sábado, 27 de fevereiro de 2016

Ainda os malandros salgueirenses

Por Murillo Victorazzo

Por sua riqueza, apelo, simbolismo e esmerada pesquisa, vale transcrever a justificativa de enredo do carnaval passado do Salgueiro, redigido pelo Departamento Cultural da escola, comandado pelo jornalista João Gustavo Melo:

"A Ópera dos Malandros"

"Um enredo sobre os Malandros reverbera alto no corpo social e na alma mística de uma escola de samba. A identificação direta do sambista com o personagem foi fundamental para trazer para a avenida temas e situações relacionadas a essa figura tão presente no imaginário carioca e brasileiro. Por isso, o Salgueiro se lançou de corpo e espírito nessa história que nos leva a desfilar por aspectos sociais, culturais, históricos e religiosos dos Malandros, que guardam em si um pouco de cada um de nós. Um enredo que, embora prime pela simplicidade e pela linguagem direta, traz em si a complexidade de uma figura que reúne malícia e jogo de cintura diante das dores e delícias do dia a dia.

OS BARÕES DA RALÉ – O Malandro é o herói e o anti-herói brasileiro. Tem em si, ao mesmo tempo, o espírito romântico, estrategista, integrador, cordial e negociador. É carismático, amado, invejado, desejado, temido, perseguido e cultuado. É o sujeito que transita entre as altas castas da sociedade e as camadas mais populares, de onde emergiu para conquistar o seu lugar no mundo. Caminha com desenvoltura entre as classes sociais, no limite entre a polidez exigida pela ordem dos espaços da chamada burguesia com quem convive e a informalidade do povo marginalizado que representa. Mergulhado sem culpa na boemia, sempre às voltas com amores fugazes com mulheres para as quais não importa a “reputação”, “o Malandro traz consigo as marcas do desejo e do prazer, além de representar as pulsões sufocadas pelo homem civilizado, enfim liberadas nas aventurosas e lascivas noites urbanas” (CRISTINO, 2005).

De acordo com o Dicionário da História Social do Samba (LOPES & SIMAS, 2015), uma das hipóteses para a origem da palavra “Malandro” vem do termo malandrino, nome italiano que, entre diversos significados, serve para caracterizar um indivíduo astuto, matreiro e sagaz. Mas como esse tipo se agregou de forma tão definitiva ao tecido social brasileiro? “Segundo Câmara Cascudo, a origem do Malandro surgiu a partir dos filhos dos escravos urbanos alforriados, os quais rejeitando o trabalho formal, com horários rígidos e obrigações definidas, procuravam representar, finda a ordem escravista, o papel do dominador branco” (CASCUDO apud LOPES & SIMAS, 2015). E uma das estratégias para que esse fenômeno acontecesse de fato, foi investir na própria imagem, desvencilhando-se da figura do “pé-de-chinelo”.

DA GINGA E DO BICOLOR NO PÉ – Foi no cenário carioca, especialmente entre os anos de 1920 e 1930, que a caracterização do Malandro de chapéu de palheta, camisa listrada, calça branca e sapato bicolor ganhou as ruas e tornou-se uma espécie de traje típico do homem-sambista-carioca. “O Malandro, com sua indumentária e seus modos sempre característicos e caricaturais, não deixa de ser um oprimido que permanece fantasiado o ano inteiro” (MATOS, 1982). A “fantasia” do Malandro é, portanto, um meio de penetrar onde jamais poderia, não fosse o processo de negociação claramente expresso na própria forma de se apresentar. Não por acaso, tornou-se uma figura tão identificada com o sambista.

O Malandro é, entre outras diversas características, um sujeito galanteador ligado ao prazer, às coisas do mundo e à satisfação imediata. É oprimido por um sistema em que muitas vezes não se encaixa, mas no lugar da revolta, constrói um trajeto original para se afirmar. Afinal, ser Malandro é “viver cada momento intensamente, gozar das delícias do aqui e agora sem pensar nas consequências” (LIGIÉRO, 2004). É o bon vivant das madrugadas, o dono de um universo paralelo onde é rei e senhor. Um mundo noturno, assimétrico, confuso, desordenado, desvairado, desencaixado e, por isso mesmo, absolutamente irresistível.

A ÓPERA E A RUA – Assim como o Malandro transita entre mundos socialmente distintos, o nosso enredo desfila entre a veia erudita da ópera clássica e os códigos populares das escolas de samba. A separação entre a alta e a baixa cultura cai por terra quando a cultura do cotidiano, do povo, dos conhecimentos cultivados nas ruas, mexe despudoradamente com os dogmas que insistem em separar aquilo que o saber popular teima em unir.

A palavra “ópera” surgiu na Itália, no século XVII, e é o plural de “opus”, ou “obra”, em português. As óperas são peças de teatro musical, “às quais se referia, com formulações universais, a dramma per música (drama musical) ou favola in música (fábula musical)” (GONÇALVES, 2011). As montagens das óperas, por sua vez, remetem às tragédias gregas e aos cantos carnavalescos italianos do Século XIV.

Ao traçarmos essa interseção entre a ópera e o carnaval, não há como deixar de lembrar de Joãosinho Trinta. Foi ele, artista maior do espetáculo visual das escolas de samba, revelado no carnaval pelas mãos de Fernando Pamplona, no Salgueiro, o primeiro a associar o desfile à ópera clássica. “O réssigeur é o carnavalesco. O maestro é o mestre de bateria. O enredo é o libreto. A bateria, a orquestra. Enquanto os passistas são o corpo de baile. As alas são o coro e os destaques são os personagens principais da ópera. Os carros alegóricos são a cenografia” (TRINTA apud GOMES, 2008).

É a partir desse cruzamento de linguagens artísticas a que o desfile das escolas de samba se permite, que nos inspiramos a encenar uma ópera popular dividida em seis atos, abordando aspectos da malandragem, tendo como ponto de partida o musical “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque de Hollanda. Assim, procuramos trilhar essa tentadora possibilidade em nome da instigante opção de mostrar diversos aspectos da malandragem, nessa grandiosa ópera de rua chamada carnaval. Mas para mergulharmos nas referências ao musical, é bom entendermos o contexto de sua criação na cena teatral brasileira.

A ÓPERA DO MALANDRO – O ano de 1978 marca a estreia da “Ópera do Malandro”, de autoria de Chico Buarque de Hollanda. A ideia da montagem do espetáculo surgiu de uma conversa entre o autor e o cineasta moçambicano Ruy Guerra, que mais tarde adaptou a peça para as telas do cinema. A Ópera do Malandro é inspirada na “Ópera dos Três Vinténs”, de Bertold Brecht e Kurt Weill, que por sua vez foi adaptada da “Ópera dos Mendigos”, escrita por John Gay, em 1724. Trata-se de uma ópera em formato de pastiche – jogo de imitações com alusões históricas – sobre os grandes espetáculos operísticos da época, que cada vez mais atraía um público burguês ávido por novas formas de entretenimento em obras teatrais e musicais mais dinâmicas.

Foi nesse cenário, ainda no século XVIII, que o pastiche ganhou espaço no circuito das óperas, firmando-se como “uma prática comum em encenações” (STOREY, 2001). Daí surgiu o mote para a adaptação de espetáculos clássicos à realidade carioca, presentes no segundo ato da nossa “Ópera dos Malandros”, com personagens consagrados da ópera clássica incorporados pelo espírito malandreado da nossa gente.

Mas voltando à montagem brasileira da Ópera do Malandro, a peça apresenta os amores, aventuras, tropeços e trapaças de Max Overseas, o herói que vive de golpes e conchavos com o chefe de polícia Chaves. Também fazem parte do musical personagens importantes, como as prostitutas do cabaré dos cafetões Duran e Vitória, pais de Terezinha, jovem que se envolve com o Malandro Max. Outra figura marcante no desenrolar da história é a travesti Geni, apaixonada por Max e que, malandramente, ocupa um lugar de destaque na trama.

A trilha musical da “Ópera dos Malandros” é uma das mais importantes da história do teatro brasileiro. Canções como “Folhetim”, “Terezinha”, “Geni e o Zepelim”, “O Meu Amor”, “Tango do Covil” e “A Volta do Malandro” ecoaram além das salas de espetáculo e viraram sucesso nas vozes de intérpretes consagrados da Música Popular Brasileira, como Gal Costa, Maria Bethânia, Ney Matogrosso e o próprio Chico Buarque.

Vale a pena ressaltar que muitas dessas canções inspiraram fantasias e alegorias presentes no enredo. Entretanto, o desfile das escolas de samba, como uma procissão que mexe profundamente com a porção devota do sambista, também evoca o perfil espiritual da malandragem, fundamental para completar o quadro de aspectos desses místicos protagonistas das ruas.

LAROYÊ, MOJUBÁ, AXÉ! – A apoteose da nossa Ópera dos Malandros, isto é, nosso último ato, representa a as crenças e a divinização dos Malandros, cultuados em terreiros espalhados pelo país. Entidades como Zé da Ginga, Zé Pelintra, Exu Giramundo, Pombas Giras e outras variações geralmente não costumam ser tão abordadas diretamente no carnaval por serem forças etéreas que trazem em si uma energia vital poderosa. Mas não fugimos a esse desafio que nos exigiu muita responsabilidade espiritual.

A saudação ao povo de rua presente nesse desfile não poderia prescindir da apresentação dessas entidades tão louvadas pelos sambistas, especialmente nestes tempos em que a liberdade religiosa é violada no Brasil em diversos episódios recentes de intolerância. Por isso, a Passarela do Samba é o palco maior do nosso canto de paz em respeito a todas as religiões.

Em nome de toda uma nação, o Salgueiro encerra sua ópera pedindo tolerância e respeito, declarando o samba como elemento agregador entre as diversas crenças que coexistem no nosso país. Afinal, o brasileiro carrega na pele e no sangue a marca da diversidade de povos que aqui se estabeleceram ao longo do tempo. Dessa mistura de saberes e credos, surgiu uma sociedade que, acima de tudo, acredita no futuro. A crença no intangível e a fé inabalável no amanhã conduzem nosso povo adiante.

Na luta de cada manhã, a luz do dia que surge após a infinita noite de ilusões, os personagens vestem a fantasia da realidade, tornam-se corpo e carne. Enquanto isso, a alma se guarda para outro momento em que a lua convocará seus reis e rainhas da noite para de novo brilharem num palco sob as estrelas.

Salve a Malandragem!! Laroyê!"

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