia Aberta.

Nesta chave, muito orientada por uma "política de resultados", haveriam outcomes políticos claramente mensuráveis se conjeturarmos, por exemplo, sobre como as demandas formuladas nas mobilizações foram recebidas (ou ignoradas) pelo sistema político.

Pensemos em políticas públicas concretas, na inserção de novas pautas nas agendas governamentais, na criação de novos espaços canais de mediação e/ou de participação, e na conquista real – mesmo que transitória ou parcial – de algumas das reivindicações mais simbólicas, tais como o preço das passagens de ônibus.

Já no tocante ao cenário eleitoral, a conturbada disputa presidencial de 2014 pode ilustrar alguns elementos. Em primeiro lugar, torna-se importante diferenciar as tentativas de apropriação de algumas das pautas das manifestações por certos candidatos (caso de Marina da Silva e seu discurso de uma "nova" política recheada de "velhas" práticas) e partidos políticos descolados dos setores mobilizados daqueles processos nos quais há, de fato, uma relação histórica ou alianças táticas e estratégicas entre grupos sociais e políticos (caso do PT como partido e não como governo, visto em sua heterogeneidade interna, e de outros menores à esquerda). 

Em segundo lugar, é interessante notar como o «discurso do "medo" foi (e continua sendo) mobilizado para opor "direita" versus "esquerda", restringindo esta última, no discurso governamental, ao campo governista, o que traz como consequência a contenção às possibilidades de mudança que emergiram no país. 

Finalmente, cabe frisar as limitações, no médio e longo prazo, dos próprios resultados eleitorais para o entendimento das transformações societárias que vivemos. Por um lado, a criação de uma fronteira rígida entre amigos/inimigos por parte do governismo serviu para tentar frear (e as vezes deslegitimar) as forças à esquerda; por outro, os desfechos eleitorais não invalidam as mobilizações sociais e não necessariamente pressagiam sua perda de influência.

Estas perspectivas político-institucionais e político-eleitorais restringem a visão da política e do político e ignoram outro tipo de resultados, impactos e cenários possíveis. Argumentamos, de maneira inversa, que um olhar ampliado e multidimensional para os impactos é fundamental, pois nem todos os desdobramentos das mobilizações de junho de 2013 são facilmente mensuráveis nestes termos. Ao menos outros dois tipos de impactos (os sociais e os culturais) devem ser considerados.

De entre os impactos sociais, podem-se destacar dois principais: a reconfiguração dos grupos sociais e a geração de novos enquadramentos sociopolíticos. No primeiro caso, as mobilizações recentes serviram para chacoalhar as posições, visões e correlações de forças entre partidos, sindicatos, movimentos sociais, ONGs e outras coletividades. 

Embora ainda seja cedo para afirmar o alcance e as repercussões disso, alguns atores se realinharam ou ainda buscam fazê-lo (em alguns casos sem saber muito bem como), enquanto outros tem problematizado sua própria trajetória e papel, tentando se (re)situar na nova conjuntura.

No segundo caso, incluem-se novos enquadramentos individuais e coletivos, relacionados hoje principalmente à qualidade de vida nas grandes cidades brasileiras, ao bloqueio midiático, à violência (inclusive a estatal, que afeta de forma particular as mulheres e os jovens negros pobres que vivem nas periferias urbanas) e ao machismo. São processos de reelaboração da vivência social que produzem, paulatinamente, ressignificações das constelações semânticas da sociedade a partir de experiências diversas de politização da vida cotidiana, a maioria delas invisíveis à mídia e aos intelectuais de escritório.

No âmbito cultural observam-se inovações nas lógicas de mobilização e nos mecanismos relacionais e interativos do ativismo. Marcada pela conflitualidade, pela difusão viral, por identidades multi-referenciais e por uma expressividade do político mediada pela cultura, tanto militantes de primeira viagem como movimentos mais consolidados colocam em xeque a cultura política da apatia.

 Embora em alguns casos haja um distanciamento entre uma nova geração de ativistas e a militância mais experimentada (o que nos obriga a repensar os espaços e as fórmulas de diálogo geracional), em outros aparecem confluências criativas, como é o caso de algumas sinergias entre redes submersas e iniciativas artístico-culturais no engajamento político (algo marcante em cidades como Belo Horizonte).

Associado aos impactos sociais e culturais, situa-se um impacto de caráter mais biográfico, isto é, individual. Trata-se do impacto subjetivo das mobilizações na trajetória dos ativistas. Tem sido recorrente escutar vários participantes definirem as mobilizações de Junho de 2013 como “um antes e um depois”, uma “inflexão”, “um começo” ou “um novo começo”. 

Para uma geração de ativistas emergente na atualidade e para jovens que não necessariamente se auto-definem como ativistas, Junho de 2013 foi, no dizer de um jovem ativista, “um incêndio que não se apaga com água”. 

Mesmo que efêmeras, as experiências vividas nas mobilizações e em evento de protesto produzem "marcas" nos participantes, reforçando a propensão a que possam se engajar politicamente no futuro e podendo, ademais, transformar, no médio e longo prazo, suas identidades sociais e seus valores políticos.

Torna-se importante compreender junho de 2013 não como um “evento” isolado, mas como um processo. Para isso, é fundamental associar sempre os movimentos sociais a movimentos societários mais abrangentes.

Em outras palavras, analisar como as mobilizações, os atores sociais e suas práticas se enquadram dentro de dinâmicas de transformação da sociedade. Isso é central no atual momento de crise no Brasil, onde parece haver uma reconfiguração das formas de ativismo e dos sujeitos políticos vis-à-vis alterações de elementos estruturais e subjetivos da sociedade como um todo. 

Nesse sentido, assim como se relacionou as mobilizações de massa dos anos 1970 e 1980 com um movimento societário de redefinição da democracia e dos direitos, as mobilizações recentes estão associadas a desenvolvimentos estruturais do país (no plano externo e geopolítico, uma maior inserção, mesmo que ainda dependente, no mundo e, no cenário interno, uma maior centralidade de políticas sociais, incluindo a luta contra a pobreza), que foram particularmente velozes na última década.

Numa sociedade tão desigual como a brasileira, estas mudanças afetaram de diferentes maneiras as classes sociais, levando a frustrações que embora, em alguns casos, convergissem, eram opostas ideologicamente. Os ricos ficaram mais ricos, enquanto uma parcela da população saiu da pobreza e passou a ter acesso a certos serviços, espaços e direitos que antes somente eram exercidos por uma classe media alta que viu seus “privilégios” e seu estilo de vida ameaçados. 

As clivagens de classe, mas também as de raça, gênero e origem são fundamentais neste ponto para nos questionarmos se estas mobilizações e o ativismo emergente será, de fato, capaz de permear com maior densidade o campo popular, algo pouco visível até agora.

Na atual situação de polarização, é possível identificar claramente no Brasil dois polos radicalmente antagônicos, com uma diversidade de situações intermediárias possíveis. Por um lado, um campo progressista e de radicalização da democracia que age orientado por valores como a igualdade, a justiça, a pluralidade, a diferença e o bem viver. Por outro lado, um campo reacionário, marcado pelo autoritarismo, certos traços fascistas e antidemocráticos e pela defesa dos privilégios de classe, da propriedade privada e de uma visão sempre evasiva da liberdade.

No primeiro caso, trata-se de uma camada diversa de jovens, coletividades, plataformas e movimentos que tem militado na denúncia (e na tentativa de eliminação) das hierarquias, da opressão e dos abusos do Estado – principalmente, violência, racismo institucional e criminalização – e em reivindicação variadas, como a qualidade dos serviços públicos e por uma vida mais humana nas cidades. 

Travam lutas territorializadas e/ou culturais e entendem a democracia em um sentido ampliado, não como sinônimo de instituições, representação ou eleições, mas como uma criação sociopolítica e uma experiência subjetiva.

Já o segundo polo perpetua, nos seus discursos e na prática cotidiana, as estruturas de dominação e as formas de opressão. Aceita a alta desigualdade social existente no país baseado no discurso da inevitabilidade e/ou da meritocracia. Prega, em alguns casos, pelo retorno de um passado melhor (a ditadura), para o qual não temem pedir a intervenção militar. 

Contam, em geral, com apoio e atuam em colusão com as elites econômicas e mediáticas. Costumam atuar nos bastidores da política, embora combinem agora estas estratégias com uma novidade: o recurso à mobilização nas ruas e à ação direta.

No meio destes dois campos, no centro político, encontra-se o governismo e vários setores mais tradicionais. Os limites da política win-win e do consenso de classes estabelecido pelo governo nos mandatos de Lula e Dilma, unido ao esgotamento de sua agenda política desafiada pelas mobilizações de 2013, levou a que nos últimos anos o governo tenha abortado a agenda reformista que o aproximaria do primeiro campo. 

A consequência direta é uma deriva cada vez mais reativa e conservadora, que se aprofunda com as eleições de 2014 e os protestos da direita (nem toda ela, vale dizer, autoritária e reacionária) em 2015. Pressionado não somente internamente, mas também fora do país pela elite política global e pelas instituições financeiras, um dos pontos mais dramáticos dos últimos meses é a proposta do executivo, no final do ano passado, de uma absurda lei antiterrorista, a PL2016/2015. 

Sob o subterfúgio de criar um “ambiente seguro” para os investimentos no país e para os cidadãos no ano dos Jogos Olímpicos, a lei acaba contribuindo a gerar mais dispositivos de criminalização dos protestos e dos movimentos sociais mais radicais. Trata-se, novamente, de uma clássica lógica seletiva do Estado, onde atores sociais mais afins são convidados a dialogar, enquanto aqueles mais rupturistas são profundamente reprimidos ou controlados.

A redução de uma ampla e complexa reconfiguração da sociedade brasileira a “fascistas” e “bolivarianos” é mostra da exasperação da conjuntura atual. Nessa configuração, a “direita” é enquadrada, por parte de setores provenientes do campo progressista mais tradicional, como o “inimigo a combater” – mesmo que, contraditoriamente, esteja na prática também dentro do governo –, forçando alguns dos atores alinhados à esquerda a defenderem, mesmo que de forma ambivalente, o governo.

 Obviamente, vale a pena matizar que nem todo o Partido dos Trabalhadores está neste campo e adere a esta visão de defesa férrea de uma governabilidade crescentemente ameaçada pela crise política que já afetou também a economia.

O leque de posturas que transcendem estas posições é amplo, mas a polarização existente na sociedade brasileira hoje acaba levando a que a maioria das interpretações reduzam o conflito realmente existente a estes campos, nublando o potencial das vozes mais transformadoras de junho de 2013. Nestes ensaios insurgentes e na rearticulação do campo popular concentram-se as esperanças de geração de alternativas ao atual cenário.

*Breno Bringel é Professor de Sociologia do IESP-UERJ

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Raízes do Brasil político: Os caminhos de um projeto iliberal

Por Marcus André Melo* (Folha de S.Paulo, 31/01/2016)

Instigante debate tem sido gerado pela assertiva de Jessé Souza, na "Ilustríssima" (10/1), de que o Estado tem sido, no Brasil, "demonizado como corrupto e ineficiente e o mercado visto como o reino de todas as virtudes". Na realidade, as raízes do Brasil político e institucional passam longe de Sérgio Buarque de Holanda: elas se assentam em solo diverso, na santificação do Estado.

As instituições políticas brasileiras foram moldadas por essa visão iliberal. Ela foi o princípio organizador da ordem social de acesso limitado, para usar o conceito de Douglass C. North e coautores, que caracteriza o Brasil do século 20.

O Brasil monárquico, centralizador e escravagista do século 19 é por excelência o Brasil "Saquarema". Esse Brasil é produto da imaginação política do Visconde do Uruguai e dos líderes do Regresso Conservador: eles que forjaram as instituições fundamentais do país. Como lembra José Murilo de Carvalho, Uruguai é o pai do projeto conservador vitorioso que aposta na intervenção autoritária do Estado para redimir a nação e que marcou o Brasil do século 20.

 Esse projeto se assenta no pressuposto de que a sociedade civil e o mercado são viciosos –faccionais, particularistas, locais– e de que o Estado é o ator fundamental nesse reformismo "pelo alto". O Estado demiurgo garantiria a integridade da ordem territorial e social.

Os discípulos diretos dessa visão no século 20 são Alberto Torres e Oliveira Vianna. Ao referir-se ao Brasil "invertebrado" criado pela República, Torres postulava um Estado forte que domasse os interesses privados regionais e patrocinasse o interesse coletivo. Em "Organização Nacional" (1910), Torres apresentou um projeto de reforma constitucional nacionalista e centralizador –e forneceu parte considerável do léxico iliberal que dominou o discurso político no século 20. Nessa chave, as instituições políticas liberais eram consideradas pouco propícias para prosperar no solo brasileiro. Vem de Torres e de pequeno círculo de publicistas com quem mantinha afinidades eletivas a fantasia do espelho de Próspero: a noção de que a democracia era coisa alienígena porque anglo-saxônica.

O nosso "Ocidente" seria outro: Ibérico. Iberismo e democracia, autogoverno, ou governo limitado, seriam incompatíveis. Vem também desse círculo de publicistas o horror aos partidos políticos e à competição política. O "locus" da política eram os Estados –todos os partidos eram estaduais–, daí o horror à federação. Quando finalmente escreveram uma constituição –para um Estado Novo em folha–, celebraram-na com uma tenebrosa queima de bandeiras estaduais.

Torres também forneceu a chave para a fórmula da disjunção "país legal versus país real". Não adiantava insistir, como seu adversário Rui Barbosa, em fazer cumprir a letra da lei, mas reconhecer o "idealismo da constituição", e superá-lo. Em livro com esse título, Oliveira Vianna sustentou que o remédio para essa disjunção era um Estado forte que asseguraria seus interesses contra os interesses mesquinhos, porque privados, dos clãs familiares. Para isso seria necessário passar por cima da Constituição artificial, porque liberal, ou elaborar uma carta constitucional em que o império da lei fosse uma ficção.

CORPORATIVISMO

 Barbosa Lima Sobrinho, em sua biografia de Torres, mostra a influência decisiva dessa agenda na criação das instituições da Era Vargas –cujos principais atores políticos reuniam-se na Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, fundada em 1932. Um dos seus membros, Oliveira Vianna, foi artífice de instituições com as quais convivemos até hoje, as estruturas corporativistas que regulam o mercado de trabalho no Brasil: a Justiça do Trabalho, o imposto sindical, a unicidade sindical, o IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), o IBC (Instituto Brasileiro do Café) e outros órgãos do intervencionismo econômico, como o Código de Águas e de Minas –a lista é longa.

 Vianna flertou abertamente com o racismo e o fascismo, mas a maioria dos arquitetos do Brasil contemporâneo não aderiu abertamente a projetos totalitários. A historiografia brasileira criou uma expressão própria para identificar o conteúdo substantivo do programa desses publicistas: "liberais autoritários", por buscarem fortalecer direitos individuais a partir de instrumentos autoritários. Na balança, na realidade, esses direitos pesavam muito menos do que a razão de Estado.

É fundamental enfatizar que Uruguai, Torres e Oliveira Vianna não eram literatos. Não moldaram apenas a visão de mundo dos brasileiros, tal como Sérgio Buarque de Holanda. Uruguai, Torres e Oliveira foram todos membros de cortes superiores e presidentes de província e Estados –além de ministros. Foram homens de Estado, construtores de instituições. Influenciaram gerações de militares golpistas e a esquerda brasileira.

A rejeição ao liberalismo naquele contexto não foi um fenômeno brasileiro –só que no Brasil deitou raízes que permanecem até hoje. As democracias maduras fortaleceram o Poder Executivo e aprofundaram a democracia, extirpando a dimensão iliberal; no Brasil só fizeram a primeira tarefa, não a segunda. Muitas instituições (do mercado de trabalho etc.) continuam intactas até hoje e apresentam patologias desconhecidas no resto do mundo (como a existência de 38 mil sindicatos inorgânicos).

O denominador comum do programa conservador, à esquerda e à direita, era o caráter subordinado que questões relativas à regra da lei, a responsabilização e controle democrático do Estado ocupavam na agenda de mudança. As instituições de controle e os direitos civis e políticos mereceram apenas notas de rodapé.

 A emancipação individual via educação não entrou na agenda. A democracia era valor não universal: o ditador foi aclamado pelo queremismo como grande líder. Afinal, matava, mas redistribuía. Não importava se as lideranças de esquerda tivessem apodrecido no calabouço do Estado Novo. Um novo "xibolete" fornecia a defesa contra a denúncia do abuso de poder e da corrupção: a desqualificação como udenismo. A perda da eficácia simbólica dessa arma retórica no Brasil na atual conjuntura é sinal de mudança na cultura política.

 Fortalecer o Poder Executivo na nova era industrial era imperativo, mas, ao mesmo tempo, seria necessário fortalecer os controles democráticos, como insistia Afonso Arinos. Essa agenda só foi enfrentada na Constituição de 1988, quando houve delegação significativa de poder ao Ministério Público, ao Judiciário, aos tribunais de contas. As reformas dos anos 1990 também eliminaram parte do legado varguista.

 A República Velha viveu a maior parte do tempo sob estado de sítio e poucas vozes se insurgiam contra o militarismo, o abuso de poder, a falta de competição política, a corrupção. O único a se levantar contra o estado de coisas vigente foi Rui Barbosa. Para ele, o presidente brasileiro havia se convertido no "poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratador, o poder da bolsa, o poder dos negócios, e o poder da força. Quanto mais poder tiver menos lhe devemos cogitar na ditadura [...] por todos reconhecida mas tolerada, sustentada, colaborada por todos".

 Rui e poucos outros buscaram seis vezes aprovar a Lei de Responsabilidade, sem sucesso: "Ainda não houve presidente nesta democracia republicana que respondesse por nenhum dos seus atos. Ainda nenhum foi achado a cometer um só desses delitos, que tão às escâncaras cometem. A jurisprudência do Congresso Nacional está, pois, mostrando que a Lei de Responsabilidade, nos crimes do chefe do Poder Executivo, não se adotou, senão para não se aplicar absolutamente nunca".

 E concluía: " O presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo". A lei pedida por Rui só foi aprovada 40 anos depois, e debatida seriamente apenas na atual conjuntura de crise do país.

 GRANDE ELEITOR

 O monopólio do poder pelos incumbentes e o abuso do cargo estão patentes na falta de competição política: presidentes eleitos com 90% (Rodrigues Alves) ou 99,7% (Washington Luís) dos votos.

 Na denúncia de Rui, em 1914, estão apontadas as principais mazelas do Brasil, que surpreendem por sua atualidade: o presidente orwellianamente denominado por Rui de "O Grande Eleitor" exercia e continua a exercer papel decisivo na sobrevivência política dos deputados e senadores na barganha por emendas ao Orçamento e distribuição de cargos na base aliada.

 Na República Velha, as eleições eram uma disputa para selecionar quem desfrutaria "o privilégio de ser o aliado do poder central" (Nunes Leal) –padrão que foi decerto muito mitigado com a introdução do multipartidarismo. Como Rui afirmou, os governos eram "pais e senhores das maiorias legislativas". Hoje essas maiorias continuam sendo construídas à sombra do Executivo, mas não ancoradas em arranjos programáticos –e sim em fundos públicos.

 O presidente era e continua sendo em graus distintos "O Grande Nomeador", detendo o poder de nomear e demitir milhares de servidores. O presidente também é "O Grande Contratador". Usa e abusa do orçamento público em relações incestuosas com o setor privado. Modernamente manipula o crédito de bancos públicos sob seu controle direto e maneja politicamente os investimentos de fundos de pensão. O presidente encarna, e continua a fazê-lo, o poder da Bolsa, o poder dos negócios. Na ordem social de acesso limitado não há distinção entre empresa e Estado: essas esferas se amalgamam intimamente. A falta de instituições que representem compromissos críveis eleva os custos de transação e cria uma estrutura de incentivos danosa ao desenvolvimento endógeno.

 As instituições são a chave para o desenvolvimento, para o chamado novo institucionalismo econômico de North e da nova economia política do desenvolvimento de Daron Acemoglu e coautores. A natureza e a qualidade das instituições explicam em grande medida o sucesso e fracasso das nações.

 As "raízes do Brasil"–a chave para a compreensão do dilema brasileiro– são as instituições políticas e econômicas extrativas que foram implantadas ou a ordem social de acesso limitado que caracterizou a sociedade brasileira, para utilizar conceitos dessa literatura. Historicamente o traço distintivo foi a exclusão política e social: do escravo, do analfabeto e das mulheres.

 A extensão do sufrágio para as mulheres e a criação da Justiça Eleitoral em 1932 (reduzindo as fraudes) aumentou a inclusão. A introdução da representação proporcional permitiu pela primeira vez na história que incumbentes fossem derrotados, revigorando a participação política e o pluralismo. Mas a exclusão do analfabeto perdurou até a Emenda Constitucional 25 de 1985. Só com a recente redemocratização a participação política se universalizou.

 Os três pré-requisitos ("doorstep conditions") –império da lei, controle da violência e instituições impessoais– para a transição à sociedade de acesso aberto, segundo North, só agora parecem ter adquirido alguma materialidade. Podemos dizer gramscianamente que, enquanto "a velha ordem morre e a nova não nasce, ainda surge uma grande variedade de sintomas mórbidos": sua manifestação é o desfile de descalabros a que os brasileiros têm assistido com perplexidade.

 O Brasil de grande parte do século 20 é uma ordem social de acesso limitado. Em contraste com o que North denomina estados naturais frágeis e básicos, a violência aberta, produto da competição interelites, foi em grande parte contida. O império da lei é limitado e emerge em virtude do reconhecimento pelas elites de que permite ganhos recíprocos: surge do conluio rentista. O império da lei para Acemoglu resulta da contenda redistributiva; para North ele é produto de um arranjo intraelite, de seu autointeresse (esta é a principal controvérsia entre eles). 

 Essa interpretação é mais persuasiva: o império da lei só tem tido alguma efetividade na contenda entre as elites políticas e econômicas. O regramento das disputas entre elites e não elites foi marcado pela impunidade. A teoria prevê que o império da lei expanda o seu escopo do círculo das elites para a sociedade como um todo. A identidade dos atores tem importado cada vez menos, como se pode observar nas decisões da instituições judiciais brasileiras.

 Quanto à violência política, ela marcou o século 20, pelo menos até a redemocratização. O início da República foi um episódio militar, e eles foram atores fundamentais em 1922, 1926, 1930, 1937, 1945, 1954, 1964-85. Pela primeira vez na história, a violência parece domada.

 Nas sociedades de acesso aberto, a "destruição criadora" leva permanentemente à criação e, pela competição, dissipação de rendas geradas pela inovação. Nas sociedades de acesso limitado, as rendas tendem a ser mais duradouras, embora possa ocorrer volatilidade e circulação nos setores das elites. As rendas são politicamente distribuídas, desencorajando a inovação e engendrando ciclos de "stop and go". Não há componente endógeno no desenvolvimento. As rendas se manifestam das mais variadas formas: crédito subsidiado, direcionado, acesso a contratos governamentais, regras de conteúdo, desonerações. E, para o Estado, a captura do imposto inflacionário.

 O abuso de poder e o risco permanente de expropriação de contratos têm sido o traço distintivo no Brasil, e só na quadra atual observa-se pela primeira vez a efetiva punição das elites. Mas, se o chefe do Executivo é iliberal, a mudança sofre retrocessos.

 MAJESTADE

 Assim, as raízes do Brasil econômico são políticas. A essa mesma conclusão chegou, em 1932, Ernest Hambloch, cônsul britânico no Rio de Janeiro. Para ele o problema do atraso econômico do país resultava de suas instituições políticas e, particularmente, do abuso de poder presidencial. Em seu livro sugestivamente intitulado "Sua Majestade o Presidente do Brasil" (1936), sua crítica centrava-se no poder despótico exercido pelo Executivo e a ausência de "rule of law", o império da lei:

 "Quando as coisas continuamente não estão bem em um país com os recursos formidáveis que o Brasil possui, deve haver uma constante que explique o fenômeno. Altas tarifas de importação, impostos de exportação, políticas de valorização com endividamento excessivo, falta de continuidade nas políticas de administração pública, distúrbios sociais e revoluções –todos esses fatores podem ser apontados para explicar as atribulações do comércio e das finanças públicas. Mas esse fatores não são as causas fundamentais e eles próprios não explicam nada!"

 E conclui: "As raízes dos problemas brasileiros devem ser buscadas nas deficiências do regime político". A forte tradição iliberal é a grande vencedora no processo histórico de construção do Estado no país. Sustentar o contrário é perder de vista o essencial: as instituições políticas brasileiras foram forjadas a partir de uma profunda rejeição de uma visão liberal "latu senso". As raízes do Brasil político e econômico não estão fincadas na demonização do Estado: pelo contrário, estão profundamente imbricadas na sua santificação. A transição começou, embora a grande variedade de sintomas mórbidos cause perplexidade.

*Marcus André Melo é professor titular de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e foi professor visitante nas universidades Yale e MIT.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

O título não veio, mas salve a malandragem salgueirense!

Por Murillo Victorazzo

Por essas ironias surpreendentes do carnaval, o Salgueiro, principal favorito ao título do carnaval carioca, não confirmou a décima estrela tão esperada devido a uma concepção plástica abaixo dos padrões que tradicionalmente lhe garantiram notas máximas nos quesitos Fantasia e Alegorias. Fragilidade que teve na queda de luz do carro abre-alas seu ponto mais falado.

O "chão" - canto, dança, evolução,harmonia - a "furiosa" bateria, comissão de frente e casal de mestre-sala e porta bandeira não perderam um décimo sequer, mostrando uma escola alegre, ensaiada e vibrante, o que deixou no salgueirense uma enorme frustração pelo justo quarto lugar.

Mas, se plasticamente o Salgueiro deixou a desejar, o malandro batuqueiro vermelho e branco entrou para História da Sapucaí por desenvolver um tema de profundo significado e riqueza cultural. Um aula, no sentido literal da palavra e com muito esmero, sobre o Rio de Janeiro, sua noite e suas raízes afros, enaltecendo a tolerância religiosa e a diversidade sócio-cultural.

A boa malandragem, a boemia carioca, o "povo da rua" e a umbanda estiveram presentes com perfeição na Avenida graças a um brilhante trabalho de pesquisa do Departamento Cultural da escola em parceria com os carnavalescos Renato e Marcia Lage. Um  enredo mais do que merecidamente nota 40 e Estandarte de Ouro, embalado por um samba igualmente arrepiante.

Em post na sua página no facebook, mestre Ney Lopes explicou com o conhecimento que lhe é típico por que a "Ópera dos Malandros" foi a melhor história contada no Sambódromo neste ano. Deixou o salgueirense ainda mais orgulhoso de ser salgueirense.

Fizemos jus à fama de sermos "nem melhor, nem pior, apenas diferente" e ratificamos com maestria o nosso papel de Academia do Samba. Obrigado, Departamento Cultural! Obrigado, compositores!

A LENDA DO “THEATRO” APAGADO
(Ney Lopes)

Definir o que seja um Orixá não é fácil. Tanto que, entre os oeste-africanos do povo Fon (“jeje” no Brasil e “arara” em Cuba), o termo correspondente a orixá, é assim explicado: “A palavra vodún evoca uma ideia de mistério e designa algo que extrapola o divino. É toda uma manifestação de força que não se pode definir; algo que ultrapassa a imaginação e a inteligência” (Segurola et Rassinoux, Dictionnaire fon-français, 2000).

De nossa parte, entendemos que um Orixá é, sim, uma força intensa; mas que se situa dentro da cadeia de forças do Universo, a qual nós humanos também integramos. Então, não devemos apenas cultuá-los, mas, sim – respeitosamente e reconhecendo nossa inferioridade –, interagir com Eles. Devemos tratá-los bem e agradá-los, mas jamais carnavalizá-los. Esta é a nossa opinião.

Já com aquelas entidades espirituais que tiveram vida terrena, qualquer que seja seu domínio, a conversa é outra, pois elas conservam características humanas e gostam de ser lembradas, paparicadas, cultuadas e até carnavalizadas. E o enredo salgueirense, “nem melhor nem pior, apenas diferente”, do carnaval deste ano – que aqui se encerra neste texto – mostrou isso. E exatamente por isso foi o único a motivar reflexões intelectualmente profundas, como as contidas nos artigos de Marcelo Mello (O Globo, 11/02/2016) e do nosso querido parceiro Luiz Antônio Simas, em O Dia, hoje, 17 de fevereiro.

Diz o Simas: “Falar de orixá, para muita gente, é encarado como algo normal em desfiles de escolas de samba, salvo faniquitos dos intolerantes mais histéricos. Mas o Salgueiro foi além e falou, a partir do musical de Chico Buarque, da macumba carioca, do catimbó nordestino, do povo de rua virado na malandragem do Rio, na pulsão entre a ordem e a desordem que a cidade enseja. (...) Botar Tranca-Rua de capa e cartola abrindo o desfile e o Zé das Alagoas, juremeiro do catimbó, fechando, cercado pelas pomba giras e abençoado por Oxalá, faz mais pela luta por uma cidade plural que muito discurso bacana”.

Antes, Marcelo Mello, que não temos o prazer de conhecer, já tinha assinalado: “O Salgueiro foi uma metáfora do conflito entre o desejo e os limites que a realidade impõe. E nada melhor para entender isso do que analisar a sequência dos atos do desfile. Na comissão de frente, um componente de fantasia vermelha e preta, cartola, capa e ar petulante abria os trabalhos ao lado de pomba giras que rodavam com sensualidade escancarada saias cenográficas. A cena era um desafio a ordem constituída ao anunciar que seria liberada a libido que precisa ficar dentro de algum limite, por mais elástico que seja”.

Tudo isso, com uma trilha sonora que não lembrava nada do que já se conhecesse em termos de melodia de samba-enredo e uma letra absolutamente de acordo. Mas faltou dizer ao jurado de alegorias que as entidades espirituais descidas à Sapucaí naquela noite salgueirense, embora gostem de carnaval, gostam mais das sombras que das luzes estonteantes.

Foi por isso, só por isso, que a alegoria do “Theatro” Municipal pareceu apagada. E fim de papo!