quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Mónica Hirst: “ O sistema interamericano é uma degradação do que foi; está mais ideologizado do que durante a Guerra Fria”

 Por Mariano Turzi ( Clárin, 20/11/2021)

Monica Hirst reflete em sua própria pessoa sua área profissional. Americana de nascimento, brasileira de coração e argentina por adoção, sua experiência e treinamento vão da América do Sul aos Estados Unidos. Historiadora e doutora em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é um dos principais nomes a serem ouvidos quando o assunto são as relações entre os países do continente americano.

Foi professora em faculdades do Rio de Janeiro, São Paulo e nas universidades de Standford e Harvad, além de consultora independente para o PNUD, Fundação Ford, Corporação Andina de Fomento (CAF) e os ministérios das Relações Exteriores de Argentina, Colômbia e Brasil. Atualmente integra o grupo “Paz y Dialogo" que opera no "Nueva Sociedad, projeto da Fundação Friedrich Ebert (FES), instituição ligada ao partido social-democrata alemão (SPD), com escritórios em diversos países latino-americano. Hirst compartilhou com Clarín sua visão sobre o estado atual do regionalismo latino-americano.

Clárin - O que resta do "regionalismo anárquico" latino-americano, um conceito que você cunhou anos atrás para caracterizar a política da região?

Mônica Hirst - Pensei nesse rótulo na época para criar uma imagem: já estávamos vendo tendências dispersivas e fragmentantes, problemas intrarregionais, fortes diferenças políticas. As questões básicas foram a baixa institucionalidade e o vácuo de liderança após as expectativas não correspondidas do Brasil, após o primeiro governo do PT. Venezuela formando um grupo ideologicamente fechado em torno de ALBA, Chile sem uma identidade regional clara, Colômbia com um processo de paz virtuoso, mas incapaz de ser traduzido em um projeto regional.

Clárin - E o que mudou?

Hirst - O regionalismo ainda estava na ordem do dia. A Unasul ainda existia. Com problemas e tendências fragmentantes, mas não era tão disfuncional como hoje. Hoje está em ruínas. Nosso regionalismo está em um parêntese, um momento onde as forças menos construtivas e mais malignas emergem. E há uma malignidade relacionada a este momento do nosso regionalismo.

Clárin - O que é essa malignidade?

Hirst - Há um conjunto de explicações convergentes que articulam um processo. Em primeiro lugar, há a projeção para a região da polarização político-ideológica das esferas internas em cada um dos países. Isso tinha a Venezuela como epicentro, mas não só. Assim, a capacidade de diálogo político regional foi paralisada e contaminada. Gestos contundentes como a retirada de adesões da Unasul inviabilizaram a própria a instituição. A evolução do Brasil é outra causa. Quando um país de peso, tamanho e projeção do Brasil na América Latina nega a importância da relação com seus vizinhos, isso inevitavelmente tem um impacto e ocorre um vácuo.

Clárin - O que acontece no Brasil?

Hirst - Historicamente, o Brasil sempre foi um ator relutante do ponto de vista do seu regionalismo latino-americano ou sul-americano. Mudou para uma maior presença, responsabilidades e até mesmo liderança semicompartilhada, com a criação do CELAC, Unasul, a articulação militar entre as Forças Armadas, por exemplo, nas operações de paz no Haiti. Esse movimento interno no Brasil que permitia a construção regional proativa foi desmantelado.

Clárin - A crise do regionalismo é vista em outros casos?

Hirst - Na Venezuela, fica claro que há uma crise do processo democrático dentro da institucionalidade. E a presença de atores de alta política internacional como a Rússia, os Estados Unidos e a China torna necessário um tipo de negociação política para a qual a região não está coordenada ou preparada.

Clárin - Como Washington vê a região?

Hirst - Os Estados Unidos não gostam do regionalismo latino-americano. Da negligência do período Obama fomos aos maus tratos do período Trump. Seja ele democrata ou republicano, o regionalismo latino-americano sempre incomodou politicamente o país. Biden simplesmente ignora nossa existência como ator internacional ou espaço relevante para seus interesses.

Clárin - Por quê?

Hirst - Porque, em sua própria projeção global, o regionalismo não tem lugar. Nunca foi visto como um pilar da hegemonia americana. Sempre a percepção era de que era dispensável, não há sequer funcionalidade ou senso instrumental. Há uma leitura permanente desde a Guerra Fria: o regionalismo gera maiores riscos de perda de controle por ser autonomista. É uma lógica de soma zero: mais regionalismo latino-americano, menos possibilidade de ação em nossa região.

Clárin - Isto explica explica as diferenças dentro da OEA?

Hirst - O sistema interamericano era uma ideia com que Washington sempre jogou. Com a revolução cubana, ele teve seu momento de glória. A presença política, econômica (do BID) e militar (o TIAR), com a OEA como espaço para disciplina político-diplomática. Mas o sistema interamericano de hoje é uma degradação do que era.

Hoje é um palhaçada, um desrespeito institucionalizado, uma humilhação. É mais ideologizado do que durante a Guerra Fria. Somado à nossa própria polarização, enfraquece nossa vida democrática. Não como na época dos golpes militares nos anos 60 e 70. Não é nem uma fonte positiva para a recuperação do diálogo ou liderança americano.

Clárin - Como entra, neste contexto, o ocorrido na Nicarágua esta semana e sua guinada autoritária?

Hirst - A experiência da Nicarágua foi transformada em um projeto de poder que se apropriou de uma narrativa, mas reproduz um processo autoritário que prolonga a permanência no poder sem qualquer legitimidade e invalida as normas de direitos humanos. Ao mesmo tempo, é o primeiro caso em que os EUA e a UE trabalham juntos na região em defesa dos ideais liberais, de alguma forma repensando a Doutrina Monroe.

Clárin - E como a presença da China afeta o cenário regional?

Hirst - É mais funcional para a China do que para a América Latina. A China aparece e se expande em um momento de parênteses do regionalismo. É por isso que pode avançar bilateralmente com total liberdade, com especificidade de seus interesses e com compromissos menores (reciprocidades, construção de diálogo coordenado). A China é pragmática, não está projetando seu modelo político em todo o mundo, então compará-la com a URSS parece errado para mim.

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