terça-feira, 21 de outubro de 2014

Marco Aurélio Garcia, assessor de Dilma: 'Para nós, América do Sul é um grande ativo'

Por Lamia Oualalou (Opera Mundi/UOL, 18/10/2014)

Assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais desde 2003, Marco Aurélio Garcia considera que a “opção sul-americana” foi o principal traço da política externa dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Garcia refuta a ideia de que a América do Sul poderia se desenvolver mais rapidamente se os países aumentassem o número de acordos de livre-comércio e garante que a diplomacia tem sido conduzida levando em conta o projeto nacional de desenvolvimento do PT. O assessor defendeu novamente o posicionamento do atual governo em relação às intervenções militares implementadas sem o apoio da ONU e no recente conflito entre Israel e Palestina.

Opera Mundi: Quais foram as principais mudanças na política externa brasileira introduzidas nos últimos 12 anos?
Marco Aurélio Garcia: Em primeiro lugar, a opção sul-americana. Precisávamos fazer uma escolha: o Brasil queria ser, isoladamente, um polo na nova ordem global em construção, ou buscaria ocupar um lugar de destaque nela, junto aos nossos vizinhos? Para nós, América do Sul é um grande ativo. A região dispõe de território vasto com uma biodiversidade opulenta e desconhecida. Ela tem uma enorme riqueza energética, em um mundo carente de energia. Temos grandes reservas de petróleo e gás e um potencial hidroelétrico considerável. O acervo mineral contempla todas as revoluções industriais, da primeira, com o ferro, até a última, com o lítio. Do ponto de vista da agricultura, a América do Sul tem a vocação de ser o celeiro do mundo, com altos níveis de produtividade. Finalmente, é uma zona de paz e democracia, onde os poucos contenciosos de fronteira estão sendo resolvidos.

OM: A integração com os países vizinhos já era uma prioridade dos antecessores do presidente Lula, com o Mercosul. O que mudou?
MAG: Quando nós ganhamos as eleições, o Mercosul já estava em pé, mas tinha como única aspiração ser uma união aduaneira. Mas nós descobrimos que havia dificuldades para fazer do livre-comércio um ponto de articulação da América do Sul. Já existia a CAN (Comunidade Andina de Nações), o Chile desenvolvia tratados de livre-comércio com EUA e outros, e tinha o Caricom (Comunidade do Caribe), ou seja, quatro regimes comerciais. Equalizá-los era impossível, isso implicaria, por exemplo, uma diminuição das tarefas do Mercosul e um aumento das do Chile, não era o caso. Era evidente que tínhamos que projetar fora do comércio pontos de união, que pudessem conviver com regimes comerciais diferenciados, ainda que estivéssemos pressionando um processo de convergência tarifaria. Na nossa visão, a integração tinha que ser física, energética e produtiva. É o que aconteceu na Ásia, é assim que avançou a região, não com livre-comércio.

OM: A criação da Unasul (União das Nações sul-americanas) foi uma reação à proposta norte-americana da ALCA?
MAG: Com a criação da Unasul, nós nos abrimos para outra perspectiva de integração. Um dos êxitos do Lula pessoalmente foi de conseguir colocar esta questão da integração acima de diferenças ideológicas da região. A gente tinha divergências muito claras com o governo [Alvaro] Uribe, na Colômbia, por exemplo. E, no entanto, ele aceitou. Acho que esta orientação de uma integração que contemple a diversidade política é de fundamental importância. Nós também tomamos algumas iniciativas mais políticas e polêmicas que ainda não são totalmente implementadas, mas que pelo menos são consignadas, como o Conselho de Defesa Sul-Americano.

OM: Qual é o lugar de Cuba nas estruturas regionais da América Latina?
MAG: O tema cubano tem sofrido uma importante evolução na América Latina e no Caribe. Toda a região mantém relações com a ilha. Seu governo desenvolve programas de cooperação relevantes, sobretudo na área social, e sua ativa diplomacia tem contribuído para encontrar soluções de consenso para as complexas questões internas de alguns países, como evidencia o fato de Havana sediar hoje as negociações entre o governo colombiano e as Farc. Por pressão dos EUA, as chamadas “Cúpulas das Américas”, que são coordenadas pela OEA, continuam excluindo Cuba. Houve um impasse na última, em Cartagena, porque a maioria dos países queria que Cuba fosse. Foi decidido que Cuba não viria, mas que seria a última vez. Aliás, Havana já está convidada para a próxima sessão em Panamá, no ano que vem. Agora a bola está com os EUA. Obama terá que decidir se vai ou não.

OM: Outro eixo importante da política externa nos últimos 12 anos foi o desenvolvimento de uma nova política no Oriente Médio. Foi especialmente o caso em maio 2010, quando o Brasil tentou, junto com a Turquia, uma mediação com o Irã acordo sobre a questão nuclear. Mas o acordo foi totalmente ignorado pelas potências ocidentais e novas medidas coercitivas foram adotadas contra o Irã no mês seguinte. Quatro anos depois, que conclusões tira deste episodio?
MAG: Se você comparar a proposta que nós, o Brasil e a Turquia, fizemos naquele momento, e que o Irã aceitou, com o que está em discussão agora, você percebe que teria sido muito melhor fechar um acordo naquela hora. Foi derrubado porque alguns países acharam que não são assuntos nos quais podemos nos meter. Cuidar do Paraguai, da Venezuela, tudo bem, mas aqui, não, aqui é briga de cachorro grande. E, ainda, eu me lembro que, na véspera da votação das sanções no Conselho de Segurança, um representante dos EUA me telefonou, pedindo que o Brasil votasse as sanções, um absurdo. Tive muito orgulho de ver na televisão a nossa embaixadora votar contra, assim como o embaixador da Turquia. Esta história deixou muito claro para mim o fato que as grandes potências, e não somente os EUA, têm uma grande dificuldade de lidar com países emergentes. Não percebem que a correlação de forças de quando foi formado o Conselho de Segurança não existe mais.

OM: Na época do presidente Lula, a diplomacia brasileira parecia muito mais mobilizada na região, especialmente na questão palestina. O Brasil desistiu de tentar trazer alguma contribuição ao dialogo Israel-Palestina?
MAG: Foi o único tema especifico sobre o qual a Dilma falou duas vezes no discurso na ONU. A prova de nosso interesse é que nós tomamos a iniciativa de chamar o embaixador israelense, - fomos muito criticados- e esta decisão foi seguida por um número razoável de países com distintas orientações políticas. Por mais restrita que seja a posição de Israel, eles se deram conta que cometeram um erro, com o Brasil inclusive, quando um porta-voz chamou o nosso país de “anão diplomático”. O presidente de Israel pediu desculpas e isso mostrou o ridículo de todos aqueles que procuraram caracterizar o gesto do Brasil como inconsequente.

OM: Na tribuna da ONU, a presidente Dilma criticou os bombardeios na Síria contra o Estado Islâmico. Mas qual é a alternativa?
MAG: A presidenta criticou o uso da força em geral quando não autorizado pelo Conselho de Segurança e no caso especifico da Síria. Não temos a menor ambiguidade em relação ao terrorismo, que é um horror que ofende todos nossos valores republicanos, éticos e morais. Mas não podemos ser sempre confrontados com a última expressão de uma série de erros, porque neste caso vamos legitimar esses equívocos e provavelmente cometer mais um. Tudo isso começou quando foi tomada a decisão, contra a ONU, de intervir militarmente no Iraque. Não era um modelo de democracia, mas vivia mais ou menos em equilíbrio do ponto de vista da coexistência das comunidades. Hoje é um caos, há um nível de violência incrível, com um número de mortos espantoso. Isso é o resultado desta intervenção unilateral, assim como da irresolução da crise palestina. O papel que o Brasil pode ter é o que um país democrático terá numa organização multilateral respeitável que é a ONU. Nós não estamos propondo dialogo com terroristas, estamos propondo um diálogo no marco das Nações Unidas para resolver este problema. Se a ONU votar uma resolução sobre o uso da força, nós apoiamos. Nós somos tão respeitosos da ONU que nós aplicamos as sanções contra o Irã, apesar de nossos interesses econômicos e de não achar que seja uma solução.

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