sexta-feira, 31 de julho de 2020

Merquior e a falácia liberal bolsonarista

Por Murillo Victorazzo

Diplomata, crítico literário, sociólogo e advogado, José Guilherme Merquior foi um dos expoentes do pensamento liberal brasileiro da metade final do século XX. Falecido precocemente em 1991, aos 50 anos, seu brilho intelectual era elogiado até por críticos de esquerda. No ensaio " O argumento liberal", escrito em 1981 e reproduzido em junho passado pelo "Estadão", Merquior faz um breve apanhado sobre a evolução e as nuances do liberalismo para estruturar o desenvolvimento de suas ideias. Alguns trechos ajudam a esclarecer a falácia da autoimagem "liberal conservadora" do bolsonarismo.

Como protagonistas das fontes ideológicas descritas na obra, destacam-se os pensadores britânicos liberais Leonard Hobhouse e Thomas Green. Do primeiro, Merquior ressalta a ideia de que "a liberdade social, baseada na autodisciplina, é algo a ser desfrutado por todos os membros da sociedade; e consiste na liberdade de escolher linhas de ação que não envolvam dano a outrem”. Liberdade que, segundo Green, torna-se  valiosa apenas como meio para um fim maior, o bem comum:  "A coerção estatal não é o único obstáculo à liberdade. Barreiras econômicas e sociais também o são, o que torna legítimo, para removê-las, o recurso à ação do Estado".

A partir dessas premissas, Merquior sustenta que, "não há legitimidade fora do ideal democrático, o que supõe a universalidade da cidadania, dos direitos políticos, e não apenas [...] a dos direitos civis. Não é só a segurança do indivíduo que se consagra; é também o seu direito de participação política - para não falar de certos direitos sociais".

Merquior faz questão de explicar a contradição entre liberalismo e conservadorismo. O conservador, afirma, além de apresentar uma visão pessimista da politica como solução de todos problemas, considera que "tanto a autoridade estabelecida como o status quo social tendem a ser sagrados" - enquanto, para o "verdadeiro liberal", estes nunca o são: "Assim como o fundo da ética liberal é o utilitarismo, o fundo de sua epistemologia política é o empirismo, ou seja, a disposição a submeter a autoridade e a ordem ao teste da experiência, sem sacralizá-las a priori".

Bastam esses breves apanhados para contrapormos o bolsonarismo a essas duas linhas tradicionais de pensamento. Para início de conversa, um liberal não corta instrumentos básicos da busca pela "universalidade da cidadania", como visto em diversos decretos de ministérios e órgãos que retiraram ou diminuíram a representação da sociedade civil em seus conselhos. Muito menos demoniza - quando não tenta criminalizar - ONGs e  movimentos sociais, o que é bastante distinto de responsabilização judicial de eventuais ações específicas de alguns seus integrantes. 

A caça às bruxas a "militantes", em sua enviesada e pejorativa ressignificação do termo como sinônimo de esquerda, vai de encontro ao "direito à participação política",  direito que não se resume ao voto, como preconcebido nas democracias minimalistas evocadas por populistas de direita, que se veem como a encarnação do "povo-uno". Um liberal jamais rotularia direitos humanos como "esterco da bandidagem", muito menos bradaria em cima de trio elétrico que "não tem essa historinha de Estado laico. As minorias que forem contra, que se mudem ou se curve para as maiorias”.

Do ponto de vista econômico, o bolsonarismo se apega ao mais rudimentar ultraliberalismo. Portam-se como papagaios estereotipados da escola austríaca de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek: rezam por um reducionismo financista robotizado, fundamentalistas de um deus chamado mercado e sua suposta geração espontânea benéfica e infalível - como tudo ligado ao divino. 

Libertários, como a cultura norte-americana exportou. Ou liberistas, herdeiros de Herbert Spencer,  outro filósofo britânico, para quem esse mercado, produto de forças extra-humanas, é o organizador último da vida social. Sendo este intangível, qualquer noção de justiça social firmada pela "vontade arbitrária" dos pactos e leis humanas seria não apenas disfuncional como "primitivas" e "autoritárias".

A direita palaciana ignora toda complexidade do liberalismo como corrente política e econômica, algo bem mais rico do que o banal clichê da defesa do "Estado mínimo" e a consequente depreciação de todo setor público. Instrumentaliza-o para tentar justificar os interesses do homem autocentrado, seus desejos de preservação - ou recuperação - de privilégios e padrões sociais e culturais, sem qualquer tipo de amarras. Assim é inclusive nas questões sanitárias da pandemia: obrigatoriedade de máscaras e vacina, distanciamento social. "Não existe essa coisa de sociedade, existem indivíduos", disparou Margareth Thatcher na década de 80. Em resumo, a defesa da lei do mais forte.

Embora diferentes, como Merquior sustenta, é por defender que não é a política, mas sim a total liberdade econômica, quem organiza o mundo que a crença hayekiana ganha viés conservador. Ao refutar qualquer regulação humana, relega transformações do status quo ( se e quando se busca) ao tempo incerto do infalível mercado. Não surpreende seus simpatizantes se considerarem os verdadeiros liberais e tacharem os demais de “socialdemocratas”, "socialistas" ou "newleft", ou, no tom jocoso das redes sociais, "liberais limpinhos"

O bolsonarismo entra em choque com Hobhouse, Green, Merquior e norte-americano John Rawls, outro filósofo liberal que se afasta do dogmatismo hayekiano ao buscar conciliar as noções de liberdade e igualdade ( não o igualitarismo marxista) através da concepção de uma justiça distributiva. Rawls acreditava na justiça social como construção política fundamentada em direitos iguais e solidariedade coletiva, sem deixar de reconhecer a legitimidade - e utilidade - de certas desigualdades econômicas. 

"A sociedade é bem-ordenada não apenas quando está planejada para promover o bem de seus membros mas quando é também efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça", afirma ele em sua obra clássica "Uma teoria da justiça".

Mas até mesmo o suposto conservadorismo de Bolsonaro não se sustenta. Porque, se, ao contrário do liberal, o conservador sacraliza a autoridade e a ordem, é impensável, por dedução óbvia, ele se utilizar da estratégia populista do confronto com as instituições. Jamais um conservador insinuará o não acatamento de ordem judicial ou minimizará (pra não dizer estimular) pedidos de fechamento da Corte Máxima. Nunca fará linchamento verbal de ministros e ameaças subliminares de ruptura.

O bolsonarismo deturpa como criminalização a visão pessimista da politica como "salvadora de todos os problemas": alveja a legitimidade do arcabouço político através de clichês falso moralistas generalizantes e ignorantes acerca do funcionamento de um sistema presidencialista bicameral, com seus freios e contrapesos, mesmo que o governo repita as piores práticas de sempre com o Centrão. Além do que estimulam sistematicamente o descrédito de órgãos estatais com reconhecidas expertises em estudos de políticas públicas e fiscalização (IBGE, IPEA, INPE, ICMBio, entre outros).  

Pela mesma razão, um conservador jamais estimularia a quebra de regras, especialmente dos braços armados do Estado, como a proibição de seus agentes da ativa se manifestarem politicamente. A quebra da disciplina e o incentivo à politização de quartéis são a antítese do conservadorismo. É, não fortuitamente, o retrato da lamentável carreira militar do presidente da República, marcada por agitações, prisões, quebra de disciplina, infrações, acusações de crimes. A sacralização aparece seletivamente, apenas para evitar qualquer fiscalização externa civil dessas forças - e na absorção acrítica de tudo que seu "mito" perseguido diz e pratica. 

Um conservadorismo de conveniência, sustentado por palavras de ordem vazias como "defesa da família e dos valores cristãos". Na realidade, o exemplo mais bem acabado de reacionarismo, divergente das ideia conservadoras tradicionais do  pensador britânico Edmund Burke, baseadas na prudência na condução das transformações sociais. Como legítimos reacionários, sonham, por definição, não com a mera manutenção do status quo presente, mas a volta ao status quo social passado, com todos preconceitos ( muitas vezes disfarçados com o típico "não sou, mas..."), benesses e elitismos que os envolvem. Dos piores tempos passados, por eles idealizados .

Reacionários: reagir a mudanças, nem que seja necessário chamá-las pejorativamente de "esquerdismo politicamente correto". Invertem, para isto, os papéis de opressores e oprimidos, vítimas e algozes: o movimento negro é quem causa racismo; é o "ativismo" gay que estimula a homofobia; o golpe de 1964 foi quem permitiu a democracia etc. Afinal de contas, esse país era uma "democracia racial" ( a ultrapassada teoria de Gilberto Freyre, tão cultivada na quartéis), classes conviviam harmonicamente, fruto de uma miscigenação idílica. A "esquerda" foi quem nos dividiu. Pátria amada, Brasil. Liberticidas que gritam por liberdade.

Verdadeiros liberais e conservadores, alguns hoje aparentando arrependimento, terão que, em algum momento, prestar contas no tribunal da História ou  com sua consciência, por não só ter permitido como estimulado a ascensão desse reacionarismo vulgar, eleito com apoio da elite econômica ( financeira, industrial e agrícola), de igrejas, Forças Armadas, polícias, sustentado no Legislativo pela "velha política", mas que insiste em se ver como "antissistema". Liderados por um suposto  outsider que há 30 anos, junto com sua família, representa o que há de mais velho nesse país: patrimonialismo, boquinhas,  mamata estatal, laranjas, funcionários fantasmas - corrupção. 

Desolador é o país que relegou ao esquecimento um intelectual como Merquior e emponderou com votos seguidores de um projeto de "filósofo" vulgar, picareta e extremista como Olavo de Carvalho, reduzindo ou deturpando as ideias liberais. 

Desalento que piora quando, do outro lado, setores da esquerda ainda se recusam a negociar pontos de contato com "social-liberalismo" do diplomata. Mesmo tendo o namorado em muitas políticas públicas na metade dos anos petistas no Planalto, insistem como discurso eleitoral cultivar o mofo sobre o papel do mercado; resvalam em uma ojeriza similar ao dessa direita empoderada em relação ao Estado. Desse confronto, mas tomando o cuidado para não parecer fazer falsas equivalências, nasceu o Brasil pós 2018. Azar o nosso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário