quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Recordar é viver. E "Vale Tudo", refletir

Por Murillo Victorazzo
Uma das mais agradáveis novidades na televisão brasileira este ano foi o lançamento do Canal Viva, na Net. Quem aprecia a televisão brasileira e tem TV paga, certamente, já parou seu controle remoto por lá, nem que tenha sido apenas por alguns minutos. Seja drama, humor, culinária, aventura entre outros, o canal nos faz recordar por que nossa TV, em especial as organizações Globo, marcou seu nome entre as melhores no mundo.
Não precisa ser saudosista para se deliciar com programas que marcaram nossas infâncias, adolescências ou algum outro momento de nossas vidas. E é até natural do ser humano deixar o coração falar mais alto e ser condescendente com eventuais defeitos e defasagens vistos pelo olhar do século XXI.
No entanto, não é dominado por estes sentimentos que o canal Viva nos deixa à mostra algo muito claro: se, por um lado, a evolução das tecnologias de imagens, luz, áudio foi tão grande que, algumas vezes, parece que a distância entre as produções das décadas de 80 e 90 e o presente é maior do que a real, os seus conteúdos, vistos com distanciamento histórico, eram quase sempre melhores.
Fênomeno de audiência na época em que foi exibida, a novela "Vale Tudo" é a melhor prova do ocorrido. Voltou no Viva há duas semanas, 22 anos depois, com força total, a ponto de se tornar um dos assuntos mais comentados no twitter e alçar a emissora à liderança no Ibope entre as TVs fechadas. O sucesso merecido tem razão de ser.
A obra de Gilberto Braga, ainda que o Brasil tenha evoluído sócio-economicamente a largos passos, continua atual. Com personagens brilhantemente construídos e interpretados por grandes nomes da dramaturgia nacional, a novela incomoda - no bom sentido - por nos mostrar de forma direta, sem eufemismos, os velho dilemas da humanidade. Conflitos que parecem estar mais nítidos em nosso país: vale a pena ser honesto? O fim justifica os meios quando o objetivo é ganhar dinheiro?
Corrupção, caixa dois, traições, homicídios, preconceitos, alpinismo social, luta pelo poder...Tudo é visto, sem sutilezas, na obra. Quer algo mais condizente com nosso cotidiano - principalmente em época de campanha eleitoral - do que a trilha de abertura, de Cazuza, cantada por Gal Costa: "Brasil, mostra sua cara, quero ver quem paga pra a gente ficar assim"?
O despudor maquiavélico de Maria de Fátima, a crueldade e a prepotência de Odete Roitman - personagem que nos remete àquela parcela da elite brasileira que, por incrível que parece, ainda considera seu próprio país uma república de bananas habitada por aborígenes - e o mau caratismo presunçoso de Marco Aurélio resultam em um corolário de maldades, que, descontados os necessários excessos de uma ficção, mostram-se verossímeis em um país em que uma "ética flexível"- para usar um eufemismo - ainda ocupa grande espaço. Por outro lado, o casal Raquel e Ivan sintetiza a grande maioria da população brasileira: os que, honestamente, dão duro, aqueles para os quais os valores e o trabalho estão acima da riqueza a qualquer custo.
Quase todas novelas têm como pano de fundo essa dualidade. Muitas conseguem retratar com certo grau de realismo, outras tantas fracassam ao tranformar as vilãs em bruxas de histórias em quadrinhos e as protagonistas em Cinderelas. "Vale Tudo", não! Graças ao ferino texto de Braga e às atuações de Glória Pires, Beatriz Segall, Reginaldo Farias, Regina Duarte, Antonio Fagundes, entre outros, a novela tornou-se única na arte de exprimir as canalhices e as perseveranças nacionais.
Enredo tão atual e factível que deixam as imagens mais escuras e menos nítidas que as das produções atuais relegadas a segundo plano. A novela fustiga ainda mais quando lembramos que, no final, alguns destes vilões não terminam tão mal assim...A reprise de "Vale Tudo" serve para nos lembrar como somos (ou éramos?) bons em fazer novelas, discutir por que a qualidade de nossa dramaturgia caiu e, principalmente, pensar as razões de a nossa sociedade persistir em certos vícios.

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