terça-feira, 17 de maio de 2016

Serra e o subterrâneo do Itamaraty

Por Roberto Simon* (Folha de SP, 16/05/2016)

Caso José Serra, novo ministro das Relações Exteriores, desça o elevador em frente a seu gabinete e cruze a rua até o prédio anexo ao Palácio do Itamaraty, onde fica o arquivo do ministério, poderá encontrar papéis carcomidos com trechos de sua biografia.

Serra, afinal, é velho conhecido da Casa de Rio Branco. A instituição que agora comanda o espionou por anos -quando era ainda "o asilado territorial José Serra", nas palavras do embaixador da ditadura no Chile, Antonio Candido da Câmara Canto.

A chancelaria listava-o, em 1974, entre os "elementos brasileiros subversivos considerados perigosos" que haviam escapado após o golpe contra Salvador Allende. O então professor universitário chegara a dormir uma noite no Estádio Nacional de Santiago, a arena convertida em campo de concentração.

Teve, contudo, a sorte de ser solto antes de cinco agentes do Brasil começarem a dar expediente no local, auxiliando torturadores chilenos. Naqueles dias, um bilhete do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo sobre Serra avisava: "trata-se de 'boa gente', que bem merece ser 'tratado' pelos chilenos".

Anos antes de receber asilo na missão italiana no Chile, Serra já era vigiado por arapongas-diplomatas. A chancelaria se encolerizava em especial com seu trabalho na Frente Brasileira de Informações, grupo de exilados que compilava e disseminava mundo afora casos de tortura no Brasil.

A embaixada em Santiago fez intenso lobby junto ao governo Allende para que o boletim da frente fosse proibido e os envolvidos, expulsos do Chile. Fracassou duplamente.

O ministério suspeitava (com razão) que Serra era "um dos mais ativos pombos-correios" da organização. Documentos secretos registram sua passagem por Uruguai, Argentina e Peru para atar
nós da rede de denúncias, além de uma viagem à Europa socialista.

O Itamaraty espionava suas mais prosaicas atividades, de jantares a conferências sobre inflação. Em 1969, Serra tapeou a vigilância da ditadura e tirou um passaporte no consulado em Santiago. O caso custou a carreira do cônsul-adjunto.

O novo ministro viveu um passado ainda quase ignorado por estudiosos das relações internacionais. A versão oficial construída desde a redemocratização é que, institucionalmente, o Itamaraty se insulou dos arbítrios da ditadura e se ateve aos "interesses permanentes" de Estado. Nela, meganhas e delatores são a exceção que confirma a regra.

Os arquivos recém-revelados contam outra história. A chancelaria era parte fundamental do aparato repressivo fora do território nacional, espionando centenas de brasileiros como Serra.

Tratou-se de uma colaboração institucional que violou de modo sistemático direitos e, em alguns casos, fez "desaparecer" brasileiros. Claro: alguns honrosos diplomatas se arriscaram agindo contra a ditadura, por exemplo, ao transportar listas de torturadores em malas diplomáticas.

O Itamaraty de hoje é outro. À frente do ministério que o perseguiu, Serra tem a oportunidade de jogar luz sobre esse passado e provar que suas lições foram assimiladas.

Em um governo de feições assustadoramente retrógradas, o ex-"asilado territorial" deve honrar seu passado de luta e provar que o Brasil, a maior democracia da América Latina, reconhece suas responsabilidades na promoção dos direitos humanos dentro e fora de casa.

*Roberto Simon é mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard (EUA). Prepara para a editora Companhia das Letras o livro "O Brasil de Pinochet"

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