terça-feira, 14 de novembro de 2023

Rio de Janeiro: a idealização e o paroxismo brasileiro

Por Murillo Victorazzo

Fundada por Estácio de Sá a fim de proteger o território além-mar português de recorrentes tentativas de invasões francesas, o Rio de Janeiro, de uma pequena cidade colonial mal planejada, apertada entre morros e o mar, foi progressivamente se tornando a principal cidade do país. Alçada a sede do Vice-Reino do Brasil em 1763, esse protagonismo se potencializou com a chegada da família real portuguesa em 1808 e sua consequente transformação em capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O novo status significou o início de profundas transformações urbanas na cidade. Ocorridas por todo século XVIII até chegar ao início do século passado, essas intervenções refletiam um projeto político de nação. Com elas, entretanto, realçavam-se contradições e desigualdades sociais, uma marca que não cessaria com o tempo.

A chegada da Corte representou não apenas o início da formação de uma nova nação, mas também a construção de um império na América. As mudanças já eram visíveis nos dois meses que antecederam a chegada de Dom João VI: edificações foram desocupadas, e as casas mais requintadas requisitadas para receber a família real e a burocracia que com ela chegava - uma máquina administrativa inflada por cargos recém-criados apenas para atender recém-chegados desprovidos de renda garantida. “Alguns proprietários se defendiam da ‘invasão de fidalgos` simulando ou mesmo realizando obras perfeitamente dispensáveis. Obras eternas...”, lembram Lília Schwartz e Heloisa Starling em seu livro "Brasil, uma biografia" (2015). 

Alargaram-se ruas para a passagem de veículos de maior porte da nobreza e, com a abertura dos portos ao livre-comércio, rompendo com o “pacto colonial”, produtos e empreendimentos estrangeiros se difundiram rapidamente na cidade, diversificando o comércio local. O novo cenário atraía imigrantes, que cada vez mais passaram a incorporar à cidade novos hábitos cotidianos.

Em 1808, a cidade tinha, segundo estimativas, cerca de 60 mil habitantes, sendo metade escravos. Doze anos depois, dos 90 mil moradores, 38 mil eram cativos. “Tratava-se desde Roma da maior concentração de escravos, com a particularidade de que, no Rio de Janeiro, seu número se equilibrava com as dos descendentes europeus (...) O Rio de Janeiro parecia uma cidade da costa d´África, com desfile de grupos de diferentes origens que portavam orgulhosamente escarificações e marcas da nação no rosto e corpo”, afirmam Schwartz e Starling.

Simultaneamente, pela importância de seu porto, escoadouro dos principais produtos de exportação do país e de localização estratégica no oceano Atlântico, a cidade, antes mesmo de tornar-se capital, já era a principal via de ligação com a Europa. Com o novo status, tornava-se ainda mais a porta de entrada não apenas de produtos e mão de obra mas especialmente das ideias iluministas que pulsavam no Velho Continente. 

Era essa a cidade que, segundo a nobreza instalada e a elite, precisava “civilizar-se” a fim de condizer com o papel de capital de um vasto império transatlântico. Arquitetura é ideologia, e esta se refletiria em projetos para modernização urbana da cidade. “A vinda da família real foi o primeiro momento em que a ideia de civilização começaria a ser articulada ao território da cidade”, diz Amanda Carvalho em seu artigo "Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte: planos, intenções e intervenções no século XIX" (2014).

Se, até 1810, o monarca se preocupara mais com medidas administrativas, a partir de 1811, o foco passou a ser esse “banho de civilização”, iniciado com a criação do Horto Botânico, o Real Teatro São João e, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. No mesmo ano, chegou a Missão Artística Francesa, formada por pintores, arquitetos, escultores, artesãos, entre outros artistas. 

No entanto, assim como a multiplicidade cultural, o ideal “civilizatório” não se limitou ao período joanino. Ao contrário, foi a marca do Rio de Janeiro imperial e do início republicano. O intuito era tornar a capital uma “Europa Tropical”, o que levou a cafeterias elegantes, bailes, teatros, palacetes, calçamento com paralelepípedos, iluminação à gás, bonés puxados a burros, amplas avenidas retas e bem iluminadas, parques públicos bem arborizados e madames e cavalheiros trajados com tecidos e modelos europeus dividirem o mesmo espaço com as estruturas escravistas que sustentavam a economia brasileira. 

Em um emaranhado cultural que contava com gente de diversas nacionalidades europeias, ganhou proeminência a cultura francesa, não por acaso origem de grande parte dos pensadores iluministas “A Rua do Ouvidor transformava-se no símbolo direto dessa nova urbanidade, segundo a qual se pretendia viver nos trópicos como nos bulevares europeus (...) O modelo era a Paris burguesa, contudo a realidade local oscilava entre bairros elegantes e ruas onde só se notava o trabalho escravo e dos libertos”, sendo essas muitas vezes ruelas mal iluminadas e com esgoto a céu aberto, explicam Schwartz e Starling.

Nesse longo processo de reforma urbana, o grande marco foi a construção, em 1905, da Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco). Cortando de “mar a mar” a Cidade Velha, a obra demoliu cerca de 700 edificações. Também marcantes foram as implosões dos morros do Castelo e Senado, justificadas como necessárias para o “embelezamento, salubridade e ventilação” da cidade, e a canalização do mangue na Cidade Nova, em paralelo à abertura de uma larga e longa avenida, a atual Avenida Presidente Vargas.

Por todo o século XVIII, em meio a tamanhas transformações, o contraste entre o real e o idealizado se viu ainda mais flagrante, por mais que, para a Corte,  nas palavras de Schwartz e Starling, “o mundo escravo e o mundo do trabalho deveriam ser não só transparente como silenciosos". Em 1849, o Rio de Janeiro continuava a ser a maior concentração urbana de escravos no mundo desde o fim do Império Romano, em uma proporção de 41% da população. No núcleo central da Corte, onde se encontrava seus principais prédios públicos e o comércio mais importante do país, dos 206 mil habitantes, 79 mil - 38% - encontravam-se escravizados, trazendo consigo todo tipo de violência, da simbólica à física, decorrente desse sistema.

Segundo Carvalho, a pretensão civilizatória, diante do cenário real, obrigava “a marginalização da estética e das práticas que não conseguiam refletir essa mudança”. Como porta de entrada do país, as classes mais baixas precisaram ser afastadas no centro geográfico de poder da cidade. Assim foi com a demolição, para a abertura da Avenida Central, de inúmeros cortiços, fonte de insalubridade para o então prefeito Pereira Passos. Essas moradias coletivas de precárias condições sanitárias foram brilhantemente retratadas em uma das obras mais clássicas da literatura brasileira, "O Cortiço", de Aloísio Azevedo, escrito em 1890. 

As camadas mais pobres deveriam ir para os subúrbios – que já tinham uma rede de transporte público - ou para as favelas, já existentes desde 1897. O choque entre esses dois lados do Rio de Janeiro reforçava o que Sandra Pesavento, em seu livro "O Imaginário da Cidade – Visões Literárias do Urbano" (1999), chama de “aspecto metonímico da reforma urbana” – o embelezamento de um detalhe da cidade, expondo a relação entre o ´ser´ e o ´parecer`”.

Como capital, a modernização do Rio de Janeiro significava a modernização de uma nação em processo de construção. O Rio de Janeiro levaria o Brasil ao “caminho da civilização”, diz Pesavento. Em uma sociedade majoritariamente analfabeta, acrescenta Carvalho, a iconografia se apresentava como “importante instrumento para construção e fortalecimento da pátria local”. Contudo, além de idealizar uma cidade que estava longe de refletir sua realidade, o Rio de Janeiro em construção pouco tinha a ver com o país real que pretendia representar. As cidades brasileiras eram ilhas cercadas de um ambiente rural onde imperavam a escravidão, o latifúndio, o mandonismo dos oligarca rurais e a religiosidade. A antítese das ideias liberais.

O desejo de montar um aparato laico em relação as artes e a intenção de impor uma nova cultura artística” iam de encontro à tradição do país. Por exemplo, visto em muitas das edificações e obras produzidas na capital, o estilo neoclássico francês, instrumento da Revolução Francesa, contrapunha-se ao barroco de cunho católico, tradicional no Brasil a partir do interior mineiro, região que ganhara relevância econômica graças ao “ciclo do ouro”. Sua proximidade com o porto carioca, aliás, havia sido uma das razões do crescimento em importância da almejada "Paris tropical".

O Rio de Janeiro oitocentista representava uma capital litorânea que mirava a Europa enquanto dava as costas para o interior, ainda que os insumos de sua força econômica viessem de lá. Mas o Brasil urbano era uma miragem. As capitais representavam menos de 10% da população em 1890, sendo 60% desse contingente concentrado em Rio de Janeiro, Salvador e Recife. 

“Percebe-se, portanto, ao mesmo tempo a importância da corte como centro irradiador, mas também seu caráter de exceção. A moda era para poucos. A escravidão e o abandono do habitante do Brasil profundo eram e seriam até o final do reinado de Pedro II as grandes contradições de seu império que se pretendia civilizado”, argumentam Schwartz e Starling. Contradições que pouco se alterariam com a Abolição e as primeiras décadas República, durante as quais a estrutura socioeconômica permaneceu praticamente a mesma.

Se o intuito das elites e da nobreza fora o apagamento do Brasil real, a realidade se sobrepôs ao reforçar desigualdades e violências. O Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que em muitos aspectos diferenciava-se do Brasil, continha em si os principais males do país. Idealizada como marco civilizatório nacional, até mesmo pelas restrições administrativas intrínsecas ao fato de ser capital federal ironicamente não foi a primeira região brasileira a abolir a escravidão, posto ocupado pelas “longínquas” províncias do Ceará e Amazonas quatro anos antes da Lei Áurea. 

Provavelmente o melhor retrato das especificidades contraditórias cariocas se deu no porto da cidade, em muito responsável por sua elevação à principal cidade do país. Por lá chegaram os ideais liberais do “Século das Luzes”, mas também por lá chegavam os escravos, principal símbolo do Brasil arcaico. Porto este que foi o maior mercado de cativos do mundo, recebendo, em menos de um século, um dos quatro milhões de escravos desembarcados no Brasil durante os cerca de 300 anos de escravidão. 

Assim como a beleza natural inigualável, a "Cidade Partida" a que se referiu Zuenir Ventura em seu livro homônimo (1994) está no gene carioca. Nela, o imaginário continua a se confrontar com o real. Desde sempre, em maior ou menos intensidade, o Rio de Janeiro, gostem ou não ainda o cartão postal do Brasil, foi o projeto almejado e, nas virtudes e nos defeitos, o paroxismo do país. Seja ou não sua capital. A "cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos" cantada por Fernanda Abreu.