quarta-feira, 29 de julho de 2020

O filho do século; o livro do ano.

Por Murillo Victorazzo*

O contar do tempo é uma convenção humana. Adotado oficialmente em todo mundo com o objetivo de facilitar as relações internacionais, o calendário hoje utilizado (gregoriano) é fruto de decisão do Papa Gregório XIII, em 1582. Após estudos de uma comissão formada por matemáticos e astrônomos próximos à Igreja Católica, buscava-se corrigir falhas do calendário juliano, imposto pelo imperador romano Júlio César mais de mil anos antes. A partir de então, o ano de nascimento de Jesus Cristo passava a ser o ano I, sendo o novo calendário paulatinamente aceito como marco civil em todo o mundo, embora com a manutenção de outros, em algumas nações, para fins religiosos e culturais, como os chineses, persas e judeus.

Antonio Scurati, contudo, lembra-nos, em M, o filho do século, que tais convenções pouco significam diante de certos fenômenos históricos. No livro, lançado no Brasil no início do ano, ele nos mostra com esmero o processo pelo qual outro italiano tornou-se protagonista de delimitações mais relevantes do século passado. Não um monarca, mas com semelhantes poderes imperiais e ambições expansionistas. Nada parecido a um Papa; ao contrário, um ateu. Porém, líder inquestionável de um movimento de massas com devoções quase religiosas:  il Duce "ha sempre raggione" (o Duce "sempre tem razão"), afirmava faixas e cartazes pendurados por muros da Itália da primeira metade do século XX.

Benito Amilcare Andrea Mussolini não lançou apenas uma forma diferente de fazer política, a mobilização de massas à direita calcada na violência permanente. Ele alterou profundamente os paradigmas sócio, político e econômicos do século passado.Serviu de inspiração a Hitler e, apesar de relegado à posição de segunda voz da fatídica dupla, formou com ele um dos dois titãs doutrinários do período, em profundo antagonismo ao outro, o comunismo, embora com brutais práticas liberticidas em comum. Ambos parâmetros de estudos e debates, sejam a sério ou como espantalhos eleitorais vulgares, ainda hoje.

Afirmava Mussolini na revista Geraechia, em 1923, já como primeiro-ministro: "A liberdade é uma divindade nórdica, adorada pelos anglossaxões [...] O fascismo  não conhece ídolo, não adora fetiches; já passou e, se necessário, voltará tranquilamente a passar por cima do corpo decomposto da Deusa da Liberdade [...] A liberdade hoje não é mais a virgem casta e severa pela qual combateram e morreram as gerações da primeira metade do século. Para as juventudes intrépidas, inquietas e ásperas que se aproximam do crepúsculo matinal da nova história, há outras palavras que exercem um fascínio muito maior, e elas são: ordem, hierarquia, disciplina".

Sucesso retumbante do mercado editorial italiano, com cerca de 400 mil exemplares vendidos, traduzido em 40 países e vencedora do Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana, a obra levou seu autor ao posto de celebridade nas ruas de sua cidade, a  mesma Milão berço do fascismo. Certamente menos pelo assunto, já tantas vezes retratado, mas especialmente pelo fantástico e pouco usual modo pelo qual descreve, em fascinantes detalhes, a evolução dos Fasci di Combattimento e a chegada ao poder de seu líder fundador. Um romance documental, em que cenários, personagens, acontecimentos e diálogos são absolutamente verdadeiros, garimpados em depoimentos e documentos, mas fugindo ao engessamento de livros-reportagens e obras acadêmicas.

É aí que mora seu sucesso: uma aula de pesquisa histórica em forma de aula de literatura, entremeando objetividade narrativa com linguagem poética, repleta de ironias, sarcasmos e reflexões existenciais. Variações estilísticas invejáveis, expressões ricamente costuradas. Tudo a partir da perspectiva dos principais atores da dramaturgia fascista, em inúmeros breves capítulos semelhantes a um diário. O cenário?  Uma Itália mergulhada no profundo caos social, com políticos decadentes, rejeitados pela população descrente dos jogos parlamentares; uma economia arruinada em consequência da I Guerra Mundial; e cinco milhões de combatentes abandonados pelo Estado ao voltarem à pátria que defenderam.

O caldeirão se completava com o sensação de traição disseminada na população. Perto de 600 mil italianos haviam tombado nos campos de batalha. Em troca, mesmo tendo lutado ao lado dos vitoriosos, sentiam-se desprezados por França, Inglaterra e especialmente EUA na repartição do espólio territorial pós-guerra. "Uma vitória mutilada", segundo Gabriele  D`Annunzio", aviador no conflito, "o único literato italiano em séculos a fundir o poeta e o guerreiro", em cujas ideias excentricamente grandiosas Mussolini um tanto bebeu. Mutilação potencializada pelas atitudes erráticas do governo liderado pelo primeiro-ministro Nitti na Conferência de Paz de Paris, o que intensificou o asco popular a seus representantes.

Esse terreno fértil para o nacionalismo e a rejeição aos establishments doméstico e internacional foram sabiamente instrumentalizados por Mussolini, expulso do Partido Socialista (PSI) em 1915 por subitamente romper com a linha oficial do partido a favor da neutralidade na guerra. Posição expressa no Avanti!, o jornal da legenda do qual era editor-chefe. Ousadia que gerou indignação da direção e de grande parte dos militantes.

Efusivo, direto, provocador, performático, irascível, carismático, esse professor filho de ferreiro e professora rompera com a linguagem excessivamente teórica, fria e rebuscada do jornal, típica dos intelectuais marxistas. Sua brilhante oratória refletia o ardor revolucionário, oposto ao reformismo da maioria da cúpula socialista de então. Jamais perdoaria os gritos e xingamentos com que foi defenestrado por seus companheiros

Scurati transforma palavras em imagens. Consegue nos remeter com precisão às ruas, praças, fábricas, palácios, jornais, teatros, casas e campos daquela Itália convulsionada tamanho o apuro estilístico e pormenores com que escreve. Não à toa, a obra já foi negociada para se tornar série televisiva. Traça com ainda mais sensibilidade o perfil de Mussolini e dos demais personagens que o circundavam e antagonizavam, buscando entender, sem prejulgamentos ideológicos e morais, suas idiossincrasias, defeitos, fragilidades, forças e, por que não, virtudes.

O livro nos faz adentrar na mente de cada um deles, sem correr o risco de criar empatias perigosas - exceto, claro, em quem já se atrai por truculência e extremismo. Uma linha tênue que causou incômodos na Itália. Receio compreensível em se tratando de um país que conta, entre suas lideranças política à direita, com o Matteo Salvini, ex-vice-primeiro-ministro conhecido por, não raro, parafrasear Mussolini em discursos. Ideias sedutoras para considerável parcela da sociedade que, se não o corrobora, deixou de ver o fascismo como "um mal definitivo", como define Scurati em entrevista ao jornal El País.

Ao destrinchar a formação dos "camisas negras", a sanguinária milícia fascista, o autor nos desenha com palavras a progressiva naturalização da violência como ferramenta política. Um artifício não decorrente da sua escolha como meio articulado para um fim revolucionário. Essencialmente, era um fim por si só; um prazer irrefreável, afrodisíaco, de homens entre 20 e 40 anos que a viam como tributo à juventude - na realidade, ao que consideravam ser a virilidade masculina juvenil. Um fetiche excitante, uma autoafirmação, orgulhosos que muitos eram de suas folhas corridas prévias, nas quais se incluíam de crimes comuns mais leves a homicídios. A cada "excursão", deixavam para trás um mar de sangue cantando alegremente  Giovinezza (Juventude), originariamente um canção estudantil cuja letra alteram para se tornar o hino fascista.

Coesos, mas socialmente pouco homogêneos, destacava-se no grupo como sua gênese, sua inspiração operacional, os Arditi, batalhão de assalto na guerra que se distinguira dos demais por, em um conflito que inaugurara a era dos "gases abrasivos e as toneladas de aços disparadas de locais remotos",  manter a intimidade do combate corpo a corpo. Uma tropa especial, com a "confiança em si mesmo que só é obtida através da maestria em esquartejar um homem com uma arma de corte de lâmina curta". Não se submetiam à disciplina tradicional de marchas e prontidão em trincheiras no front. “Nos dias de batalha, eram jogados aos pés das posições a serem conquistadas [....] podiam, no mesmo dia, degolar um oficial austríaco no café da manhã e jantar bacalhau na manteiga em uma trattoria da região de Vicenza. Normalidade e homicídio, de manha à noite".

Largados pelo Estado liberal, ociosos com o fim do conflito, a eles só restaram a bebedeira boêmia, a mitificação do passado e a fantasia de novas batalhas, circulando pelas ruas e bordéis com "a lapela da farda aberta sobre o peito nu e o punhal na cintura". Em tempos de paz, nada mais do que um estorvo de "dez mil minas errantes"; "uma multidão de desajustados".

Mussolini logo os seduz, portando-se como defensor daqueles "heróis" perante os que os "difamavam". Daquele rancor latente sairia sua máquina política de renegar a política. Os apologéticos artigos em seu jornal, o Il Popolo d`Itália ( "O Povo da Itália”), e os nove meses de alistamento na fronteira com a Áustria, abreviados pela explosão de um morteiro que lhe deixou com dezenas de metal pelo corpo, davam-lhe a legitimidade pretendida. Pendurada na parede atrás de sua mesa na pequena redação, o símbolo do batalhão: a bandeira negra com um crânio branco centralizado.

Entre os inúmeros fantásticos monólogos de Mussolini consigo mesmo, um nos ajuda a esclarecer o perfil social do primeiro fascio. Eram "[...] os facínoras, os deslocados, os delinquentes, os genialoides, os ociosos, os playboys pequeno-burgueses, os esquizofrênicos, os negligenciados, os desaparecidos, os notívagos, os anárquicos, os sindicalistas incendiários [...] uma boemia política de veteranos oficiais e suboficiais, homens hábeis no manejo de armas de fogo ou cortantes, aqueles que se descobriram violentos em face da normalidade do retorno [...] os sobreviventes, que acreditando serem heróis consagrados à morte, confundem uma sífilis mal curada como um sinal do destino [...] homens da guerra. Da guerra ou do seu mito. Eu os desejo como o macho deseja a fêmea, e ao mesmo tempo, desprezo-os".

Essa heterogeneidade advinha da natureza do fascismo, aglutinado inicialmente contra algo- ou, precisamente, contra tudo, o "sistema" -, mas paupérrimo em teoria. Era essencialmente um movimento de ação, "o que seduz os jovens": "algo inédito... um antipartido [...] Fazem antipolítica [...]Mas depois a busca da identidade deve parar por aí. O importante é ser algo que permita evitar os empecilhos da coerência, os estorvo dos princípios. Benito deixa de bom grado as teorias, e sua consequente paralisia, para os socialistas". Oportunista, dominava a incrível capacidade de captar o ânimo da massa - o ressentimento, o medo, a inquietude - e com ele jogava. Portava-se como o "homem do depois". Bastava "alimentar certos estados de espíritos que afloram neste crepúsculo da guerra". Populista, simplificava a realidade atacando a ineficácia e imoralidade do Parlamento (tão atual, não?): “Deem a mim soberania e eu reduzirei essa complexidade”.

Contudo, embora fossem o "refúgio de todos os heréticos, a igreja de todas as heresias", um tipo delas era inadmissível para os fascistas: a dessacralização da guerra. E quem a praticava apresentava feições nítidas, vermelhas. Os socialistas ojerizavam nas ruas e jornais os milhões de combatentes, sem se importarem com suas sequelas físicas e mentais. Aviltavam aqueles traidores da classe trabalhadora, por terem feito o jogo da burguesia, da indústria da guerra, do imperialismo. Pediam anistia para os desertores. As passeatas de operários, com mulheres e crianças à frente, perturbavam Mussolini. Seus gritos "antimilitaristas e antipatrióticos" permitiam "àquele homem mesquinho, autoritário, patriarcal e misógino pressagiar algo aterrorizante: um futuro sem ele". 

Ligas camponesas incendiadas, jornais empastelados, sindicatos vandalizados, tocaias. Ataques com cassetetes, facões na cintura, bombas em passeatas, revólver em punho. Assim eles, heróis respondiam ao pecado "bolchevique" - "inimigos da espécie humana". "Toda vida moderna é uma organização de massacres necessários. Se alguém se rebelasse para defender a vida, seria esmagado em nome dela. A civilização ocidental, assim como a guerra, se nutre de carniça", reflete o Duce.

O excelente desempenho nas eleições de 1919 permitiu ao PSI expandir seus domínios por governos locais e obter a maior bancada no Parlamento, ainda que sem maioria. A revolução socialista parecia uma questão de tempo. As bandeiras vermelhas e os gritos por Lênin se espalhavam por cidades e campos, que assistiam à maior onda de greves até então presenciadas no país. Ocupações de fábricas,  cidades paralisadas. O poderio dos sindicatos rurais na gestão de terras sufocava a "livre iniciativa" dos grandes fazendeiros, os quais ainda digeriam a incorporação de direitos sociais. A ala "maximalista" (revolucionária) do partido ganhava espaço sobre os reformistas.

O 'Biênio Vermelho" chegava ao auge. Cresciam casos de boicote e multas contra quem tentava escapar da mão de ferro com que várias ligas camponesas atuavam. Vinha junto a violência socialista: camponeses incendiavam paióis, mutilavam animais, surravam arrendatários, respondiam com tiros e pauladas a policiais e proprietários de terra. "Explosões de cólera ancestral, as costas chicoteadas que em um espasmo de desespero se erguem e agarram a chibata".

Para Mussolini, porém, o terreno da violência não era para os socialistas. "Aquela gente não entende de brutalidade". A sua gente, sim. Os  socialistas pagariam o preço do sucesso nas urnas: seriam impelidos a desencadear a esperada revolução, mas não agiriam por não terem "nenhuma capacidade revolucionaria".  O desdém fica claro na maneira como se refere ao líder do partido, Nicola Bombacci, o "Lênin da Romanha", seu amigo dos tempos de professor primário. Magro, gentil, dócil, venerado por camponeses e operários, não passava, para ele, de "uma fera inócua que pertence à espécie daqueles eternos doentes que enterram sadios". Organização e coragem? Não havia nenhuma. Os fatos narrados em boa parte das 800 páginas corroboram seus prognósticos.

No entanto, mesmo que reduzida ao que o próprio Mussolini considerava um "impulso", "episódios precários",  a violência socialista era uma realidade. Cabia jogar com ela e instrumentalizar o pânico - "essa parteira da História"  - da elite agrária e industrial. Deviam, portanto, abandonar de vez qualquer tentativa de laços com o proletariado, já abraçado em definitivo à causa do PSI e, por isso, não merecedor de "indulgência". Jogava na lata de lixo os pontos com vieses socialistas que chegara a esboçar no primeiro manifesto fascista. 

Precisavam, entretanto, de nitidez ideológica, e ela tinha que vir com uma guinada à direita. Não seriam, todavia, meros agentes passivos do capitalismo. Com ele, buscariam uma relação simbiótica, de interesses mútuos:  "O navio burguês não deve ser afundado. É indispensável subir a bordo e tomar o controle da sala das maquinas. Entrar nele e expulsar os elementos parasitários".  Necessitavam especialmente olhar para aqueles que não "trabalham  com o braço": "A pequena burguesia é ainda mais maltratada do que os operários", defendia Cesare Rossi, ex-sindicalista revolucionário, braço direito de Mussolini.  Não sendo "uma das duas grandes classes em luta", o fascismo deveria ser "a camada intermediária, o sofrimento profundo de uma crise psicológica de insegurança do pequeno-burguês enraivecido porque teme perder tudo sem ter ainda o bastante, do verdureiro que se sente preso entre a bigorna do capital e o martelo do comunismo", descreve Scurati.

Dentro das fronteiras, não existiria "mais vênetos, romanholos, toscanos, sicilianos, sardos, mas italianos, somente italianos". Fora delas, o expansionismo: "Não pode haver grandeza nacional se a própria nação não é sustentada por uma ideia de império" A Igreja Romana, com seu magistério milenar e universal, servia como inspiração. Relegava-se assim o antimonarquismo e o anticlericalismo, até então traços marcantes daquele ateu republicano. Gestava-se a concepção de um só povo, um líder, uma nação. Uma "raça" privilegiada.  

É preciso conquistar as massas. "Mas há também quem diga: a historia é feita pelos indivíduos, pelos heróis", discursa Mussolini: "A verdade está no meio. O que faz a massa quando lhe falta um interprete? [...] queremos educar as massas, mas quando erra, fustigá-la". Se a Itália estivesse cheia de doentes e loucos, a grandeza da nação seria uma ilusão. Os fascistas, portanto, deviam se preocupar com a saúde da "raça",  "o material com o qual queremos construir a história."

Os grandes proprietários de terra e a alta burguesia começam a financiar os "camisas negras". Jornais liberais passam a não vê-los mais como meros delinquentes. Novos perfis de fascistas se proliferam, inclusive organizações classistas: "As classe médias rebaixadas por causa da especulação bélica do grande capital, os oficiais que não se conformam em perder um comando para voltar a mediocridade da vida cotidiana, os burocratas de baixo escalão que, acima de qualquer coisa, se sentem insultado pelos sapatos novos da filha do camponês [...] Pessoas abaladas no mais intimo de seu âmago por um desejo irrefreável de submissão a um homem forte, e ao mesmo tempo, de domínio sobre os indefesos. Estão prontas para beijar os sapatos de qualquer novo patrão desde que também lhes seja possibilitado pisar em alguém".

Nesses parágrafos acima estão romanceados o que a academia  traduziu como a "inconcebibilidade do fascismo sem a entrada das massas no palco da história". Nas palavras de Barrington Moore em seu clássico As origens sociais da ditadura e da democracia, uma tentativa de tornar a reação e o conservadorismo "populares e plebeus", através da qual o conservadorismo perdia "a substancial liga que tinha com a liberdade".

Por praticamente todo o livro, respinga nos olhos do leitor o sangue jorrado pelas covardes emboscadas fascistas e batalhas campais contra camponeses, operários e demais militantes socialistas. Com frequência, o autor nos choca com a descrição de cenas de puro sadismo, justificado pela defesa dos " valores da pátria". Brutalidades gratuitas, como espancamentos seguidos de ingestão forçada de óleo de rícino, com a vítima sendo, depois, amarrada ao capô de um carro. Em alta velocidade pelas ruas, a humilhação se juntava à dor. Fezes e sangue misturados.

Se aqueles "autênticos representantes da nação sã, máscula, forte" idealizavam uma outrora Itália grandiosa, natural que evocassem símbolos da Roma Imperial, como a saudação romana - o braço direito esticado à frente, com a palma da mão estendida para baixo. Saudação oficializada anos depois, com a ditadura instaurada.

A violência dos “camisas negras” crescia em proporção à sua organização paramilitar e tamanho. Execuções que ignoravam a presença de filhos; sequestros; incêndios de vastos campos, ligas e sindicatos; despejos sob armas de cooperativas agrícolas; invasões de prefeituras socialistas. Por outro lado, nas cidades, ataques a bombas em ruas e prédios civis eram, verdade ou não, atribuídos a socialistas e anarquistas. Há meses, as "esquadras" agiam como braço auxiliar dos carabenieri (polícia). E vice-versa. A omissão, conivência e mesmo participação de membros das forças oficiais de segurança na pancadaria fascista escancaravam de que lado estavam. Prova do caráter burguês do Estado, diriam os marxistas. Pairavam no céu italiano as nuvens cada vez mais pesadas da guerra civil. 

No Il Popolo d´Itália, Mussolini escrevia: "Acusam-nos de levar a violência para a vida politica, somos violentos sempre que necessário [...] a nossa deve ser uma violência de massas, inspiradas em critérios e princípios ideias". Contudo, a "necessidade cirúrgica" contra o "terrorismo" não passava de retórica diante do que acontecia nas ruas e nos campos, onde a barbárie fascista saia de seu controle. O culto banal à violência de fato lhe preocupava, mas não por razões morais. Pragmático, considerava-a uma "ferramenta afiada" a ser usada como dissuasão nas - em público - execradas articulações políticas com a decadente "classe política". 

O liberal ex-primeiro-ministro Giolitti, a maior raposa política italiana, convida-o, em 1921, a integrar sua chapa parlamentar, um amplo arco de alianças que visava unir todos contra os socialistas. Nitti pretendia "conter a ilegalidade fascista, considerada um fenômeno passageiro, prendendo-a ao arco constitucional". Na cabeça de Mussolini, um contraplano: "suscitar a desordem para mostrar que só ele pode restabelecer a ordem". Para a indignação inicial das esquadras, prontamente contornada com sua persuasiva oratória, o momento exigia participar da carcomida disputa eleitoral e tornar o movimento um partido político. É por dentro do Estado liberal que ele o destruirá, mesmo que tenha que engolir "aquele plenário cinza nas coisas e nas pessoas" e  "aqueles burgueses nojentos que de dia se enfileiram resfolegantes, capengando, atrás do fascismo e, à noite, nos salões, contam para as senhoras, horrorizadas e empolgadas, sobre seus encontros com os fascistas, aqueles selvagens, antropófagos".

Apenas pouco mais de 40 fascistas são eleitos. Mussolini torna-se o mais votado da coligação em Milão e Bolonha; o terceiro em nível nacional. Contudo, Giolitti fracassa duplamente: não consegue a maioria absoluta necessária para comandar um governo estável e permite a legitimação política de quem pretendia conter. O fracasso da domesticação fica claro logo no primeiro discurso do líder dos “camisas negras” no Montecitorio: "Declaro que defenderei teses reacionárias. O meu discurso será antidemocrático e antissocialista. E quando digo antissocialista, quero dizer antigiolittiano". Os socialistas eram agora todos os que não fossem os seus. Contemporâneo novamente..."O mundo segue à direita, e não à esquerda, a historia do capitalismo está só começando", bradava no Parlamento, para aplausos entusiasmados de todos, menos do seu alvo vermelho preferencial. 

Com capítulos intercalados por trechos de artigos, cartas e documentos a partir dos quais Scurati romanceou seu texto, não faltam no livro exemplos do invejável faro político de Mussolini. Sagacidade que, entre surtos raivosos e moderação retórica, permitia-lhe atacar simultaneamente nos tabuleiros da guerra e da negociação política, manejando o caos estimulado por ele. A tática era a de sempre: "dosar, diluir, dilatar e, por fim, negociar em uma posição de força" - física, se necessário. Aqueles milhares de brutamontes fanáticos assombravam, coagiam a população e a classe política, a qual, entre vaidades, mesquinharias, cegueiras, interesses, covardia e cisões ideológicas internas, não conseguia consolidar governo algum. Primeiros-ministros caíam em poucos meses.

Chega enfim outubro de 1922. Os relatos de cada passo da "Marcha sobre Roma", planejado como pressão para forçar sua nomeação como chefe de governo, nos esmiúça os momentos do que se pode considerar um dos grandes factoides da História. Jogando dia-a-dia, hora a hora, com o dissenso da elite política e a hesitação do monarca a respeito da decretação de Estado de Sítio, Mussolini, em sincronia cuidadosa, utiliza-se da guerra de comunicação, arma aprendida com louvor no jornalismo, para mostrar ao Parlamento e ao monarca que apenas ele poderia estabilizar o país.

Mobilizados ao redor da capital italiana, os "camisas negras" entram nela apenas depois do convite real ao seu líder. Não fosse o impasse institucional, apesar de numerosos, não teriam sido páreo para o Exército italiano. O blefe dissuatório funcionara. Era imperioso um desfile marcial daqueles homens exaustos, famintos e encharcados de chuva para encerrar a primorosa peça de ficção épica. A Itália tinha um novo primeiro-ministro. Ao 39 anos, chegava ao poder "o homem da juventude contra a ‘velharia’ [...] o iniciador de uma era, o obstetra da história [...] o homem da violência que a aplacará, o homem da ferocidade que a amansará, o homem da luta que a fará cessar porque logo não haverá mais duas linhas de frente, apenas uma [...] o déspota genial capaz de subjulgar as massas [...] um povo deprimido pelo efeito de um drama interminável, enfadonho."

Três anos e meio antes, a fundação do primeiro fascio não reunira mais do que mil pessoas. No discurso inaugural de seu governo, Mussolini, sem rodeios, dava o tom de como dilaceraria moralmente o poder Legislativo: "Com 300 mil jovens impecavelmente armados, prontos e esperando quase misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos aqueles que difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer deste plenário surdo e cinza um acampamento exíguo". Pelo medo, chantagem e humilhação, ganha, em resposta, a delegação de plenos poderes para reformas administrativas e fiscais, com o voto de todos, menos os socialistas. Poucos meses depois, consegue aprovar nova e ardilosa legislação eleitoral, através da qual pavimentará maioria esmagadora em 1924.

Ao mesmo tempo em que, como chefe de um governo de coalizão, destina importantes pastas para partidos tradicionais, como a da Economia para os liberais, Mussolini reserva para si as do Interior e Relações Exteriores. E traz para dentro do Estado a violência paramilitar. Os "camisas negras" tornavam-se uma força oficial, sustentada pelo erário público e com estrutura mais centralizada. Passavam a se chamar Milizia per la Sicurezza Nazionale, dentro qual nascia sua polícia secreta, a Cheka, nome copiado da polícia política soviética.

"Não sou o déspota que se tranca em um castelo. Eu circulo em meio ao povo sem preocupações de nenhum tipo e o escuto [...] o povo italiano, até esse momento, não me pede liberdade. Outro dia, em Messina, a população que cercava meu automóvel não disse ´deem-nos liberdade`, disse ´tirem-nos dos barracos", gaba-se em pronunciamento no Parlamento, que, por mais dois anos funcionaria moribundamente, período no qual Mussolini continuou com seu modus operandi de alternar "normalização" com ameaças de uma "segunda onda revolucionária", tão desejada por seus milicianos.  

E essa onda chegou no primeiro momento em que se viu emparedado. O assassinato do socialista Giacomo Matteotti pela Cheka, após o deputado enumerar, em plenário, casos de fraudes e violência a opositores nas eleições, abre fissuras no governo e desperta a opinião pública contra os fascistas. Por muito pouco o crime não atinge Mussolini diretamente. Não havia mais o que esperar. Em um célebre discurso no Parlamento, trecho final do livro, o Duce deixa a mensagem subliminar sobre o que já sabemos pela História: em janeiro de 1925, a ditadura se instalava para valer, sem apetrechos institucionais. O "cadáver da democracia liberal" estava "arrumado entre a poeira e os ácaros do sofá há tanto tempo que ninguém mais nota". Era hora de enterrar.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Scurati revela que o segundo volume da trilogia terá o título M, O Homem da Providência, expressão criada por clérigos ao passarem a propagar Mussolini como enviado pela Providência divina. Abordará os acontecimentos até meados dos anos 30, entre eles, a assinatura do Tratado de Latrão, pelo qual o ditador reconhecia o Vaticano como Estado independente. A aproximação com a Igreja culminará com o simbolismo do casamento religioso daquele ateu com sua esposa, também ateia, Rachelle, juntos desde 1915.

O terceiro volume narrará a criação de leis raciais semelhantes às do nazismo e a derrocada na Segunda Guerra Mundial. Uma trilogia que nos traz reflexões, a partir das do próprio mentor acerca da brutalidade de seus militantes: "Onde estavam enfurnadas ate ontem? Não é possível que tenha sido ele a dar a vida a essas multidões de acomodados que de súbito erguem a clava [...] Na guerra eles não nasceram, a guerra apenas os devolveu a si mesmos, os transformou naquilo que já eram. O fascismo talvez não seja o hospedeiro desse vírus que se propaga, mas o hóspede".

Fica a dica para os tempos atuais. Atentem-se às semelhanças do que fomentou o fascismo, a visão de nação e retórica de seu Duce com certos líderes populistas de hoje e seus discípulos. Semelhanças com quem se permitiu até renegar o século que lhe deu vida e, assim como seus conterrâneos ancestrais Júlio César e Gregório, sonhar impor suas próprias convenções temporais. Megalomania espelhada em um diálogo com seu braço direito sobre o significado da sigla "Ano II - E.F.", escrita por ele em duas fotos autografadas para duas fãs, em 1923:
 - O que está fazendo, Benito?, pergunta surpreso Rossi.
 - Ano dois, Era Fascista. É preciso começar a demarcar o tempo.

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio)

Nenhum comentário:

Postar um comentário