segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Volta, Lula!

Por Ricardo Noblat (O Globo, 15/08/2011)

Um dos donatários do Poder, ocupante de amplo e luxuoso imóvel numa das áreas mais nobres de Brasília, registra com letra miúda em um caderno de capa preta dura os relatos que lhe chegam regularmente sobre memoráveis reprimendas aplicadas por Dilma Rousseff em seus auxiliares desde que tomou posse há oito meses como presidente da República.

Não. Não peçam que eu revele o nome do (a) aplicado (a) cronista da Corte. Ele (a) cumpre sua missão com gosto, paciência e de olho na posteridade. Adianto apenas que é partidário (a) de Dilma. E que a ajuda vez por outra. Jamais foi alvo de uma descompostura presidencial. Não teria cabimento. E pronto. Mais não digo.

O “Caderno das Reprimendas de Dilma Rousseff”, inaugurado em fevereiro último, reúne 16 histórias até agora. Acompanha cada uma delas uma espécie de ficha técnica com data, hora, local e personagens. Três histórias seguem contadas aqui de forma resumida, suprimidos ou trocados alguns dos seus termos menos elegantes.

Dilma despacha com Maria do Rosário, ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Em discussão, a Comissão da Verdade a ser criada pelo Congresso para esclarecer casos de violação de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Diante de algo que a ministra diz, Dilma perde a paciência: "Cale sua boca. Você não entende disso. Só fala besteira".

Dilma despacha com Ideli Salvatti no dia seguinte à sua nomeação para o ministério das Relações Institucionais. Leitora atenta de jornais, ela sabia o que Ideli dissera na véspera aos jornalistas. E não gostara. Queixou-se: “Na primeira coletiva que você dá vai logo dizendo bobagem... Imagine nas próximas".

Dilma despacha com Antonio Patriota, ministro das Relações Exteriores. Quer saber em que pé andam as discussões na ONU sobre países fornecedores de insumos nucleares. Lá pelas tantas, irritada, interrompe Patriota e o adverte: “Ou você e sua turma dão um jeito nisso ou então demito toda aquela itamarateca".

Sarney foi um presidente de fino trato. Assim como FH. Collor era formal. Contrariado, ficava pálido. Mas não estourava com seus auxiliares. Lula estourava, sim. Não o constrangia destratar Gilberto Carvalho, seu assessor mais próximo, em meio a uma reunião ministerial. Depois pedia desculpas.

Por ora, não há registro de pedido de desculpas feito por Dilma. Nem mesmo ao ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal. Outro dia, Peluso telefonou duas vezes para Dilma. Que não lhe deu retorno. Devia estar muito ocupada, suponho. Ou sua assessoria falhou.

O estilo Dilma tensiona o governo e assusta os políticos em geral. A maioria deles está convencida de que ela enveredou por um caminho perigoso. Qual? O de posar de guardiã do interesse público em oposição a uma classe política que só pretende dilapidá-lo. O governo é bom. O Congresso está repleto de vilões.

De mãos postas, o ex-ministro José Dirceu nega a autoria de uma previsão que circulou em Brasília na semana passada: “Se Dilma continuar assim, correrá o risco de não concluir o mandato”. Mas a frase que ele não disse está na boca de políticos de partidos que apoiam o governo. Eles só não têm coragem de repeti-la em voz alta.

Estão acuados por uma presidente que não disfarça seu desprezo por eles, que os mantém à distância, que resiste a atender aos seus pedidos por cargos e dinheiro para pequenas obras, e que, por último, parece gostar de se exibir fantasiada de “faxineira ética”. É verdade que a faxina estancou às portas dos redutos do PMDB...

Os partidos que apoiam o governo não querem briga com Dilma. Querem o que tiveram em todos os governos: fatias do poder, respeito e afagos. Dispensam beijo na boca. Se não forem capazes de se entender com Dilma mesmo assim não a abandonarão. Não têm para onde ir. De resto, 2014 é logo ali. E Lula... Ah, Lula, suspiram os partidos da base aliada! Que falta você faz!







sábado, 13 de agosto de 2011

O risco Marta e a obrigação da vitória

Por Murillo Victorazzo

A 14 meses das eleições municipais, o PT começa a montar seu tabuleiro de xadrez. Detentor da Presidência da República há quase nove anos, do maior números de ministérios e da maior bancada na Câmara Federal, os petistas não escondem ao incômodo com a hegemonia da oposição no governo paulista e na prefeitura paulistana. Tornou-se questão de honra para eles conquistar o posto principal da cidade de São Paulo ano que vem. Alguns nomes já se movimentam para ser o representante do partido nesta  missão. O ex-presidente Lula, por exemplo, banca a candidatura do ministro da Educação, Fernando Haddad. Mas, por hora, a favorita parece ser a ex-prefeita e senadora Marta Suplicy.

Marta se viu, na última semana, politicamente acuada. Seu ex-assessor Mario Moysés foi preso pela Polícia Federal acusado de ter integrar um esquema de desvio de dinheiro de emendas parlamentares no Ministério do Turismo. Moysés foi levado para  o segundo escalão da pasta por ela, então ministra, tendo sido ainda seu auxiliar na prefeitura paulistana. O líder tucano na Câmara, Duarte Nogueira, logo subiu à tribuna para ressaltar essa relação e tentar empurrar para o período em que Marta comandou o ministério a roubalheira. Sinal óbvio de que a oposição usará o caso para tentar enfraquecê-la eleitoralmente. Não se sabe ainda se a tática dará certo e qual seria a dimensão do estrago. Mas o fato, por si só, é mais um ingrediente na salada de erros que a militância petista engolirá caso insista em embarcar no projeto da senadora.

Um dos argumentos que Marta usa para se cacifar como candidata são as pesquisas correntes que lhe dão o primeiro lugar nas intenções de voto. Baseada nelas, garante ser a única capaz de derrotar os tucanos, principalmente se o candidato destes for o ex-governador José Serra. Sua gestão (2000-2004), afirma, deixou marcar fortes, principalmente nas regiões mais pobres da cidade. Se olharmos o mapa de votação do pleito de 2004, quando Marta perdeu a reeleição justamente para Serra, sua lógica parece certa. Ela venceu com folga nas zonas eleitorais dos bairros menos nobres. Porém, no processo de escolha, outros senões deveriam ser levados em conta pela cúpula e militância petistas.

Naquela eleição, Marta consolidou alta taxa de rejeição entre as classes média e alta, o que alavancou para 45% do eleitorado total os que não admitiam votar nela. Segundo especialistas, um índice que inviabiliza qualquer chance de vitória em pleitos com dois turnos. Foi quase consenso entre jornalistas e cientistas sociais que houve, naquela votação, descolamento entre a avaliação sobre candidata Marta e o nível de aprovação de seu governo. A imagem contraditória de uma mulher independente e socialmente liberal se misturava a sua oratória e a seus trejeitos e vestuário presunçosos. Uma "dondoca" arrogante cuja gestão priorizou áreas carentes é uma personagem tão complexa que, se, por um lado, pode agregar méritos, por outro, cria antipatias em diferentes nichos sócio-econômicos.

Em 2008, Marta tentou novamente voltar à prefeitura paulistana. Venceu o primeiro turno, mas acabou perdendo por boa margem para o prefeito Gilberto Kassab, então no DEM. Derrota que deve ter surpreendido, se tanto, apenas a cúpula petista. Poucas capitais brasileiras sedimentaram um antipetismo tão amplo como São Paulo. Junte a esse traço ideológico o peculiar perfil da candidata e a equação para o fracasso tornava-se fácil de ser resolvida. Na época, o quadro agravou-se com a constante lembrança pelos adversários de sua atuação como ministra do Turismo durante a crise aérea, em 2007. Ao ser questionada sobre os percalços dos passageiros, Marta disparara a infeliz e cínica expressão "relaxa e goza".

A petista saiu daquela campanha menor do que entrou. Não apenas pelos votos insuficientes, mas pelo tipo de estratégia adotada. Na reta final, chegou a apelar para insinuações sobre a vida pessoal de Kassab. Retóricas conservadoras deveriam sempre causar asco; vindo de uma sexóloga feminista que ganhou projeção na defesa dos direitos dos homossexuais, o desprezo ganhou contornos insuperáveis de hipocrisia e desespero. Logo ela que tanto sofrera preconceitos em eleições passadas. Além da derrota eleitoral, Marta sofreu uma derrota política que alavancou ainda mais sua rejeição. Nem mesmo sua eleição para senadora, ano passado, deveria ocultar tal fato, já que, por pouco, consegue a proeza de não conseguir nenhuma das duas vagas em jogo. Carregaria, durante bom tempo, o fardo de se ver ultrapassada pelo ex-pagodeiro Netinho.

Todas essas sinalizações não parecem ter tirado o seu salto alto. Ela e seu grupo acreditam que, com Lula em seu palanque, seria possível mudar, desta vez, o final da história. Sua autoconfiança não chega a surpreender, mas as bases irem por esse caminho, sim. Estar em primeiro lugar em pesquisar nesse momento não é prova cabal de popularidade. Neste momento, suas intenções de votos em muito se devem também ao que os analistas chamam de "recall", ou seja, a lembrança de um nome bastante conhecido. É claro que Marta tem seu eleitorado cativo e não se nega, como já dito, que sua gestão tem o que mostrar. Mas a insistência com um nome que já demonstrou ter dificuldades de ampliar seu teto de votos é temerária.

Lula, raposa política que é, parece ter entendido a situação. Insiste no nome de Haddad, que, porém, peca pela falta de traquejo político e de vida partidária, ainda que seja filiado ao partido há um bom tempo. Não à toa, pressiona para não haver prévias internas. Sabe que, além de propiciar uma cisão interna que levaria a uma derrota certa em outubro de 2012, seu preferido teria enormes dificuldades em bater chapa com Marta, experiente conhecedoras dos corredores da máquina petista. E que é mais fácil usar sua força para impedir a votação interna do que, esta decidida, arregimentar votos de centenas ou milhares de filiados para um "novato".

Haddad deu o pontapé inicial em sua pré-candidatura semana passada, quando participou de caravanas que o PT faz pela cidade. Nem as menções ao seu trabalho nos governos Lula e Dilma e os fartos elogios a estes impediram a militância de sair entediada com suas frases repletas de conceitos e números. Um discurso "muito administrativo e pouco político", como afirmou um líder da sigla. A seu favor, a inevitável comparação com a presidente Dilma, também considerada, no início da campanha do ano passado, excessivamente modorrenta e corpo estranho à base petista.

Lula certamente usará o exemplo de Dilma para convencer os petistas a abraçar seu pupilo. Lembrará ainda inúmeros casos de políticos que, embora inicialmente desconhecidos, chegaram, com apoios de nomes e máquinas fortes, à vitória. O grupo de Marta, por sua vez, defende que, em São Paulo, onde o petismo é mais fraco, apenas a capacidade de transferência de votos de Lula não seria suficiente para o ministro triunfar. Para eles, Marta iniciará a campanha já com cerca de 30%. Se conseguir diminuir em apenas cerca de 10% a antipatia a seu nome, terá ótimas chances de  vitória. Já Haddad teria que começar praticamente do zero, sendo que sua rejeição é uma incógnita. Alguns "martistas", aliás, gostam, sutilmente, de lembrar fatos controversos ocorridos em sua gestão no MEC. Polêmicas como a fraude no ENEM e os erros em cartilhas e livros didáticos, asseguram, seriam empecilhos à conquista dos setores médios da população.

Na verdade, o dilema petista é reflexo da falta de novas lideranças regionais fortes. Algumas das mais experientes foram se queimando com o passar dos anos e dos escândalos. Outras acabaram por sair do partido. É por isto que boas razões não faltam a Lula quando tenta tirar o partido da cantilena em que se transformaram os últimos processos decisórios paulistanos, com Marta e o ex-senador Aloísio Mercadante sempre se confrontando. Mercadante, inclusive, só refugou de mais uma pré-candidatura devido à volta  do escândalo dos "aloprados" ao noticiário.

O quadro geral do próximo pleito ainda está indefinido. Não se sabe quem Kassab apoiará nem se a candidatura do deputado Gabriel Chalita, do PMDB, é para valer. Se for, ainda é difícil assegurar sua dimensão. No ninho tucano, exceto José Serra, os demais tampouco podem ser considerados nomes fortes. A possibilidade de prévias para escolher entre José Aníbal, Andrea Matarazzo e Bruno Covas, caso Serra não queira disputar, é sinal da falta de um candidato natural. Mas, diferente do nível nacional, em que a prévia, ano passo, chegou a ser cogitada por ter o PSDB dois candidatos de peso para a Presidência, no plano municipal, a razão é oposta: falta de densidade eleitoral.

PT e PSDB estão em situações parecidas: um nome de peso e outros poucos conhecidos. Mas as semelhanças são apenas aparentes. Serra, ao contrário de Marta, tem menor rejeição e suas administrações, tanto com prefeito como governador, causam melhores lembranças a setores mais diversos da população. E São Paulo é considerado praticamente um reduto tucano. Além de a sigla comandar o Palácio Bandeirantes desde 1995, Lula e Dilma perderam em 2006 e 2010 tanto no estado como na capital. Precedentes que servem, não sem sentido, de argumento para os dirigentes do PSDB considerarem o apoio do governador Geraldo Alckimim tão importante quanto o de Lula em 2012. A viabilidade de um desconhecido do PSDB tende, por isso, ser maior, ainda mais que  um deles é dono de sobrenome com insuspeito potencial de votos: Bruno é neto do ex-governador Mario Covas.

Ainda que, como dizia o ex-governador mineiro Magalhães Pinto, a política seja como as nuvens, com os seus desenhos mudando a cada hora, alguns nortes prováveis ela sempre tem. É certo que o candidato petista, seja lá qual for, não terá vida fácil, ainda mais com as restrições econômicas com que o governo Dilma terá de lidar ano que vem. Uma conjuntura que, aliada às peculiaridades locais e pessoais, torna qualquer tentativa de inversão de rejeição pouco possível.  Por outro lado, além de permitir formatar um candidato mais palatável a outros setores sem perder seus redutos, a renovação sempre nos suscita esperanças. Já um nome fadigado nos traz perspectivas mais rígidas.

Diante desse cenário, o risco de atirar no escuro com um "desconhecido" não será muito diferente do de insistir em Marta. Mas o fracasso terá implicações bem maiores para ela. Com três derrotas seguidas para a prefeitura, verá inevitavelmente seu capital político despencar, levando junto suas aspirações maiores a cargos executivos. O PT, por sua vez, rifará de vez uma liderança regional e terá perdido a chance de mostrar ao eleitorado uma nova cara. Além de não poder apelar a desculpas tão comuns no futebol: "jogamos com o time reserva" ou "o atleta ainda tem muito que aprender; é um projeto para quatro anos".



quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Amorim rebate críticas e defende general do Exército

Por Eliane Cantanhêde (Folha de S.Paulo, 10/08/2011)

Em resposta aos seus críticos militares, o novo ministro da Defesa, ex-chanceler Celso Amorim, provoca: "Você não pode fazer das Forças Armadas uma coisa partidária nem para a esquerda, nem para a direita".  Em entrevista no novo gabinete, Amorim, 69, disse que o comandante do Exército, general Enzo Peri parece uma pessoa "não apenas ilibada, mas até um asceta". Um relatório do TCU (Tribunal de Contas da União), como a Folha revelou na terça-feira, diz que Enzo favoreceu firmas ligadas a militares ao dispensá-las de licitação entre 2003 e 2007.

Folha de S.Paulo - Quem convidou o sr. a presidente Dilma ou o ex-presidente Lula?
Celso Amorim - A presidente Dilma, claro. Fui sendo prevenido aos poucos, ela me ligou poucos minutos antes do anúncio, e eu só falei com o presidente Lula no domingo, depois de conversar pessoalmente com ela.

Folha - O sr. tinha mágoa de não ter sido convidado para nada por ela na troca de governo?
Amorin - Mágoa nenhuma. Sou a favor da renovação e eu não podia querer me perpetuar num cargo ou disputar outro. Já tinha até alugado apartamento em Brasília para o depois. Essa coisa de que não nos damos bem é do imaginário. Ao contrário, nós nos damos excelentemente bem.

Folha - O seu nome foi cogitado para a Defesa quando o ministro Waldir Pires caiu e depois no início do governo Dilma. O sr. tinha a expectativa de assumir a pasta?
Amorim - Nunca tive essa expectativa, nem era uma aspiração, mas há uma relação óbvia entre as funções dos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa. Eu já considerava minha carreira de homem público completa, esperava ser professor, colunista, palestrante.

Folha - Aliás, o sr. mantém a crítica que fez na revista "Carta Capital" ao voto favorável do governo Dilma a um relator especial da ONU para apurar abusos contra Direitos Humanos no Irã?
Amorim - Hoje, eu sou parte do governo e tenho de participar solidariamente das decisões do governo, e essa pasta pertence a outro ministro. Como intelectual independente, o que eu escrevi e disse claramente é que, se fosse eu, não teria tomado aquela atitude.

Folha - Uma das mais fortes críticas que oficiais militares fazem ao sr. é justamente a ligação com o Irã.
Amorim - Nós nunca ficamos amiguinhos do Irã, e o Irã jamais foi uma prioridade da nossa política externa. O que foi uma prioridade, sim, num determinado momento, foi resolver um problema grave para o mundo que, aliás, continua existindo: o problema do programa nuclear do Irã. Como resguardar de um país ter um programa país e ao mesmo tempo resolver as desconfianças que havia? Tentamos viabilizar uma proposta dos países do Ocidente, a começar dos Estados Unidos, que depois mudaram de posição e acharam que não era mais assim. Mas a verdade é que tivemos estímulo deles. Ou seja: nunca houve uma aventura iraniana, como alguns querem fazer crer. Houve uma atitude independente e transparente nossa.

Folha - O sr. é "esquerdista"?
Amorim - Esses rótulos, é melhor deixar os outros colocarem. Uns dizem que fui colocado pela presidente Dilma por ser nacionalista, o que agrada aos militares. Outros, que foi porque sou esquerdista, o que não agrada a eles. Mas, no Brasil, nacionalismo não é confundido com esquerdismo?

Folha - A presidente disse que o sr. é patriota. Como o sr. define esse conceito?
Amorim - Nossa ideologia é a pátria e a Constituição. Fui sempre um profissional do interesse nacional. Uma coisa é você ficar trancado na sua casa, torcendo para o Brasil num jogo de futebol, o que é muito bom e todos nós fazemos isso. Mas outra é você ser um profissional do interesse nacional. Acho que sempre fui e de várias maneiras, em negociações comerciais, políticas, de segurança nacional. Você não descreve com palavras e sim com atitudes.

Folha - A brincadeira automática, depois que a presidente disse que o sr. é patriota é que o Patriota não é nenhum Amorim... Já disseram até que ele volta na prática a ser secretário-geral do Itamaraty.
Amorim - Isso não tem nenhum sentido. Eu tenho muito o que aprender aqui na minha pasta, nem vou ter tempo para olhar para a dos outros. Eu e o Patriota trabalhamos juntos quinze anos e, desse susto, nem ele nem vocês morrem.

Folha - O sr. vai trazer diplomatas?
Amorim - Não estou pensando nisso.

Folha - Vai trocar eventualmente algum comandante militar?
Amorim - Não é minha intenção nem recebi nenhuma orientação nesse sentido, ao contrário.

Folha - Num dos seus artigos, o sr. também escreveu que não são satisfatórias as relações entre o poder civil e os militares e a responsabilidade por atos cometidos na ditadura. Como pretende avançar nos dois casos?
Amorim - Não me recordo exatamente das palavras que usei nesse artigo, que era sobre como o Brasil pode ajudar na transição dos países árabes e comento o que ocorreu no Brasil, inclusive sobre as relações de civis e militares. Não é que eu disse que não são satisfatórias, mas que talvez algumas pessoas não vejam como satisfatórias. É uma constatação de um fato, mais do que um juízo de valor. Mas sei que a subordinação das Forças Armadas ao poder civil é clara e que a presidente Dilma exerce esse comando obviamente, e o ministro da Defesa é um instrumento dessa hierarquia.

Folha - Por que o sr. não fez nenhuma referência no seu discurso à Comissão da Verdade negociada entre civis e militares?
Amorim - Fiz referências a Direitos Humanos, e acho que esse assunto, da Comissão da Verdade, está bem encaminhado. Acabei de chegar, hoje é meu primeiro dia de trabalho, e não tenho todas as respostas, mas tenho grande esperança de que a Comissão da Verdade possa ajudar a resolver essas questões. Vai ter algum reclamo de um lado e de outro? Não sei, mas sei que é uma boa base para aplainar a questão no futuro.

Folha - O sr. defende a responsabilização dos militares por atos cometidos na ditadura, como houve na Argentina, no Uruguai, no Chile?
Amorim - Nem as situações que geraram os fatos nem as soluções foram idênticas. O mais importante é o restabelecimento da verdade. Acho que esse assunto está bem encaminhado. Se houver bom senso de todos os lados e uma boa articulação política, que cabe ao ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo, do PT], nós chegaremos a uma boa conclusão.

Folha - O general Augusto Heleno...
Amorim - A quem aprecio, pelo bom trabalho que fez no Haiti e que eu acompanhei, porque nós trabalhamos juntos...

Folha -... disse que o comprometimento ideológico tem repercussão altamente negativa entre os militares. O sr. concorda?
Amorim - Acho que você não pode fazer das Forças Armadas uma coisa partidária, mas acho que nem para a esquerda, nem para a direita, nem para o centro. Agora, patriotismo é patriotismo. Cada um interpreta a seu modo, e para isso nós temos a presidente da República, que é quem escolhe, quem decide e quem foi eleita pelo provo brasileiro.

Folha - E as reações de setores militares contra a escolha de um novo diplomata, depois da passagem do embaixador José Viegas pela Defesa?
Amorim - Não fui escolhido por ser um diplomata. Fui ministro por nove anos e meio, no governo Itamar e nos oito anos do presidente Lula, e ministro é um cargo político. Estou assumindo um lugar novo que tem muitos desafios para mim, como teria para qualquer outro. Mas a gente aprende, se trabalhar com afinco e souber ouvir.

Folha - Vou lhe repassar uma pergunta que me foi feita por um oficial: e se fosse um general mandando no Itamaraty, os diplomatas iriam gostar?
Amorim - Os diplomatas são muito disciplinados, a tradição era que os ministros não fossem da carreira e houve mesmo um que vinha da carreira militar, o general da reserva Juracy Magalhães. Então, o importante é ser patriota, ter humildade para ouvir e capacidade para decidir.

Folha - Se a gente somar tudo o que o sr. disse no seu discurso de posse sobre soldos, equipamentos, investimentos, o sr. vai precisar de muitos bilhões de reais, mas os tempos não são justamente de corte?
Amorim - Bem, eu não vou resolver isso sozinho. O que eu disse é que vou me empenhar e que percebo uma sensibilidade grande da presidente para a Defesa.

Folha - Ela deu algum sinal de que vai descontingenciar recursos para facilitar sua chegada?
Amorim - Acho que não seria correto eu falar sobre isso, mas certamente vou falar com os ministros da área econômica. Qual a solução? Quando será a solução? Não sei. Vamos ver. E a questão do investimento na indústria de defesa faz parte da solução, não do problema. Nos EUA, a empresa privada é responsável pelos investimentos em ciência e tecnologia, mas, ora, tudo por encomenda do Pentágono. Isso mostra a importância que a Defesa tem para a indústria, para o desenvolvimento, para os empregos, para a tecnologia de ponta. A aviação brasileira nasceu dessa forma.

Folha - E o outro lado da moeda? Boa parte, ou a maior parte, da responsabilidade da crise norte-americana é justamente pelos gastos na área militar.
Amorim - Mas ninguém fala que vamos nos envolver em aventuras militares como os EUA se envolveram. Eles estão com duas a três guerras ao mesmo tempo.

Folha - No domingo, antes mesmo da sua posse, mulheres de militares fizeram manifestação por aumento de soldos. Os comandantes lhe pediram isso na reunião do fim de semana?
Amorim - Foi mais geral. Vamos esperar um pouquinho.

Folha - E os caças, vêm ou não vêm?
Amorim - Os caças terão que vir. Achava isso como ministro das Relações Exteriores e continuo achando agora como ministro da Defesa. Mas o momento exato ainda não dá para dizer.

Folha - Nisso, o sr. e o ministro Jobim combinam? Ambos querem os Rafale franceses?
Amorim - Havia um problema de preços e toda uma discussão sobre transferência de tecnologia. Naquela época, no governo Lula, parecia que o que tinha mais condições de fazer essa transferência era o francês. Se ainda é, não sei, porque não acompanhei o desenrolar das discussões sobre isso e sobre uma renegociação de preços.

Folha - Naquele momento, o recuo não foi por causa de cortes no Orçamento, mas sim a chateação do presidente Lula porque o Sarkozy tirou o tapete do Brasil na discussão sobre Irã na ONU?
Amorim - O presidente Lula disse isso para você? Para mim não disse...

Folha - Como fazer com o programa nuclear da Marinha, se não há dinheiro para mais nada?
Amorim - A última visita interna que fiz como chanceler foi justamente a Aramar, até porque sempre fui um entusiasta do programa nuclear da Marinha. O Brasil tem de ter independência nessa área, ter capacidade de dominar o ciclo completo. Acho que vai ter recursos, sim. A presidente é nacionalista, patriota e sabe da importância de proteger os nossos recursos, principalmente agora com o pré-sal.

Folha - Como o Brasil, com uma dimensão continental, com Amazônia, pré-sal e água, não tem satélite até hoje? É possível falar em soberania?
Amorim - São projetos que continuarão a ser desenvolvidos, em conjunto com o Ministério de Ciência e Tecnologia. Há sensibilidade para isso. Quanto à soberania, o mais importante é a atitude psicológica. Você tem de acreditar que é soberano. Você pode ter satélite, foguete, o que quiser, mas sem atitude sua soberania não vale nada. Se tiver atitude certa, vai ter o satélite certo, mas você pode ter o satélite certo e não ter a atitude certa.

Folha - E o acordo com os EUA para o uso da base de Alcântara, vai avançar?
Amorim - Foi paralisado no Congresso Nacional e não se trata de questão ideológica. Não tem muito cabimento brasileiros não terem acesso a certos lugares dentro do território nacional. É uma questão de soberania inegociável.

Folha - O ministro Jobim e o sr. estabeleceram uma linha de distanciamento dos EUA, mas o chanceler Patriota faz uma linha de aproximação. Onde o sr. se encaixa agora?
Amorim - Você faz uma pergunta com várias premissas que comportam discussão. O ministro Jobim até patrocinou, junto conosco, um acordo militar com os EUA... Não percebi nenhum distanciamento enquanto fui ministro. Acho que o ministro Patriota faz jus ao nome, e o ministro Jobim também agiu patrioticamente. O que nós temos que ver é o interesse brasileiro. Às vezes, será interessante fazer acordo com os EUA e, em outras, com outros países. Temos de ter a cabeça aberta. É preciso acabar com essa mania de que o que é a favor do Brasil é contra os EUA.

Folha - Por que o sr. defende a saída do Haiti?
Amorim - Defendo uma saída gradual do Haiti, pois cumprimos bem nossa missão lá, quero dizer, as Forças Armadas cumpriram. Dizem que democracia é quando um presidente eleito passa o governo para um outro presidente eleito, e foi isso o que ocorreu lá. Então, é hora de discutir uma saída organizada, inclusive com as Nações Unidas, claro. Não sei se em agosto, dezembro, janeiro, não é o que importa. O que importa é como. Uma possibilidade é sair, mas deixando um batalhão de engenharia do Exército lá, por exemplo.

Folha - Por que o sr. citou especificamente a África no seu discurso?
Amorim - Cabo Branco é o ponto mais oriental do Brasil. Fica mais perto de Dacar e Cabo Verde do que de Porto Velho ou Rio Branco, provavelmente. Então, são nossos vizinhos. As águas territoriais brasileiras e da África ficam muito perto umas das outras, quase se tocam. Então, são vizinhos de Além-Mar, como diziam os militares, e isso exige cooperação.Trabalhamos juntos na área militar com Angola, Guiné Bissau, Namíbia. Mas nossa prioridade era e é a Unasul, para assegurar a paz que gera desenvolvimento.

Folha - Segundo reportagem da Folha, o comandante do Exército, Enzo Péri, é investigado pelo TCU pois, quando diretor do Departamento de Engenharia e Construção da Força, assinou 27 contratos sem licitação com um instituto que subcontratava empresas ligadas a militares. Que providências o sr. vai tomar?
Amorim - Bom, o próprio general me disse que já há investigações militares e tomadas de conta iniciadas por ele próprio em relação a possíveis.... Não sei nem que termo usar, vamos falar possíveis irregularidades.

Folha - O comandante vai investigar ele próprio?
Amorim - Essas coisas são muito difíceis de a gente falar, mas é preciso separar o joio do trigo. A minha forte impressão é de que estamos com o trigo. Estou há muito pouco tempo aqui, mal cheguei, mas tenho 50 anos de serviço público e conheço as pessoas pelo olho. Às vezes a gente erra, mas quase sempre. O general Enzo me dá a impressão de uma pessoa não apenas ilibada, mas até de um asceta. Minha impressão é totalmente positiva. O que tiver de ser investigado será investigado, mas é preciso ver isso tudo direito, sem precipitação.

Folha - Como o sr. pretende contribuir para a faxina ética que a presidente determinou em outras áreas?
Amorim - Moralidade é importante em qualquer governo. As denúncias aparecem e são comprovadas? Têm de ter consequência. A presidente Dilma, me parece, vai aprofundar a inclusão social, o desenvolvimento e a moralidade pública.

Folha - Como foi seu encontro de hoje [ontem] de manhã com o antecessor Jobim?
Amorim - Fui ao apartamento dele, porque ele está doente, com o rosto inchado, mas tivemos uma boa conversa sobre os projetos que estão em andamento.

Folha - Se houver resistências públicas de oficiais, como já houve nos bastidores, como o sr. pretende agir?
Amorim - Não fique me colocando alçapões inexistentes...

Folha - Qual sua ambição no Ministério da Defesa? Quando o sr. sair, o que pretende deixar para dizer que a missão foi cumprida?
Amorim - Ter deixado o Brasil mais capacitado a se defender, ter uma atitude ainda mais altiva, sem abaixar a cabeça.

Folha - O deputado José Genoino vai continuar na Defesa?
Amorim - Vai. Se quiser, pode botar um ponto de exclamação.



sábado, 6 de agosto de 2011

O drama norte-americano

Por Mauricio Santoro (Blog Todos os Fogos o Fogo, 03/08/2011)

O Acordo da Dívida e a Derrota de Obama

O acordo entre governo e oposição para elevar o teto da dívida pública dos Estados Unidos evitou o apocalipse financeiro que seria a primeira moratória da história americana, mas é uma derrota para o presidente Barack Obama. Ele teve que abrir mão do aumento de impostos e precisará cortar gastos públicos, provavelmente na área social. Desde o início das negociações, sua popularidade caiu 5%, para apenas 40%. A Câmara dos Deputados e o Senado ainda precisam aprovar o acordo firmado pelas lideranças. É provável que isso aconteça, mas com tensões e fricções vindas da parcela mais conservadora dos republicanos (que não queria elevação do teto da dívida) e do grupo mais à esquerda entre os democratas (irritados pela iminente redução nos gastos sociais).

O acordo aumenta o teto em US$2,4 trilhões mas prevê igual corte nas despesas do governo, começando por US$900 bilhões ao longo da próxima década. Basta olhar o gráfico do orçamento dos Estados Unidos para ver que as principais despesas estão na área social e na Defesa. É muito difícil reduzir os gastos militares, embora isso tenha ocorrido no governo Clinton e mais recentemente, na própria presidência Obama. Pesam as eternas preocupações com segurança nacional (com três guerras simultâneas!) e a força dos lobbies da indústria bélica, e mesmo das bancadas regionais. A maior parte das bases militares americanas estão no sul e são importantes para a economia local, fechá-las signfica problemas para essas áreas. Politicamente, é mais fácil cortar de grupos com baixa representação política, como os mais pobres, reduzindo o orçamento da seguridade social, como auxílio-desemprego. Naturalmente, isso agravará os efeitos da crise econômica na população mais vulnerável.

Os republicanos ganharam a batalha, mas ainda não está claro se essa vitória irá beneficiá-los nas eleições presidenciais de 2012. Os eleitores americanos, tradicionalmente, apóiam compromissos e barganhas. É certo que a ascensão do Tea Party desequilibrou essa equação e colocou forte pressão sob os republicanos moderados.

Mesmo evitando a moratória, o status financeiro dos Estados Unidos foi reduzido e os títulos da dívida do país devem perder a classificação AAA, como aconteceu neste ano com Japão e Itália. Isso é um enorme problema, pois TODO o sistema financeiro global está estruturado na dívida americana como o ativo mais seguro. Os investidores já começam a buscar opções. Com muitas economias européias em dificuldades, alternativas têm sido títulos emitidos por empresas e por pequenas e estáveis nações, como Suíça, Suécia e Dinamarca. Os mercados reagem bem ao acordo, mas entramos numa nova etapa de incerteza na economia global. Mais mudanças e turbulências nos esperam próximos meses.

A Lógica do Impasse nos EUA

O impasse político entre democratas e republicanos, que ameaça levar os Estados Unidos à moratória também tem origens mais antigas do que as discordâncias atuais ente Obama e a oposição (na foto, o presidente e o republicano John Boehner, que preside a Câmara). Remonta à crescente divergência ideológica entre os dois partidos, da década de 1980 em diante. Entre a Segunda Guerra Mundial e aquele período, havia amplo grau de consenso entre democratas e republicanos com relação à política interna e externa. Naturalmente, existiam diferenças entre os dois partidos, mas não faltavam líderes moderados e pragmáticos capazes de construir alianças que atravessavam as divisões entre as siglas, e garantiam apoio para iniciativas fundamentais como o Plano Marshall, as leis dos direitos civis ou as decisões de desenvolvimento econômico (“Somos todos keynesianos agora”, na célebre declaração de Nixon).

A sucessão de crises da década de 1970 mudou isso, e a partir da presidência de Ronald Reagan houve uma forte reação conservadora que desmontou parte da estrutura criada pelo New Deal, sobretudo a regulação do setor financeiro e os pactos políticos com os sindicatos. Temas ligados à sexualidade ganharam proeminência, em longa série de batalhas em torno do aborto, do casamento gay e de assuntos semelhantes. Simultaneamente, acabou a Guerra Fria. A União Soviética foi desmantelada e os Estados Unidos perderam o inimigo externo que, bem ou mal, ajudou a dar coesão às suas elites, por meio de uma ameaça que as incentivava a formular acordos bipartidários. Essa cola não existe mais.



A polarização da década de 1990 foi amarga, mas o ótimo crescimento econômico dos anos Clinton amenizou muitas tensões. O presidente não conseguiu aprovar a reforma da saúde e quase perdeu o cargo por uma estagiária. E ainda assim, entregou o país emsuperávit (acima).  Os anos Bush foram de turbulência extrema: atentados terroristas, duas custosas guerras na Ásia, cortes de impostos e uma política montária descuidada que alimentou a bolha imobiliária – agravada pelos problemas na regulação e nas agências de classificação de risco.

O Tea Party surgiu em 2009 não só como reação à vitória de Obama, mas como rebelião das bases republicanas contra os erros do governo Bush, particularmente pelo aumento descontrolado da dívida pública. O sucesso eleitoral do movimento nas eleições legislativas de 2010 criou a necessidade de que os líderes do Partido Republicano endossem sua agenda, ou pelo menos demonstrem simpatia por suas idéias. Como no manifesto dos parlamentares que se recusam a apoiar alta de impostos, embora os ricos paguem o menor percentual dos últimos 80 anos (abaixo).



Os democratas controlam a Presidência e o Senado, os republicanos, a Câmara dos Deputados. Pela lógica básica da barganha política, um acordo bipartidário significaria algo como cortar gastos sociais caros a um dos grupos e alterar as leis tributárias valorizadas por outro, em prol de algo que beneficie os dois: a estabilização da economia. Certo, 2012 é ano de disputa presidencial, o que torna os prêmios mais elevados. No entanto, mais que o cálculo político de custos e benefícios, o que predomina é uma rigidez ideológica danosa não só para a condução da economia, mas para a própria democracia nos Estados Unidos. Regimes autoritários precisam de Fuhrers, Duces e Profetas, governos democráticos funcionam melhor com líderes pragmáticos capazes de jogar o toma-lá-dá-cá tão menosprezado mas tão necessário para o cotidiano.

Impostos e Desenvolvimento

Na crise da dívida dos Estados Unidos, todos concordam que é preciso cortar gastos, mas o debate sobre a necessidade de aumentar impostos tornou-se muito amargo e polarizado. Até o início do século XX, a carga tributária costumava ser muito baixa, porque os Estados tinham relativamente poucas responsabilidades, fora manutenção da lei e da ordem e defesa nacional. O espantoso crescimento da abrangência das políticas públicas, culminando na formação do Estado de Bem-Estar Social na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, mudou isso. Nos EUA, o percurso foi um tanto diferente, começou com a chamada “Era da Reforma”, há cerca de 100 anos, e expandiu-se em duas grandes ondas, no New Deal e nas iniciativas da década de 1960.

A tabela abaixo mostra a carga tributária para um conjunto de países. Notem que os Estados Unidos, com 24% do PIB em impostos, são a nação desenvolvida com o fardo mais leve. Na Europa, o percentual oscila entre 30% e 48%. Na América Latina em geral se situa em torno de 15% - o Brasil não está na tabela, mas é notável exceção, com espantosos 36%, dignos do modelo escandinavo. A China tampouco aparece, e sua carga tributária é controversa, entre 25% e 32%, de acordo com as estimativas.



Ninguém gosta de pagar impostos, mas já foi dito que eles são o tributo exigido para termos civilização. Em termos teóricos, para que o Estado possa fornecer bens públicos, dos quais todos usufruímos, e que beneficiam a população em geral: ordem pública, meio ambiente preservado, boa infra-estrutura etc. Dificilmente teríamos esses benefícios amplos se indivíduos fossem responsáveis por eles. Outra categoria importante é a dos bens meritórios, como educação e saúde, que podem perfeitamente ser fornecidos pela iniciativa privada, mas que com frequência são assumidos também pelo Estado por seu impacto generalizado no desenvolvimento social e econômico. Aos interessados na discussão teórica sobre o tema, recomendo o excelente “Economics of the Public Sector”, de Joseph Stiglitz.

Não há modelo científico que defina o que cada sociedade espera do Estado em termos de políticas públicas, a resposta está nas tradições históricas e culturais, no equilíbrio de forças políticas, nas alianças e enfrentamentos que configuram a arena pública. Em suma, do quanto os cidadãos estão dispostos a pagar, em impostos, para financiar sua civilização. E também, claro de quem paga. Sistemas tributários como o dos Estados Unidos e os do Brasil são regressivos, isto é, os mais ricos pagam menor percentual de sua renda em tributos do que os mais pobres. Esses arranjos são característicos de sociedades muito desiguais, nos quais – para citar o jornalista Elio Gaspari – o andar de cima é bastante forte para impor sua vontade sobre a choldra.

Defensores de impostos baixos acreditam que eles estimulam a economia e o empreendedorismo, os partidários de maior carga tributária crêem que ela é necessária para financiar um Estado capaz de prover bens públicos e meritórios que facilitem o desenvolvimento. A correlação entre impostos e crescimento é escorregadia, há de tudo nos exemplos internacionais, em grande medida porque para além da carga tributária pura e simples, há outros fatores essenciais, como a eficiência do serviço público. No limite, temos a curva de Laffer. Para além de certo ponto, os impostos tornam-se contraproducentes e causam tanto dano que terminam por reduzir as receitas. Não é fácil identificar o ponto ótimo, pois tributos baixos demais podem resultar num poder público tão frágil que acaba por prejudicar a sociedade – debate comum em vários países latino-americanos.