domingo, 13 de dezembro de 2020

A mais humana poesia de Neruda

 Por Murillo Victorazzo*

"Que a crítica apague toda a minha poesia, se achar por bem. Mas este poema, que hoje recordo, ninguém poderá apagar." O poema em questão não é um dos tantos eternizados com as palavras por Pablo Neruda, mas sim como ele, um dos principais nomes da literatura latino-americana, considerou, em entrevista, sua façanha mais brilhante: conseguir embarcar, em 1939, milhares de refugiados espanhóis em direção ao Chile.

Naquele ano, um gigantesco corredor humano de cerca de 500 mil pessoas haviam fugido para a França enfrentando a neve, o medo e a fome, enquanto outros tantos encaravam os desconhecidos perigos do alto dos Pirineus, por onde imaginavam haver menos policiamento. Buscavam todos escapar das execuções, cadeias e torturas a que estavam fadados após a derrota dos republicanos (os partidários do governo democraticamente eleito composto por socialistas e liberais) para as tropas do general Francisco Franco.

Com saldo estimado em aproximadamente meio milhão de mortos, a Guerra Civil Espanhola rachou violentamente o país por três anos e resultou em uma longa e feroz ditadura de cunho fascista católico. Um regime sanguinário que, entre prisões, desaparecimentos e assassinatos, sufocou direitos, culturas, autonomias regionais e vigorou até a morte do “Generalíssimo” (como Franco era conhecido), em 1975.

A missão de Neruda só foi possível após ele convencer o governo de seu país, que temia a reação da direita conservadora local, avessa àquela "gente ruim", os "vermelhos" ateus, "violadores de freiras". Após organizar, com ajuda de entidades e simpatizantes uruguaios e argentinos, o financiamento do Winnipeg, antigo cargueiro cuja capacidade para cem pessoas foi ampliada a fim de suportar dois mil exilados, coube ainda ao poeta definir quais seriam as famílias escolhidas. Famílias que, além de terem enfrentado as dores e os perigos da “Retirada" (o êxodo), encontravam-se sob as condições subumanas dos campos de refugiados das praias do sul francês. Morrer de frio lá não era força de expressão.

A ordem do presidente centro-esquerdista Aguirre Cerda havia sido selecionar apenas trabalhadores braçais (camponeses e operários), necessários como mão de obra para um país recentemente vítima de forte terremoto. Por não querer importar conflitos políticos alheios, intelectuais, profissionais liberais e jornalistas, com suas retóricas politizadas, deveriam ser vetados. Neruda, contudo, não segue fielmente o rito, e, entre outros, aceita o embarque do engenheiro e jornalista Victor Pey, privilegiado por receber a chance de recomeçar a vida longe de um continente que, além de tudo, via-se à beira de outra guerra mundial.

Amigo de Isabel Allende, Pey, durante vários anos, contou à premiada escritora detalhes daquela epopeia transatlântica. Memórias a partir das quais ela escreveu "Longa pétala de mar", romance lançado em 2019 e cujo título foi retirado de um verso de Neruda no qual ele se refere a seu país como uma "longa pétala de mar, vinho e neve".

Morto aos 103 anos, semanas antes de a amiga enviar-lhe os manuscritos do livro a ele dedicado, Pey serviu de inspiração para Victor Dalmau, o idealista, sisudo e caridoso médico catalão protagonista da trama. Uma obra que nos prende, seja emocionado, indignado ou sorrindo, graças, em muito, à tradicional sensibilidade da autora na escolha das palavras. Não faltam descrições detalhadas de ambientes tão diversos - de casarões luxuosos a sangrentos campos de batalha, tampouco, e às vezes sutilmente irônicas, de trejeitos e personalidade dos personagens. 

O livro é repleto de diálogos divertidos, tensos, tristes e reflexivos. "Pátria é onde estão nossos mortos", ensina Carmen ao filho Victor. Dentre eles, alguns servem para, sem didatismo entediante, explicar ou confrontar correntes políticas e os panoramas socioeconômicos dos países em questão. Seja na Catalunha, França, Chile ou mesmo Venezuela, o ambiente político é explorado como fio condutor para narrar os dramas, dilemas, casos de amor e interesses dos personagens. Um roteiro em potencial, pronto para ser adaptado às telas. 

Preconceitos, culturas, costumes e conflitos inerentes à sociedade espanhola e em especial à chilena dos períodos retratados, assim como a geografia desses países, moldam, entre encontros e desencontros, o longo passar dos anos dos Dalmau e dos ricos conservadores Del Solar, famílias tão diferentes cujas vidas se entrelaçam. 

Isabel se utiliza tanto do lirismo como da objetividade para narrar a progressiva cisão política de seu país durante as décadas de 60 e 70 - um Chile dividido "em bandos irreconciliáveis", onde "amigos brigam, há famílias divididas ao meio e já não se consegue falar com ninguém que não pense como a gente". Qualquer semelhança... 

Quando, no dia 11 de setembro de 1973, eclode o virulento golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, quartelada que leva à morte o amigo e presidente socialista Salvador Allende (primo-irmão do pai de Isabel), Victor se encontra novamente perante rajadas de metralhadoras, voos rasantes de aviões e helicópteros, soldados armados de caras pintadas, execuções, tortura e prisões. Assiste a outro governo legitimamente eleito pelo voto popular sucumbir à reacionaria armada. Desta vez, porém, sem quase nenhuma resistência.

Ao ver, ao fundo, as chamas do palácio presidencial de La Moneda, bombardeado por caças do próprio país - um dos episódios mais sórdidos da História, traumas que pensara terem ficado na penumbra da memória vêm à tona. Dois anos antes da morte de Franco, irá, outra vez, encontrar-se diante do caos de um hospital superlotado pela violência política. Usando seus conhecimentos aprendidos na luta contra o fascismo, tentará novamente salvar vidas ameaçadas por mais um conflito fratricida.

Outra cruel ditadura se iniciava. Com ela, partia “a ilusão de controlar alguma coisa em sua existência". De perto a morte voltava a rondá-lo, se não pelo sadismo e ódio em nome dos falaciosos "valores da pátria e da família", pela exaustão e desesperança. Um contexto que o colocará diante de novo exílio, fruto de embate ideológico semelhante ao vivido 34 anos antes do outro lado do Atlântico.

"A realidade tinha ficado escorregadia, vivia-se entre omissões, mentiras e eufemismos, numa grotesca exaltação benemérita da pátria, dos valentes soldados e da moral tradicional [...] onde estavam antes os torturadores e delatores que não eram vistos? Surgiram espontaneamente em poucas horas, preparados e organizados como se tivessem treinado durante anos. O Chile profundo dos fascistas sempre ali estivera, debaixo da superfície pronto para emergir", pensa consigo próprio em um dos trechos mais emblemáticos do livro, necessário paralelo para os dias de hoje, inclusive no Brasil.

Além do apaixonante tema, o segredo do sucesso do livro é sua linguagem rica embora simples e direta, o que nos evidencia como são dispensáveis exageros estilísticos ou vocabulário demasiadamente rebuscado para firmar uma escrita encantadora.

Refugiados, socialismo, fascismo, democracia, ditadura, idealismo e pragmatismo. Uma linda aula de História de 275 páginas permeadas de sucessos e insucessos familiares, políticos e profissionais. Um romance tão delicado, apesar de intenso e dolorido, que faz por merecer ter na abertura de cada capítulo trechos de poesias de Neruda. Afinal, como ensina Roser Bruguera, a estoica esposa, colega, confidente e companheira de saga de Victor Dalmau, "a dor é inevitável; o sofrimento é opcional".

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade ( Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais ( FGV-Rio)

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