terça-feira, 30 de maio de 2023

Lula dá outro tiro no pé

Murillo Victorazzo*

Até Jair Bolsonaro chegar ao poder, a integração regional, embora em intensidades e perfis variantes, era objetivo de todos os governos brasileiros desde a redemocratização. Foi com José Sarney que nos aproximamos da Argentina, um distensionamento expresso na assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento (1988) e na criação da Abacc (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares). Os dois países saíam de ditaduras militares, durante as quais o relacionamento fora marcado por desconfianças mútuas sobre programas nucleares e reclamações argentinas sobre construção da Hidrelétrica de Itaipu próxima à sua fronteira, temor  influenciado pela tese que correlacionava a hegemonia da região ao domínio do Rio da Prata. Um período em que a rivalidade ia muito além dos gramados: na caserna de ambos os lados, a possibilidade de um conflito bélico era pauta de estudos primordial. 

O acordo foi o embrião do Mercosul, concretizado com o Tratado de Assunção, assinado em 1991, durante o governo Collor. Com Fernando Henrique, o Itamaraty optou pelo uso do termo América do Sul, e não mais a difusa América Latina, em suas proposições e debates, redução de escopo conveniente para evitar a concorrência do México, que, ademais, trazia junto consigo a simbiose com Washington. Lula, em seus governos anteriores, liderou a criação da Unasul e, além de ampliar, aprofundou os mecanismos e instituições do bloco do cone sul. Neste contexto histórico, incluía-se o encontro entre os presidentes sul-americanos realizado nesta terça-feira, dia 30, em Brasilia.

Os esforços de décadas passadas tinham uma razão de ser: tornar primeiro o Mercosul e depois todo o subcontinente uma plataforma de projeção de poder do Brasil perante o mundo. O líder de um bloco regional tem mais cacife na arena internacional, pois representa mais países e assim agrega mais recursos de poder. Integração física significa exportação de serviços para países mais pobres economicamente. Acordos intrarregionais resultam em ganhos comerciais. Isto sem falar dos efeitos por si só positivos de um maior intercâmbio cultural com países diferentes em algumas coisas mas semelhantes em tantas outras e que, por séculos, nos viram virado de costas para eles ou temeram propensões "imperialistas". Sim, pode soar exagerado, mas perguntem aos paraguaios, por exemplo, o que sentem pelo gigante vizinho principalmente quando está em jogo a binacional Itaipu.

No entanto, com sua política externa de rede social, repleta de espantalhos ideológicos, Bolsonaro rompeu esse consenso. A fim reverberar seu anticomunismo de botequim ou o “antiglobalismo”, rompeu relações diplomáticas com a Venezuela, essa obsessão da direita nacional, e se resumiu a ir à reboque da Casa Branca de Trump. Contra outras ditaduras, obviamente nada fez. Ao desprezar, por esse alinhamento, a integração regional e o papel inato de liderança do Brasil na região, abriu flanco ainda maior para quem seus apoiadores tanto ojerizam, a China, cuja presença na América do Sul vem aumentando progressivamente, ao mesmo tempo que, por diversas razões, os Estados Unidos não a colocam mais na lista de prioridades. Exceto para o combate ao narcotráfico e retóricas eleitorais republicanas (em especial na Flórida) sobre a seletiva defesa da democracia em Caracas e Havana.

Enquanto o fluxo comercial da Venezuela com o Brasil caiu a um quinto do registrado cinco anos atrás, o com a China não para de crescer - tendência, por sinal,  em todos os demais países da região, seja à esquerda ou à direita. Pequim é hoje o principal parceiro comercial de 11 destas nações. A historicamente mais alinhada aos Estados Unidos entre nossos vizinhos, até na Colombia os chineses já encostaram no topo. Sem nem consulado em Caracas, os cerca de 20 mil brasileiros que vivem ou viajam por lá se viam abandonados diante de até pequenos imprevistos burocráticos.  

Em busca da retomada do protagonismo regional, Lula acerta em se reaproximar da Venezuela, país rico em diversas fontes de energia, por exemplo. Apesar da histeria seletiva de alguns, nada há de errado em receber Maduro em Brasília, assim como inúmeros chefes de Estados democráticos no mundo fazem com outros ditadores. Até Washington vem emitindo sinais de flexibilização das sanções, de olho no petróleo, agora mais escasso devido ao rompimento com Moscou.

A vinda de Maduro se explicava ainda mais por se tratar de uma reunião multilateral que contou com a presença de todos os 12 presidentes, evidência de sucesso de uma iniciativa colocada em pratica em apenas cinco meses de governo. Um êxito que mostra a carência por coordenação dos países vizinhos, cientes do (não é de hoje) peso político, econômico, geográfico e demográfico do Brasil, e o poder de atração do atual presidente da República mesmo entre governantes de centro-direita. Queiram ou não, Lula é uma marca forte da política latino-americana há mais de três décadas, especialmente quando se trata de integração.

No entanto, foi o próprio Lula quem conseguiu ofuscar esse sucesso graças a mais uma declaração injustificável. Retirar a Venezuela do isolamento não significa afirmar que o caráter ditatorial do regime de Maduro é "narrativa". Havia várias formas de driblar-se o assunto publicamente, caso não desejasse apontar o dedo na ocasião. Muitas vezes seus argumentos foram respeitar a autodeterminação dos povos ou dizer que acusações diretas de nada adiantavam, pois "rompiam pontes". Sob o ângulo da realpolitik, fazia sentido. Agora não mais. O que ganhará destaque na opinião pública, dentro e fora do Brasil, não será o êxito do relevante encontro, mas a verborragia presidencial, que mereceu criticas até do esquerdista presidente chileno Gabriel Boric.

Se não pelo juízo de valor moral, Lula deveria, no mínimo, ter feito melhor cálculo político. Nada tem a ganhar com posicionamentos desse tipo, exceto os aplausos dos radicaloides de esquerda, anacronicamente presos ao fetiche "anti-imperialista" de centro acadêmico e célula clandestina da década de 60. Assim como Bolsonaro perdeu qualquer chance de mediar - se é que queria - a crise venezuelana ao romper virulentamente com um lado, sua fala o enfraquece perante a oposição vizinha, caso, como demonstra, almeje liderar algum processo de negociação.

Internamente, vítima, entre outubro e janeiro, do maior ataque à democracia no Brasil desde o fim da ditadura - uma tentativa de golpe por parte do bolsonarismo, com direito a atentado a bomba fracassado, minuta e invasão, sob pedidos de intervenção militar, das sedes dos três Poderes, Lula faz o jogo desses algozes ao reforçar os espantalhos e rótulos que setores do centro e a direita lhe imputam - essa direita que se diz defensora da “liberdade”, mas hipocritamente nada fala sobre as históricas exaltações de Bolsonaro a Ustra, Médici, Geisel, Pinochet, Stroessner e recentemente seu aliado protoditador húngaro Orbán. Que hoje grita em zaps, tweets e stories, mas nem um pio em rede social deu quando o então presidente chamou de "quase irmão”, com quem teria “muitas afinidades", o príncipe saudita, notório assassino de uma monarquia absolutista teocrática, de quem, aliás, recebeu R$ 16 milhões em joias. Ou quando exaltou em Moscou, horas antes da invasão da Ucrânia, as "qualidades" de Putin, com quem disse compartilhar "valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família". 

No jogo internacional, a importância dada à democracia varia em função principalmente de interesses econômicos e geopolíticos. Para militantes e "tudólogos" de rede social, o que, no fundo, mais pesa é a coloração ideológica, seja por ignorância, adestramento ou cinismo.

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