Por Murillo Victorazzo
"Terras de Sangue" é como o historiador norte-americano Timothy Snyder denomina, em seu livro com o mesmo título, o largo espaço territorial no leste europeu onde se cruzaram as ambições de Hítler e Stálin. Entre a Polônia e o oeste da Rússia, passando por Ucrânia, Bielorrússia e países bálticos, 14 milhões de pessoas foram assassinadas entre 1932 e 1945 tanto pelo III Reich quanto pelo Politburo soviético.Por três anos, os ucranianos padeceram com os devaneio sanguinários de Hitler. Embarreirado pelo domínio naval britânico à oeste e no Pacífico, o ditador via na União Soviética a saída para seu almejado império territorial. Conforme suas próprias palavras, um ariano "Jardim do Éden", despovoado de eslavos, onde, no pós-guerra, se desenvolveria uma colônia agrícola e energética (Generalplan Ost) para a Alemanha e um gigantesco campo de deportação, trabalho forçado e assassinato de judeus (a "Solução Final"). Com esse objetivo, Hitler mandou às favas as regras tradicionais de guerra. Isentou suas tropas de responsabilidade legais e, além de execuções sumarias, fez da inanição arma de aniquilamento de civis e militares soviéticos.
Foram, porém, as atrocidades russas as que mais deixaram marcas na Ucrânia. Havendo já sofrido por séculos cerceamento político, econômico e cultural pelo Império russo, o país padeceu diante de dois genocídios perpetrados pelo ditador comunista. Entre 1932 e 1933, com o Holomodor ("A Grande Fome"), quando a feroz retaliação, através do confisco de alimentos e sementes, contra os camponeses que resistiam à coletivização de terras piorou as consequências sociais inevitáveis da ineficácia daquela política. Para Stálin, aqueles agricultores não eram vítimas, mas culpados pelo seu fracasso, boicotadores inimigos da revolução.
Depois, durante o "Grande Terror" ( 1937-38), o país tornou-se um dos principais palcos do expurgo que atingiu o próprio partido comunista e a NKVD, mas majoritariamente grupos nacionais vistos por Stálin como agentes externos que ameaçavam a integridade do Estado soviético - lógica diferente do marxismo-leninismo e seu internacionalismo proletário. Através da fome, fuzilamento e deportações para os gulags (campos de trabalho forçado na Sibéria ou Cazaquistão), os dois extermínios totalizaram cerca de quatro milhões de mortes. Os primeiros sinais de democracia só viriam com a independência ucraniana na década de 90.
Assim como todos os demais países circunscritos nas "terras de sangue", é bastante relevante a presença de grupos étnicos vizinhos na Ucrânia. Ainda hoje pouco menos de 25% de sua população é de origem russa, em sua maioria concentrados no sul e especialmente leste do país, locais onde o russo é o idioma principal. Esse perfil multinacional de Estados com fronteiras impostas de cima para baixo por tratados e guerras é crucial para entender os conflitos na região.
A presença de russos, bielorrussos e ucranianos justificou a invasão da metade oriental da Polônia em 1939. Era necessário, segundo Stálin, defendê-los daqueles que estavam invadindo a metade ocidental - os alemães, com quem, em cláusula secreta do pacto Molotov-Ribbentrop, compactuara a divisão do leste europeu em duas de influência.
Do mesmo modo, a considerável comunidade russa na Ucrânia e Bielorrússia sempre embasou os tentáculos de Moscou, dos mais leves aos mais severos, sobre ambos. A própria Rússia é um país multiétnico. "A Rússia nunca foi um Estado-nação como entendemos esse conceito no Ocidente. A Rússia foi um império, mas nunca um Estado-nação", diz Mira Milosevich, analista para Rússia e Eurásia do Real Instituto Elcano da Espanha, à BBC News.
Com a desintegração da União Soviética, "tudo que havia sido construído em mais de mil anos foi em grande parte perdido", diz Milosevich. Um sentimento de humilhação não apenas politica e econômica, mas cultural. Tamanha perda de identidade levou Putin a considerar o colapso soviético, independente de sua crítica ideológica àquele regime, como "a maior catástrofe geopolítica do século 20": "Foi a desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética".
O despencar da Cortina de Ferro aparentava ser o "fim da História", como o cientista político conservador Francis Fukoyama definiu a aparente hegemonia irreversível da democracia e do capitalismo liberais, em um sistema internacional unipolar liderado os Estados Unidos. A fragilidade de uma Rússia em transição foi entendida por Washington, seja no governo republicano de George W. Bush ou do democrata Bill Clinton, como oportunidade para expandir a OTAN para o leste. A letargia de Moscou em algum momento terminaria. Era preciso aproveitar aquele vácuo temporário para fortalecer a aliança antes que o inimigo acordasse.Somente após a assinatura do acordo tripartite que cedeu aos russos as armas nucleares em território ucraniano em troca de garantias a respeito da soberania de Kiev, os Estados Unidos puderam iniciar sua política de "portas abertas". Entre 1997 e 2009, República Checa, Hungria, Polônia, Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Croácia e Albânia ingressaram na aliança. Em 2004, para ainda maior incômodo russo, seguiram o mesmo caminho as ex-repúblicas soviéticas bálticas Estônia, Letônia e Lituânia. A desconfiança se instalava definitivamente no Kremlin. A sensação de traição se juntara ao de humilhação.
Os disfuncionais anos liberais de Yeltsin e sua errática transição democrática reforçaram a sensação de um país em colapso e permitiram ao Ocidente colocar em prática sem maiores resistência suas pretensões. A ascensão de Putin a partir do inicio deste século, porém, alterou a correlação de forças. Com ele, reemergia o que Aleksandr Dugin, cientista político e considerado referência intelectual do presidente russo, define como "eurasianismo": uma concepção de ordem multipolar crítica à hegemonia norte-americana e que "preconiza a integração, na base da civilização comum", do território do antigo império russo ou da União Soviética".
Tornava-se, portanto, prioridade a restauração do status de potência da Rússia após uma década em que consideram terem sido mantidos à margem das principais decisões do mundo. "Putin se vê como o salvador da Rússia", resume Milosevich. Reemergia o ideal, intrínseco à grande parte da sociedade do país, da "Grande Rússia". E, além da Bielorrússia, sob a ótica dessa identidade eurasiana, nenhum outro país é tão visto como "quintal" como a Ucrânia. Um sentimento que encontra raízes ainda antes dos czares, na Kievan Rus, a medieval federação eslava que reunia boa parte do que são hoje os três países e cuja capital era a hoje capital ucraniana. A Rússia nasceu em Kiev, já escreveu Putin.
Para ele, se não é possível reaver como antes as terras ucranianas e seu consequente amplo acesso ao Mar Negro, é inaceitável perdê-las de sua órbita. "O Ocidente pensa que a União Soviética era somente uma criação comunista e aqueles Estados eram independentes antes dela. Nunca existiram como Estados e representam apenas distritos administrativos sem nenhum significado histórico ou político dentro do Império russo ou da União Soviética. Foram criados com suas atuais fronteiras após o colapso soviético", argumentou Dugin em entrevista à Folha de São Paulo, em 2014.
A crescentes receitas do petróleo ofereceram a Putin os meios econômicos para seu projeto. A modernização das Forças Armadas se insere nesse contexto como ponto fundamental. Recuperava com ela o poder de barganha russo, para além de suas ogivas nucleares nem sempre funcionais para certos tipos de deterrência. Hoje, em proporção ao PIB, os gastos com defesa do país são maior que os dos Estados Unidos e cerca do dobro dos membros da OTAN. Como exemplo, em uma década, mais de mil aeronaves foram adquiridas, segundo o Kremlin
Contudo, embates internos no governo e os fracassos nos índices econômicos reforçaram a oposição e, em 2010, Yanukovych foi eleito, sinalizando uma volta ao colo da Mãe Rússia. Entre suas promessas, a paralização do processo de adesão à OTAN e tornar o russo o segundo idioma oficial do país. Yushchenko, porém, mostrou no decorrer de seu governo autonomia maior do que Moscou esperava.
Em março de 2014, o ataque de um desses grupos à base do Exército ucraniano em Sinferopol, na Crimeia, península onde, por acordo, sedia-se também a frota naval russa no Mar Negro, veio acompanhado de uma silenciosa e fulminante invasão russa à região. Voluntários civis se somaram ao que acreditavam ser a "libertação da Crimeia". Uma ocupação necessária para proteger a maioria russa ali presente, segundo Putin, em retórica semelhante a de Stálin.
Uma certeza apenas há: cenários assim, entre blefes e guerra de informações, não raramente saem do controle. Nesta segunda-feira, 24, a OTAN informou que seus integrantes estão colocando tropas em prontidão para reforçar as forças aliadas no leste europeu. Perto de dez mil soldados norte-americanos foram colocados em alerta para, se necessário, serem enviados a esses países. Familiares dos funcionários das embaixadas dos Estados Unidos e Reino Unidos começaram a ser retirados da Ucrânia. Washington recomendou a todos seus cidadãos no país a saída imediata.
Mas, nesse jogo de xadrez, os custos do Ocidente não se resumem às consequências diretas e locais do conflito. O comandante da Marinha alemã, Kay-Achim Schönbach, teve que se demitir semana passada por, além de considerar a Crimeia um "caso perdido", afirmar que não custa nada dar a Putin o que ele quer e "provavelmente merece": "apenas respeito". Talvez o almirante esteja equivocado sobre o presidente russo, mas é inegável seu acerto ao observar: "Precisamos da Rússia para conter a China".
Cuba e Venezuela receberam, nos últimos anos, grande volume de investimentos estatais da Moscou, cujo apoio foi fundamental para Maduro se segurar no poder até hoje. Putin criticou diversas vezes a "interferência externa" na infindável crise política venezuelana, enquanto aumentava as joint-ventures entre as duas gigantescas companhias petrolíferas. Calcula-se que, em seus cerca de 20 anos, o chavismo gastou US$ 11 bilhões em armamentos russos.
Desde sua eleição, Bolsonaro tomou como estratégia de inserção internacional um bandwagoning (alinhamento automático) ainda mais problemático do que os de costume. Optou por ir à reboque menos da superpotência do que dos interesses e ideologia do seu inquilino até 2020. Reverberou Trump, exaltado pelo ex-chanceler Ernesto Araújo como o "único homem capaz de salvar o Ocidente". Um Ocidente propagandeado como sinônimo de "civilização judaico-cristã", termo por si só controverso, mas que sustenta, a partir da teoria do "choque de civilizações" desenvolvida pelo influente cientista político republicano Samuel Huntington, o discurso político do Islã como ameaça principal a Washington.
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