domingo, 15 de julho de 2012

Olimpíada não é para vira-lata

Por Alberto Carlos Almeida* (Valor Econômico, 15/06/2012)

Vários pseudoanalistas dos preparativos do Brasil para a Copa do Mundo de futebol e para a Olimpíada unem seus tipicamente brasileiros complexo de inferioridade e provincianismo. O resultado é uma afirmação que em breve, muito breve, se mostrará equivocada: fracassaremos como sede desses dois grandes eventos esportivos internacionais. Ninguém fracassou, isso será um infortúnio somente nosso.

Há algumas semanas, nesta mesma coluna, mostrei quais motivos levarão nossa Copa do Mundo e também nossa Olimpíada a serem um sucesso retumbante. Fracassarão, sim, as análises que afirmam o contrário - que têm como um de seus pilares o complexo de inferioridade.
Nosso complexo de inferioridade foi eternizado por Nelson Rodrigues quando afirmou que o brasileiro se achava um cachorro vira-lata e só deixou de pensar assim quando fomos campeões pela primeira vez em uma Copa do Mundo, em 1958. A partir daquele evento, o brasileiro, afirmou Rodrigues, sentiu orgulho de ser brasileiro e bateu a mão no peito, afirmando: somos os melhores do mundo, estamos no topo do mundo.

Um dos esportes prediletos de um sem-número de jornalistas é afirmar que o Brasil é pior do que todos os países em tudo, ou quase tudo. Os ingleses são cães de raça, talvez um Yorkshire Terrier os represente, os alemães são pastores alemães puros, a Dinamarca tem sua raça pura, o dinamarquês. O São Bernardo pode representar um suíço ou até mesmo um italiano, uma vez que o Império Romano foi importante na constituição dessa raça também pura. Nós, brasileiros, coitados de nós, somos vira-lata mesmo, essa mistura bastarda de europeu branco, com africano e índio originário das Américas. Um vira-lata dessa natureza, pensam nossos pseudo-analistas, não tem a menor condição de ser anfitrião de uma Copa do Mundo de sucesso.

O complexo de inferioridade tem um grande aliado: o provincianismo. Para afirmar que o Brasil é diferente dos outros países, diferente para pior, é preciso desconhecer o que acontece além-mar. Para afirmar que somos específicos para pior é preciso ignorar solenemente que todos os países têm problemas e que não são, necessariamente, nem melhores nem piores do que os nossos. São provincianos mesmo tendo acesso à internet.

O provincianismo não se combate com acesso à internet. O provincianismo é uma atitude, uma visão de mundo. O indivíduo provinciano pode ter todas as ferramentas de busca em suas mãos, mas jamais lhe passará pela cabeça procurar defeitos e problemas em outros países. Proponho, então, que esses representantes de nosso complexo de vira-lata entrem hoje na internet para procurar saber o que está acontecendo em Londres.

A Olimpíada britânica será iniciada em 27 de julho e já começou uma campanha do governo inglês solicitando que as pessoas não utilizem o metrô, ou utilizem muito menos, durante os jogos. Afirma-se publicamente que o sistema de transporte londrino entrará em colapso caso os habitantes da capital não modifiquem por 15 dias seus hábitos de transporte.

Será que, se nossos pseudoanalistas forem enviados para Londres, vão afirmar que deve ser horrível viver em um país que não se preparou adequadamente para a Olimpíada? Vão dizer que a Inglaterra fracassou mesmo e que não é à toa que deixou de ser um império? Afinal, eles precisam, um mês antes do início dos jogos, pedir para a população não sair de casa. Chegaram ao absurdo, devem pensar os pseudoanalistas do fracasso, de decretar ponto facultativo para os funcionários públicos. Isso mesmo, o governo britânico tem afirmado, em alto e bom som, que durante os jogos os funcionários públicos devem procurar trabalhar em casa. Imaginem quando isso acontecer no Brasil.

A má vontade da nossa imprensa em relação ao Brasil contrasta com a subserviência com que analisa os fatos que ocorrem em outros países. O executivo-chefe do sistema inglês de transporte sobre trilhos, Sir David Higgins, afirmou recentemente que "coisas ruins acontecerão durante os jogos olímpicos, mas não devemos entrar em pânico". Sir Higgins foi além e disse que "haverá corte de energia nas linhas, haverá roubo de cabos, haverá parada não programada de trens, provavelmente haverá suicídios nas linhas".

O argumento realista de Sir Higgins é simples: se isso sempre acontece em períodos de 30 a 60 dias, também acontecerá no período que compreende a entrada e saída dos turistas que verão os jogos. Imaginem o que diriam nossos jornalistas vira-lata se uma autoridade brasileira afirmasse que o que acontece normalmente em períodos não olímpicos também tende a acontecer durante a Olimpíada. Isso é encarado de forma natural por quem não sofre do complexo de vira-lata - no caso, os ingleses -, mas se torna um exemplo de fracasso absoluto quando se pensa movido pela inferioridade.

Não somente os funcionários públicos estão sendo estimulados a trabalhar em casa durante a Olimpíada. Todos os bancos da City londrina estão fazendo a mesma recomendação a seus empregados. Solicitam também, àqueles que puderem, que dividam seu apartamento ou casa com amigos, e liberem, assim, espaço para alugar a turistas e visitantes. Afinal, não há vagas de hotéis suficientes para abrigar tanta gente.

Mais de 10% do PIB britânico são produzidos pelo mercado financeiro. A imprensa moderna, em particular os jornais, tem boa parte de sua história ligada ao mercado financeiro britânico. A pontualidade também. Ou seja, uma das mais respeitadas e importantes instituições do mundo vem agora solicitar que seus empregados trabalhem em casa e dividam suas residências para que a Olimpíada transcorra da forma mais normal possível. No Reino Unidos, isso não é sinal de fracasso. Só pensa assim quem tem complexo de vira-lata.

Um documento do governo britânico intitulado "Preparing your business for the Games" alerta para o possível colapso da internet durante a Olimpíada. Alerta também para o fato de que o sistema de telefonia celular ficará mais lento, porque haverá uma sobrecarga. Tudo isso fará com que trabalhar em casa se torne uma solução para o transporte, mas um problema para os negócios. Dito em português simples: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.

Londres foi escolhida para sediar os jogos em 6 de julho de 2005. Os críticos do Brasil deveriam se perguntar o que os ingleses fizeram durante todo esse período, se agora não têm um sistema de transporte que dê conta do evento, não têm vagas de hotéis suficientes, a internet não está preparada, tampouco o sistema de telefonia celular. Se forem justos com o Brasil, tais críticos terão que afirmar que a Olimpíada de Londres já é um fracasso. Afinal, é o que se diz hoje da nossa Copa do Mundo.

Os ingleses tiveram a sapiência, que nós brasileiros também temos, de não preparar um cidade nem um país para uma situação de pico. Isso mesmo: não faz o menor sentido prover todas as vagas de hotéis necessárias para uma Olimpíada, justamente porque se trata de um evento único. Se isso for feito, essas vagas ficariam ociosas por muitos anos. O raciocínio se aplica a toda e qualquer infraestrutura. Não faz sentido preparar um país inteiro, com todo o transporte, vagas de hotéis, internet, telefonia celular, para que dê conta, com total eficiência, de um afluxo de turistas que só ocorrerá uma vez na história. Seria um completo desperdício de recursos.

O que é racional e não desperdiça recursos é pedir a colaboração da população, é trabalhar em casa, é decretar ponto facultativo. Ora, se os ingleses, inventores do capitalismo, da democracia e do futebol fazem isso, por que nós, brasileiros, não devemos fazer também? Se na Inglaterra isso não é sinal de fracasso, não deverá ser no Brasil. Caso contrário, haverá dois pesos e duas medidas: quando se analisa a Inglaterra, não se supõe o fracasso; quando se analisa o Brasil, ele é visto pelas lentes do complexo de vira-lata.

Lamento contrariar nossos pseudoanalistas do fracasso e afirmar que tanto nossa Copa do Mundo quanto nossa Olimpíada serão um grande sucesso. Ingleses e brasileiros são igualmente flexíveis. A diferença é que nós chamamos a flexibilidade de jeitinho, que possibilita utilizá-la com maior margem de manobra para vencer obstáculos.

Sediar uma Copa do Mundo ou Olimpíada, como nos mostra Londres, coloca um grande desafio para quem o faz: prover o que os turistas precisam, sem ter que criar toda a infraestrutura necessária para isso, pois seria um desperdício de recursos. Nosso povo não deve nada aos ingleses em matéria de colaboração e flexibilidade. É por isso que o sucesso do Brasil na Copa do Mundo e do Rio de Janeiro na Olimpíada será idêntico ao sucesso de Londres agora. Por favor, não esqueçam de Sir David Higgins.

*Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo".

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