quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Síria e o direito internacional

Por Paula Wojcikiewicz Almeida* (Valor Econômico05/09/2013)

Não é o bastante recordar o fracasso da intervenção no Iraque, motivada por um falso alarme de armas de destruição em massa, ou mesmo as críticas decorrentes do excesso na intervenção na Líbia, com o pretexto de proteger civis, e os motivos subjacentes que deixaram aparente a intenção de derrubar o regime de Gaddafi. Os supostos guardiões da legalidade internacional parecem insistir no erro e tentam legitimar uma ação ilegal contra a Síria, esforçando-se para influenciar a opinião pública mundial. Mas antes de comprar o discurso, é preciso refletir e avaliar criticamente os fatos.

Há tempos se busca obter apoio no âmbito do Conselho de Segurança (CS) da ONU para uma ofensiva na Síria. Desde o início do conflito, em março de 2011, não há consenso na comunidade internacional. A chamada "coalition of the willing" parece incansável em seu objetivo de encontrar suporte político e jurídico para uma possível ação militar. China e Rússia deixaram claro desde outubro de 2011 que se oporiam a uma possível intervenção na Síria com o aparente objetivo de proteger a população.

O argumento baseado na "responsabilidade de proteger" (R2P) tem servido como justificativa para uma série de intervenções militares ilegais, ou seja, sem autorização do órgão que supostamente detém o monopólio do uso da força, o CS. É o caso, por exemplo, das ações da Otan no Kosovo e da intervenção no Iraque pelas forças da coalition. Busca-se estabelecer uma prática "contra legem" no sentido de que, se o CS não alcançar uma solução conforme aos desígnios dos potenciais interventores, seria legítima uma ação de um ou mais Estados com o objetivo de salvaguardar a paz e a segurança internacional e com o fim precípuo de proteção dos civis não envolvidos diretamente nas hostilidades. Ora, é hoje indiscutível que as violações massivas de direitos humanos e de direito humanitário integram o conceito de ameaça à paz e a segurança internacional, ensejando uma atuação da ONU.

Entretanto, apesar de todas as críticas ao sistema e, sobretudo, ao CS, que não representa concretamente a voz da comunidade internacional, qualquer intervenção com o uso da força mesmo em casos envolvendo a R2P deve necessariamente ser autorizada. A regra no direito internacional consiste na proibição do uso da força, cabendo duas exceções: legítima defesa individual ou coletiva e; autorizações concedidas pelo CS com base na segurança coletiva.

No caso presente, ambas as exceções parecem não se configurar. Isso porque, no que tange à legítima defesa, a condição é que exista um ataque armado atual ou iminente contra o país em causa ou contra um terceiro, como Turquia ou Israel, que poderiam considerar-se vítimas de ataque armado cometido em suas fronteiras com a Síria. Ainda não há prova de que o regime sírio tenha responsabilidade quanto às armas químicas no incidente do último dia 21 de agosto no subúrbio de Damasco. Os investigadores da ONU ainda não concluíram o relatório, apesar da enorme pressão exercida pelos países que buscam justificar uma intervenção. Quanto ao sistema de segurança coletiva, a falta de unanimidade no Conselho de Segurança, mesmo com a finalidade de proteger civis, não deixa dúvidas a respeito da ilegalidade da intervenção.

Uma possibilidade seria o recurso à Assembleia Geral (AG), nos termos da resolução 377, "uniting for peace", invocada no contexto da guerra da Coreia de 1950. Isso poderia ocorrer em caso de bloqueio no CS, o que ensejaria uma ação da AG autorizando o uso da força via resolução não vinculante. Para tanto a Assembleia poderia ser reunir em sessão especial de emergência, a pedido do Conselho ou da maioria de seus membros. A ação da AG foi explorada em outros casos, inclusive envolvendo a Síria, o que poderia indicar uma alternativa.

O discurso de Obama pronunciado no último sábado deixa clara a intenção do país em se auto-erigir como um bastião da legalidade internacional, tendo a responsabilidade de fazer respeitar, se necessário com o uso da força, os tratados internacionais, especialmente a Convenção Internacional sobre a proibição do desenvolvimento, produção, estocagem, uso e destruição de armas químicas de 1993. A referida convenção foi ratificada por 189 Estados, dentre eles EUA e França, mas não obriga a Síria. De qualquer forma, a proibição do uso de armas químicas remonta ao Protocolo de Genebra de 1925, podendo-se extrair o argumento de descumprimento.

Independentemente da divulgação do relatório da ONU e de qualquer posicionamento do Conselho de Segurança, Obama reiterou sua intenção de agir militarmente e disse estar "confortável", apesar da negativa de seu aliado britânico que não obteve aprovação parlamentar. Buscando resguardar-se, o presidente americano optou por aguardar a autorização do Congresso para a possível intervenção na Síria. A oposição francesa agora também pressiona por um pronunciamento legislativo, apesar de não haver condição expressa na constituição francesa. O momento atual é de lobby no congresso americano, que deve tomar uma decisão a partir de 9 de setembro. O argumento principal consiste na necessidade de assegurar o respeito das normas internacionais por meio da força, tendo em vista os dados recentes que confirmariam o uso de sarin pelas forças do governo sírio.

Os frequentes desacordos no âmbito da ONU testemunham uma tensão permanente: não se pretende reproduzir o fracasso diplomático que levou à inação em Ruanda, tampouco se pode perpetuar a ilegalidade da intervenção não autorizada no Iraque, no qual o suposto risco de armas de destruição em massa não foi comprovado. O Secretário Geral, Ban Ki-moon, pediu tempo para estabelecer os fatos. Não se deve atropelar as regras do jogo, buscando transformar exceções em regra. Existem normas claras na Carta da ONU: o uso da força é sempre o último recurso, devendo ser proporcional e necessário. Um Estado não pode se atribuir unilateralmente a responsabilidade de, com o uso da força, fazer respeitar o direito internacional.

*Paula Wojcikiewicz Almeida é professora de direito internacional da FGV Direito Rio




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