terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O Trotsky da Netflix

Por Murillo Victorazzo*

Como todo ícone revolucionário, Liev Bronstein, o Leon Trotsky, desperta admirações, paixões, repulsas, ódio, mas, acima de tudo, instiga pela dúbia personalidade. Não por acaso, a série russa que leva o nome do lendário bolchevique causou previsível polêmica no país de origem quando transmitida pela rede pública Pevry Kana, no final de 2017.

O burburinho ultrapassou fronteiras com sua aquisição pela Netflix. Embora com pouquíssima repercussão entre o público geral do Brasil, a obra, produzida por Alexander Kott e Konstantin Statsky, incomodou também militantes de esquerda daqui, críticos igualmente da forma como é reconstituído o criador do Exército Vermelho e figura central da Revolução Russa.

Perseguido pelo aparato de Stalin por quase 15 anos até ser assassinado a seu mando em 1940, Trotsky costuma ser encarado como contraponto ao sanguinário ditador, que, em 1922, conspirou para suceder Lênin, mesmo o primeiro comandante da União Soviética gastando seus últimos dias de vida em demonstrações a favor do rival.

No início da luta contra o regime czarista, Stálin era um admirador dos textos de Trotsky contra os Romanov. A recíproca, porém, nunca foi verdadeira. Invejável intelectual, dono de talento literário e com hipnotizante oratória, Trotsky desprezava a rudeza de seu correligionário georgiano, que, por sua vez, nunca deixou de vê-lo como maior ameaça à manutenção de seu poder. No comando do regime, não satisfeito em expulsa-lo do partido, baniu-o do país e mandou executar dois de seus quatro filhos.

Mas mais do que choque de egos, a distinção entre eles ganha significado especial dentro do movimento comunista após 1956, quando Nikita Krushev, novo secretário-geral do PC, denuncia, em discurso no Congresso do partido, a brutal dimensão da política de execução de opositores (dentro e fora do partido) de seu antecessor, morto três anos antes. Dava-se início "desestanilização" da União Soviética: mais de 80 mil presos em campos de trabalho forçado são soltos e resgata-se a memória de vários militantes assassinados.

Entre eles, destaque para Trotsky, cuja imagem, banida da historiografia oficial do país, fora, durante décadas, vítima de orquestrada campanha da burocracia stalinista. Na tentativa de deslegitimá-lo como traidor contrarrevolucionário, coube até acusações de cumplicidade com o nazifascismo. Desde então, o antagonismo passou a simbolizar, para a esquerda socialista, o contraste entre o ideal marxista e o desvio burocrático totalitário.

Asilado no México, Trotsky escrevia uma biografia de seu algoz quando foi morto a golpes de picareta por um agente soviético de origem espanhola infiltrado em sua casa. No livro, ele, de certa forma, nos mostra o Stálin revelado por Krushev: "(...) se divertia em sua casa de campo degolando ovelhas ou jogando querosene nos formigueiros e ateando fogo (...) caminhava pelo bosque e continuamente se divertia atirando nos animais selvagens e assustando a população local. Tais histórias sobre ele, procedentes de observadores independentes, são numerosas. E, no entanto, não faltam pessoas com esse tipo de tendências sádicas no mundo. Foram necessárias condições históricas especiais antes de que esses instintos obscuros encontrassem uma expressão tão monstruosa".

É esse Stalin que, também na série, Trotsky, interpretado pelo popular ator russo Konstantin Khabensky, não cansa de descrever nos diálogos com o jornalista Frank Johnson, admirador do ditador. Confrontado inúmeras vezes por ele sobre episódios em que também não poupou vidas de "camaradas", Trotsky, como mantra, justifica-os como necessários para a consolidação da revolução e do Exército Vermelho, ameaçados por deserções e sublevações em meio aos combates contra o Exército Branco (que reunia czaristas e liberais) durante os três anos da Guerra Civil. Segundo o velho revolucionário, diferente de Stalin, a violência praticada sob suas ordens não teria sido nem disseminada nem praticada por sadismo ególatra.

Mas - e aqui se encontra a razão de tanta inquietação -,  os oito episódios da obra logo mostram um cenário um tanto diferente: surge na tela um Trotsky irascível, arrogante e cruel, que relega a família e não hesita em matar quem o vê como "homem comum", mesmo que fossem leais colaboradores. Alguém não muito diferente de seu algoz. A  ideia de que homens assim , simples "seres humanos", não conduzem a revoluções teria vindo de seu truculento carcereiro czarista, ainda no final do século XIX, em Odessa. Na fuga do país, dele Trotsky pega também o pseudônimo que o eternizaria. "As pessoas só podem ser controladas com o medo. O medo está nos alicerces de qualquer ordem", afirma o verdadeiro Trotsky em tensa conversa com ele.

Impossível assegurar se a União Soviética comandada por Trotsky se caracterizaria por opressão tão brutal e disseminada quanto a de Stalin. Mas, segundo Robert Service, autor de Trotsky, uma biografia, "qualquer um que governasse o país de forma eficaz precisaria de métodos autoritários para conservar o poder comunista. O sistema forjado pelos bolcheviques, nada democrático, ‘cobrava’ violência para mantê-lo". Trotsky, acrescenta ele, "era de um egocentrismo extremo. Passava por cima da resistência institucional sempre que queria ação rápida e obediência. Tinha uma maior propensão para dar ordens do que para a discussão".

Exemplos que aparentam confirmar o que diz Service são retratados na série: a liderança na repressão aos marinheiros rebeldes em Kronstadt; o apoio ao restabelecimento da pena de morte; e à execução da família imperial. As últimas duas, contudo, controversas. Na versão televisiva, a autoria intelectual teria sido sua. Outros historiadores, porém, afirmam que Trotsky "apenas" seguiu o proposto pelo comitê supremo do partido.

O desejo narcisista de Trotsky de impor-se com áurea superior e infalível perante as massas pode não corresponder a verdade, mas foram os próprios trotskistas que, de certo modo, alimentaram esse seu traço excepcional, o que sempre atrapalhou qualquer debate não maniqueísta. Neste sentido, a série comete o mesmo pecado, mas pelo lado oposto, ao preferir uma abordagem lugar-comum de vilão de novela. Afasta-se assim da "complexa personalidade" escrita na própria sinopse.

Abusando das hipérboles e reducionismos, a obra chega a distorcer fatos, no intuito de reforçar grosseiramente a frieza do biografado. A começar por mostrar a primeira esposa, Alexandra, como uma passiva mulher abandonada por um marido que foge do campo de prisioneiros na Sibéria para o exílio. Seis anos mais velha, Alexandra, na verdade, era uma militante revolucionária, com posições firmes e que incentivou sua fuga. De acordo com Hedda Gaza, autora de outra breve biografia sobre Trotsky, Alexandra defendia que "o dever para com a revolução suplantava qualquer coisa, especialmente as relações pessoais".

Do mesmo modo é retratada Natália Sedova, a segunda esposa e companheira até os últimos dias de vida. Natália também era uma ativista, que, em meio a boemia parisiense, escrevia textos marxistas. Pouco a ver com o que se vê na Netflix: uma fútil frequentadora de festas, regadas a bebida e drogas, à procura de homem rico mas que acaba seduzida pela inteligência de Trotsky e, após casar, recolhe-se em meras palavras de apoio.

Fragilizar as mulheres para reforçar a suposta hipocrisia de suas teses emancipatórias diante de seu machismo. A crítica à ideia "burguesa" de fidelidade lhe teria servido como mero pretexto para justificar, entre outras traições a Natalia, seu rumoroso caso com a vanguardista pintora e símbolo mexicano Frida Kahlo. Igualmente, nada mais do que arma de sedução seria a defesa do pleno direito da mulher sobre seu próprio corpo. O sutil objetivo é reforçado no duelo verbal com Sigmund Freud, no qual o bolchevique compara as massas à “psicologia feminina”: instável e emotiva.

É fácil, portanto, captar a correlação pretendida nas cenas de sexo com Larissa Reissner em um vagão do imponente trem blindado bolchevique, utilizado por ele, como presidente do Comitê Revolucionário Militar, no monitoramento das frentes de batalha por todo o gigantesco território russo. Jornalista e ativista na vida real, Larissa é caracterizada com feições fúteis e compromissada com um oficial do Exército Vermelho - subordinado ao amante. 

A Revolução Russa tornou o matrimônio uma relação voluntária; legalizou o divórcio e o aborto (gratuito); eliminou as diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos; e igualou os direitos trabalhistas de homens e mulheres. Não deveria estranhar a repulsa em setores da esquerda com o enfoque machista sobre um de seus principais artífices. 

É, aliás, através do fictício diálogo com Freud, que são insinuados traços psicopatas em Trotsky, real admirador e leitor do austríaco, em que pese outros marxistas considerassem a psicanálise uma prática "burguesa e capitalista". A cena é um dos melhores momentos da produção. Após afirmar que o homem vive "pelo medo da morte" e pelo sexo, Freud compara a conquista de um país a conquista de uma mulher. Referindo-se a ele como "tipo raro de agressor sexual", olha no fundo de seus olhos e dispara: “Só vi isso [súbito dilatamento de pupilas] em dois tipos de pessoas: serial killers e fanáticos religiosos". 

O reducionismo enviesado que em nada ajuda a entender fenômenos históricos leva ainda a frases quase caricaturais como as ditas no que teria sido o primeiro contato de Trotsky com Lênin. O futuro primeiro líder soviético, de cara, afirma: “Quero mudar o mundo. O que o povo tem a ver com isso? O povo é um instrumento.” “Nas suas mãos?”, pergunta Trotsky. “Ou nas suas”, responde Lênin. 

O mesmo viés depreciativo se vê na resposta de Trotsky à crítica de Lênin por ter eclodido o levante bolchevique antes da hora: "Sim, é um golpe, mas terá que parecer uma revolução". Afirmação nada crível, pois, de fato, toda revolução tem um componente golpista, por derrubar um governo constituído. Mas nem todo golpe é uma revolução, definida academicamente, em termos gerais, como um movimento que rompe a estrutura da ordem socioeconômica vigente a partir de alguma mobilização popular. Gostem ou não, Outubro de 1917 foi um dos grandes exemplos revolucionários. 

O termo golpe para minimizar o feito comunista é recorrente entre setores à direita e passou a ser utilizado pelo regime de Putin - por sinal, acusado por trotksistas de ser o responsável pelo tom da série, transmitida em emissora estatal nos 100 anos de um evento que seu governo fez questão de oficialmente ignorar.

Carece ainda de verossimilhança a reconstrução de Frank Jackson - codinome de Ramon Mercader - como um jornalista declaradamente stalinista. Sabe-se que ele, o agente assassino, ganhou a confiança de Trotsky justamente por se passar por um comerciante disposto a patrocinar suas ideias. Se a intenção era fazer das perguntas e comentários provocativos de Jackson o eixo condutor ao passado, não se pensou que faria pouco sentido um veterano militante aceitar em casa, sem receio algum, um simpatizante de seu ardiloso inimigo.

É de se lamentar ainda mais o não aprofundamento das diferenças entre Stalin e Trotsky. Ao resumi-las a inimizades pessoais e julgamento de personalidades, perdeu-se a chance de explicar um dos principais embates doutrinários internos ao movimento comunista: o internacionalismo proletário contraposto ao nacionalismo stalinista. Abordá-lo enriqueceria a produção sobre fato histórico que reconfigurou o mundo.

Foi Trotsky quem contribuiu para atualizar a tese marxista de que a revolução só poderia se dar em países industrializados. Sendo o comunismo o estágio final do capitalismo, ela seria possível apenas havendo uma forte classe operária como agente condutor, apontava Marx. Para Trotsky, porém, embora o operariado fosse incipiente na atrasada e rural Rússia, uma aliança com o campesinato tornaria possível a instauração de um governo que visasse o fim da propriedade privada dos meios de produção.

Contudo, para o país se industrializar e os requisitos socialistas se firmarem, tal aliança não seria suficiente a longo prazo. A divisão mundial do trabalho, a dependência da indústria soviética em relação à técnica estrangeira e a dependência das forças produtivas dos países avançados em relação às matérias-primas asiáticas tornavam impossível a construção de uma sociedade socialista isolada em um ponto do mundo. "A revolução socialista torna-se permanente num sentido novo e mais amplo do termo: só está acabada com o triunfo definitivo da nova sociedade sobre todo o nosso planeta", vislumbrava Trotsky. 

A ideia reforçava de outra forma a emblemática expressão marxista "Proletários do mundo todo, uni-vos". Mas seria escanteada com a ascensão de Stalin, para quem a Rússia deveria ela própria, sem envolvimento direto com levantes externos, concentrar-se no desenvolvimento de suas forças produtivas, prioridade que justificava a construção do crescente aparato burocrático. 

A favor da série, ressalte-se que, se ela força as cores em muitos aspectos de sua personalidade, delineia em Trotsky um relativo desapego por liderança. Em nome da "revolução", aceita ceder sem resistência o comando do partido a Lênin, mesmo após ser o mentor da insurreição que derruba o governo provisório de Kerensky. "Lenin tinha razão. Na Rússia, o poder nas mãos de um judeu não duraria nem um mês (...)  me libertou para realizar a revolução mundial", admite para Jackson, recordando o antissemitismo que lhe perseguiu, inclusive por parte de alguns do movimento comunista, enquanto pregavam um "novo mundo" onde todos seriam iguais independente de origens. Trotsky, de fato, "não desejava com suficiente intensidade a autoridade suprema”, corrobora Service.

Polêmicas à parte, a série merece ser vista. Vale pela fotografia, que alterna a escuridão gélida da pobre mas bela Rússia do início do século com as cores vivas do calor mexicano. E por uma reconstituição de época que, se talvez não tão requintada para o gosto de muitos, ganha charme diferenciado por fugir da estética ocidentalizada. Destaques especiais para o trem blindado bolchevique, as legendas explicativas em alfabeto cirílico e as passagens finais dos episódios, nas quais Trotsky sempre enfrenta seus fantasmas do passado, com remorsos e frustrações em forma de alucinações.

Vale ainda mais por resgatar o protagonismo de figura relegada a segundo plano no senso comum sobre a Revolução Russa. Trotsky não foi apenas um de seus principais ideólogos; foi seu principal operador, desde a derrubada do czar, em 1917, até a vitória na Guerra Civil, em 1921. Sem ele, correndo o risco das deduções contrafactuais e sem juízo de valor, a História do século XX seria diferente. Figuras assim nunca terão biografias definitivas.

*Murillo Victorazzo é jornalista, com especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio)

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