quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

O título não veio, mas salve a malandragem salgueirense!

Por Murillo Victorazzo

Por essas ironias surpreendentes do carnaval, o Salgueiro, principal favorito ao título do carnaval carioca, não confirmou a décima estrela tão esperada devido a uma concepção plástica abaixo dos padrões que tradicionalmente lhe garantiram notas máximas nos quesitos Fantasia e Alegorias. Fragilidade que teve na queda de luz do carro abre-alas seu ponto mais falado.

O "chão" - canto, dança, evolução,harmonia - a "furiosa" bateria, comissão de frente e casal de mestre-sala e porta bandeira não perderam um décimo sequer, mostrando uma escola alegre, ensaiada e vibrante, o que deixou no salgueirense uma enorme frustração pelo justo quarto lugar.

Mas, se plasticamente o Salgueiro deixou a desejar, o malandro batuqueiro vermelho e branco entrou para História da Sapucaí por desenvolver um tema de profundo significado e riqueza cultural. Um aula, no sentido literal da palavra e com muito esmero, sobre o Rio de Janeiro, sua noite e suas raízes afros, enaltecendo a tolerância religiosa e a diversidade sócio-cultural.

A boa malandragem, a boemia carioca, o "povo da rua" e a umbanda estiveram presentes com perfeição na Avenida graças a um brilhante trabalho de pesquisa do Departamento Cultural da escola em parceria com os carnavalescos Renato e Marcia Lage. Um  enredo mais do que merecidamente nota 40 e Estandarte de Ouro, embalado por um samba igualmente arrepiante.

Em post na sua página no facebook, mestre Ney Lopes explicou com o conhecimento que lhe é típico por que a "Ópera dos Malandros" foi a melhor história contada no Sambódromo neste ano. Deixou o salgueirense ainda mais orgulhoso de ser salgueirense.

Fizemos jus à fama de sermos "nem melhor, nem pior, apenas diferente" e ratificamos com maestria o nosso papel de Academia do Samba. Obrigado, Departamento Cultural! Obrigado, compositores!

A LENDA DO “THEATRO” APAGADO
(Ney Lopes)

Definir o que seja um Orixá não é fácil. Tanto que, entre os oeste-africanos do povo Fon (“jeje” no Brasil e “arara” em Cuba), o termo correspondente a orixá, é assim explicado: “A palavra vodún evoca uma ideia de mistério e designa algo que extrapola o divino. É toda uma manifestação de força que não se pode definir; algo que ultrapassa a imaginação e a inteligência” (Segurola et Rassinoux, Dictionnaire fon-français, 2000).

De nossa parte, entendemos que um Orixá é, sim, uma força intensa; mas que se situa dentro da cadeia de forças do Universo, a qual nós humanos também integramos. Então, não devemos apenas cultuá-los, mas, sim – respeitosamente e reconhecendo nossa inferioridade –, interagir com Eles. Devemos tratá-los bem e agradá-los, mas jamais carnavalizá-los. Esta é a nossa opinião.

Já com aquelas entidades espirituais que tiveram vida terrena, qualquer que seja seu domínio, a conversa é outra, pois elas conservam características humanas e gostam de ser lembradas, paparicadas, cultuadas e até carnavalizadas. E o enredo salgueirense, “nem melhor nem pior, apenas diferente”, do carnaval deste ano – que aqui se encerra neste texto – mostrou isso. E exatamente por isso foi o único a motivar reflexões intelectualmente profundas, como as contidas nos artigos de Marcelo Mello (O Globo, 11/02/2016) e do nosso querido parceiro Luiz Antônio Simas, em O Dia, hoje, 17 de fevereiro.

Diz o Simas: “Falar de orixá, para muita gente, é encarado como algo normal em desfiles de escolas de samba, salvo faniquitos dos intolerantes mais histéricos. Mas o Salgueiro foi além e falou, a partir do musical de Chico Buarque, da macumba carioca, do catimbó nordestino, do povo de rua virado na malandragem do Rio, na pulsão entre a ordem e a desordem que a cidade enseja. (...) Botar Tranca-Rua de capa e cartola abrindo o desfile e o Zé das Alagoas, juremeiro do catimbó, fechando, cercado pelas pomba giras e abençoado por Oxalá, faz mais pela luta por uma cidade plural que muito discurso bacana”.

Antes, Marcelo Mello, que não temos o prazer de conhecer, já tinha assinalado: “O Salgueiro foi uma metáfora do conflito entre o desejo e os limites que a realidade impõe. E nada melhor para entender isso do que analisar a sequência dos atos do desfile. Na comissão de frente, um componente de fantasia vermelha e preta, cartola, capa e ar petulante abria os trabalhos ao lado de pomba giras que rodavam com sensualidade escancarada saias cenográficas. A cena era um desafio a ordem constituída ao anunciar que seria liberada a libido que precisa ficar dentro de algum limite, por mais elástico que seja”.

Tudo isso, com uma trilha sonora que não lembrava nada do que já se conhecesse em termos de melodia de samba-enredo e uma letra absolutamente de acordo. Mas faltou dizer ao jurado de alegorias que as entidades espirituais descidas à Sapucaí naquela noite salgueirense, embora gostem de carnaval, gostam mais das sombras que das luzes estonteantes.

Foi por isso, só por isso, que a alegoria do “Theatro” Municipal pareceu apagada. E fim de papo!

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