domingo, 22 de outubro de 2017

O rei e a Cataluña: ecos do passado

Por Murillo Victorazzo

De sua tribuna, um rei vem a público defender o cumprimento da lei para a manutenção da ordem - no caso específico a integridade territorial. Sobre a decorrente violência estatal contra alguns de seu súditos, nenhuma palavra dada, deixando no ar a sensação de que a considera um secundário, inevitável e justificável efeito colateral.

Os agredidos pertencem a uma região de forte identidade cultural própria, com histórico de lutas - armadas ou não - contra anexação ou restrição de autonomia impostas por governos autoritários. Dias depois, líderes separatistas são presos e o governo central destitui o governo e parlamento local.

 As cenas nos remetem aos livros e filmes históricos sobre a época dos monarcas absolutistas, que, ungidos ao trono segundo o Direito Divino (de Deus vinha seu poder e apenas a Ele tinha que explicar) e desejosos de manter seus reino e poder, mostravam-se insensíveis a vozes populares. Mas, guardadas as enormes proporções, podem ser vistas na Catalunha espanhola ultimamente.

Há três anos, Felipe VI herdou a Coroa espanhola de seu pai, Juan Carlos I, com a tarefa de não deixar fomentar o republicanismo no país. Em um cenário de alta recessão e desemprego, as notícias de gastos abusivos e corrupção envolvendo a família real balançavam a credibilidade da monarquia.

Enquanto jovens iam às ruas protestar contra o sistema econômico e político, no chamado movimento dos "Indignados", que colocou em xeque o bipartidarismo tradicional espanhol, Juan Carlos viajava para a África a fim de participar do seu hobby predileto, a supérflua e pouco razoável caça a elefantes.

Sua filha, a infanta Cristina, entrava para a História como a primeira descendente da Coroa a depor na presença de um juiz, no rastro do escândalo protagonizado por seu marido, Iñakli Urdangarin. Acusava-se o genro real de desviar dinheiro público para a fundação presidida por ele. Extratos bancários mostravam que parte do capital da instituição sem fins lucrativos havia sido utilizado para pagar as volumosas despesas pessoais do casal, como, por exemplo, sapatos de 900 euros.

No dia do depoimento de Crisitina, centenas de manifestantes antimonarquia se colocaram à frente do tribunal. Um deles dava o tom: “A nossa monarquia é uma instituição arcaica, medieval e está totalmente protegida por uma máfia. É a pedra angular da corrupção que há neste país”.

Já debilitado pela idade, o monarca preferiu abdicar. Um rei jovem passaria a imagem de uma Coroa oxigenada, pensou resumidamente Don Juan, ele próprio um monarca respeitado dentro e fora de suas fronteiras por seu legado democrático. Seu protagonismo no sepultamento do entulho fascista de seu antecessor, El Generalísimo Francisco Franco é indiscutível.

Neto de Afonso VIII, cuja abdicação significou o início da Segunda República, Juan Carlos subiu ao trono em 1975, após a morte de Franco, que governou com mãos de ferro a Espanha por quase 40 anos. O período franquista, consolidado após uma das mais sangrentas guerras civis do século XX, teve como uma de suas marcas o sufocamento cultural, político e administrativo das regiões autônomas do país - o catalão, por exemplo, foi proibido de ser ensinado e praticado em locais públicos na Catalunha.

Prestes a morrer, na beira dos 80 anos, ao ter que escolher seu sucessor, Franco imaginara que o retorno à monarquia seria a garantia da manutenção dos pilares católicos ultraconservadores de seu regime. Além do que, em um país como a Espanha, de histórico imperial mas pouca coesão interna, traço expresso no separatismo latente de algumas de suas regiões, ninguém melhor do que um rei para manter o status quo unificador.

Mas, dono do cetro, o novo rei monarca não seguiu à risca o imaginado pelo ditador. Convocou eleições diretas para a elaboração de uma nova Constituição e renunciou através dela a muito de seus poderes. A nova Carta reservava-lhe, seguindo as monarquias modernas, apenas a Chefia de Estado. Seu papel seria o de representante da nação perante o exterior, chefe supremo das Forças Armadas e, principalmente, fiador da estabilidade institucional do país. Devolvia ainda autonomia  a região catalã.

A Espanha, a partir de então, tinha um Parlamento independente e, na Chefia de Governo, um presidente de gobierno  (como lá se chama o primeiro-ministro), designado pela maioria parlamentar originária da vontade popular. O pulso forte de Juan Carlos contra a tentativa de golpe em 1981, quando militares franquistas insatisfeitos invadiram armados o Parlamento, serviria para carimbar definitivamente nele a imagem de democrata e unificador do Espanha, que, entre gabinetes socialistas e conservadores, modernizaria sua economia nas décadas finais do século XX.

A crescente contestação a ele, portanto, alertava para a considerável perda de prestígio da Coroa. Não por acaso, assim que se anunciou sua abdicação, milhares de pessoas em diferentes cidades foram às ruas para festejar e logo pedir um referendo sobre o fim da monarquia.  Na Catalunha, onde a crise já servira para estimular a convocação de  uma consulta popular separatista, posteriormente barrada por Madrid, a mobilização ganhou dimensão maior.

Nada surpreendente para uma região cuja torcida (pelo menos, grande parte dela) de seu principal time faz há anos coro pela secessão aos exatos 17 minutos e 14 segundos de toda partida jogada em seu estádio. Uma referência ao ano de 1714, quando um levante catalão foi sufocado pelas tropas de Felipe V - notem a coincidência irônica do nome - e Catalunha, definitivamente anexada ao Reino da Espanha, deixando de ter direito a governo próprio.

O motivo da empolgação parecia óbvio. A queda da monarquia sempre será terreno fértil para separatistas. Uma república recém-criada traz consigo incertezas e disputas políticas, um vácuo de poder deixado pelo fim de um dos poucos traços positivos de uma forma de governo que ignora a chancela popular na escolha da chefia de Estado em pleno século XXI: o perfil unificador do rei, em muito oriundo de sua neutralidade acerca dessas disputas.

Símbolo permanente do Estado - e não de governos - o rei está imune e acima dos cotidianos embates parlamentares e decisões governamentais, sendo assim visto com legitimidade para falar em nome de toda nação.

É por ser o símbolo da integridade do território nacional que é compreensível o tom elevado de Felipe VI contra o referendo do mês passado, que, embora com participação de pouco mais de 40% dos possíveis eleitores, decidiu com 90% dos votos pela emancipação.

No entanto, pela imagem de isenção legitimadora, esperava-se no discurso real um tom conciliatório, em busca do diálogo, e o rechaço à repressão policial contra quem apenas queria praticar o direito de votar, mesmo o Tribunal Constitucional considerando a votação ilegal. Bom senso real pacifica mais do que qualquer leitura rígida sobre parágrafos constitucionais.

A crítica a Felipe não é um posicionamento a favor dos separatistas nem concordância com todos os passos de Carles Puigdemont, presidente catalão e líder do grupo. Há inúmeros argumentos a favor e contra o movimento. Sinais econômicos, por exemplo, já evidenciam seu risco.

Porém, como sintetizou um catalão indignado ao Globo, "um rei representa um povo, a todos, e não apenas uma parte". A frase deveria ser ouvida não apenas pelo rei, mas por ambos os lados.  A independência está longe de ser unanimidade na Catalunha. Muito pelo contrário, todas as pesquisas a mostram dividida.

Entende-se também o rápido posicionamento da União Europeia contra o referendo. Faz todo sentido o presidente francês, Emanuel Macron, ser solidário ao primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy. Tudo o que Macron não deseja é instabilidade em suas fronteiras e no bloco pelo qual tanto luta para fortalecer. A vitória do "Sim" periga abrir a Caixa de Pandora dos movimentos similares existentes em países da região. Mas, ressalte-se, mesmo em Bruxelas vozes se levantaram contra os excessos policiais e a favor do diálogo.

Com sua abdicação, Juan Carlos voltou a ganhar pontos entre os espanhóis. Felipe VI, com sua jovialidade, e notícias como a condenação de Urdangarin, que deu à família real ares de igualdade perante a população ao mostrar que a Justiça é para todos, abafaram as ainda minoritárias porém barulhentas vozes republicanas na Espanha.

Contudo, a resposta virulenta dada por Rajoy e avalizada por Felipe, se não vão no sentido oposto para todo o país, reaviva a memória do autoritarismo tão dolorosa para os catalães, capaz de indignar mesmo os contrários à independência. Se Madrid e Barcelona esticam perigosamente as cordas, reforçar a imagem histórica de oprimidos tem potencial aglutinador - e bem pior, é fermento para radicalizações com armas e terror.

De Rajoy e seu partido, pode-se não esperar muito. Mas de Felipe, com poderes limitados mas grande força simbólica e referendadora, espera-se, em suas manifestações, prudência, sensibilidade política. Caso contrário, arrisca-se a entrar no imaginário catalão da mesma forma que seu xará tão longinquamente antecessor, com as consequências que dele podem vir.

Buen sentido, Majestad, aunque puede ser una quimera.

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