segunda-feira, 28 de março de 2022

Não é uma guerra qualquer

Por Murillo Victorazzo*

"Não somos seus órfãos. Vocês eram os estupradores e levarão um chute no saco se tentarem novamente". Pelo linguajar, poderia ser apenas mais uma troca de xingamentos comum nas redes sociais. Tratava-se, porém, de um acadêmico polonês com cargo na burocracia da União Europeia respondendo a um comentário do chanceler russo. "A OTAN busca tomar os territórios que ficaram órfãos com o fim da União Soviética", tuitara Sergey Lavrov. Em tons semelhantes, comentários de terceiros ajudaram a dar mostras de como andam os ânimos entre poloneses e russos.

A Guerra na Ucrânia reavivou ressentimentos que pareciam pelo menos represados. Não é por acaso que países do leste europeu são os mais enfáticos na resposta a Putin. Emblemática foi a viagem de trem dos chefes de governo polonês, tcheco e esloveno a uma Kiev sob bombardeio russo semana passada, a fim de demonstrar "apoio inequívoco da União Europeia à liberdade e independência da Ucrânia". Tampouco é sem razão a Polônia portar-se como o país da OTAN a defender ajuda militar mais robusta a Kiev. Varsóvia insiste em doar caças ao vizinho e criar uma perigosa zona de exclusão aérea, linha tênue para o embate direto entre a aliança transatlântica e Moscou.

Se não foi uma república soviética, grande parte do território polonês foi subjugado pelo Império russo durante quase um século e, na era comunista, o país resumiu-se a um dos tantos Estados fantoches atrás da totalitária Cortina de Ferro. Faz quase 80 anos que Moscou, nos momentos finais da Segunda Guerra, aproveitou a marcha vitoriosa rumo a Alemanha para empurrar geograficamente o país para o oeste. Através deportações, assassinatos e prisões, redesenhou as fronteiras polonesas, com o intuito de expandir o gigantesco Estado soviético. A mesma Polônia que, seis anos antes, fora o alvo principal do Pacto Molotov-Ribbentrop, a partir do qual Hitler e Stalin decidiram dividi-la como lhes convinha e iniciaram a dupla ocupação militar.

As vítimas da guerra de hoje são civis ucranianos e militares de ambos os lados, mas as seríssimas repercussões vão muito além daquelas fronteiras. Talvez nem fosse preciso repetir o potencial destruidor de um conflito que abarque diretamente Rússia e a aliança transatlântica. Envolveria diretamente quatro das cinco potências nucleares (quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU) e duas das três forças armadas mais poderosas do mundo. Na última quinta-feira, o porta-voz do Kremlin reafirmou o direito de usar armas nucleares se for provocado pela OTAN e considerar ameaçada sua "existência". Embora a retórica venha tons acima da prática, uma sinal do singular perfil desestabilizador do atual cenário internacional.

Falar do petróleo é lugar comum. São notórios o peso da Rússia, terceiro maior produtor, e as consequências da guerra no mercado internacional da estratégica commodity. No entanto, outros insumos essenciais também sofreram relevantes impactos. Sendo, por exemplo, o segundo maior produtor de potássio do mundo, as restrições impostas ao país já alteraram a oferta de fertilizantes. De forma semelhante, estando a Ucrânia entre os oito principais produtores de trigo, a devastação militar de seu território afetou o preço do produto. As repercussões na inflação de alimentos dos países mais pobres e a consequente piora da fome na África e outras regiões mais carente já motivam estudos da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).

O que se vê hoje é uma guerra econômica, com sanções de dimensões nunca antes aplicadas, cujos efeitos colaterais podem alcançar não apenas quem as aplicou como países alheios ao embate, da interdependência dos sistemas econômico e financeiro internacionais. Após Putin, em represália, anunciar a exigência de pagamento em rublos para manter os contratos de fornecimento de gás, a Alemanha, prevenindo-se de eventuais cortes, anunciou, nesta quarta-feira, dia 30, um plano de emergência contra racionamento. Metade dos domicílios alemães dependem do gás russo. Segundo a Acnur (a agência da ONU para refugiados), mais de três milhões pessoas emigraram da Ucrânia em um mês e perto de 6,5 milhões tiveram que se deslocar internamente. É a maior crise humanitária na Europa desde a Segunda Guerra.

Realinhamentos estratégicos se iniciaram. Os Estados Unidos piscaram o olho para Venezuela por petróleo, no que pode ser o inicio de diálogo com o regime de Maduro, aliado de Putin. Embora condenando a invasão, a Arabia Saudita, além de negar o pedido da tradicional aliada Casa Branca para aumentar a produção do combustível, vetou a expulsão da Rússia da Opep+, clube que reúne a Opep e outros grandes produtores. O tíbio apoio saudita aos Estados Unidos evidencia as transformações no Oriente Médio, iniciadas após a decisão norte-americana, ainda no governo Obama, de priorizar Rússia e China como agenda de política externa. O vácuo levou os sauditas e outros países árabes a reforçarem parcerias com Pequim e Moscou.

A diminuição do apoio norte-americano à guerra no Iêmen e as críticas de Joe Biden, durante a campanha eleitoral de 2020, ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, acusado da morte de um jornalista, ajudaram a esfriar ainda mais a confiança da monarquia wahabista na Casa Branca. Riad, semana passada, reafirmou as negociações com Pequim para o lançamento de contratos de petróleo remunerados em yuan. Mais de 25% do petróleo saudita é exportado para a China, o que leva alguns especialistas tomarem a possível iniciativa como um ataque ao status do dólar como moeda de reserva mundial. Fundos de pensão russo investem na petrolífera estatal saudita.

A Rússia é hoje grande exportadora de armas e equipamentos bélicos para Egito, Turquia e Síria. Usinas nucleares foram construídas (ou estão sendo) nos dois primeiros países em parcerias com Moscou. A ditadura de Bashar al-Assad saiu do corner graças a vigorosa intervenção militar do Kremlin a seu favor na sangrenta guerra civil síria. Israel, com profundos laços culturais com os russos ao mesmo tempo que depende da visceral relação com os Estados Unidos, mostra-se hesitante, receoso das consequência de um forçoso rompimento com Putin na balança de poder regional.

Tel Aviv precisa do presidente russo nas suas relações com Damasco e nas discussões sobre o reestabelecimento do acordo nuclear iraniano de 2015, rasgado por Trump em 2019. A Rússia é integrante, ao lado de França, Reino Unido, China, Alemanha, do grupo que tenta trazer Washington e Teerã de volta à mesa de negociações. São por essas razões que o país é considerado atualmente a única potência com trânsito livre em todo o Oriente Médio.

A China, embora parceira do Kremlin, prefere a discrição das abstenções, certa de que é quem mais tem a ganhar com a guerra. Jogando parada, não concorda com as sanções, mas vê uma economicamente enfraquecida Rússia caindo em seu colo. Em caminho oposto, o apoio japonês a todas as decisões ocidentais levou Moscou a paralisar as negociações para um acordo de paz definitivo entre os dois países relativo ainda à Segunda Guerra Mundial. Até hoje não há um tratado formal. Em jogo, o controle de quatro ilhas ao norte do território japonês, ocupadas pelos russos desde 1945. Se não havia seguido Washington nas sanções aplicadas após a anexação da Crimeia, em 2014, Tóquio, que tem disputa territorial também com a China, viu-se obrigado a enfatizar seu apoio ao principal aliado, com quem tem vital tratado de segurança.

A de certa forma vitoriosa persuasão nuclear russa, dada a prudência ocidental no apoio à Ucrânia, evitando ao máximo o embate direto, tem potencial para desestabilizar o regime de não-proliferação nuclear. Kim Jong Un certamente se sentirá estimulado a reforçar o programa norte-coreano. A teocracia iraniana pode seguir o caminho, aproveitando-se, quem sabe, de melhor posição para barganha nas negociações do acordo nuclear, diante de europeus e norte-americanos carentes de petróleo. A Alemanha voltou a praticar uma politica de defesa ativa, com envio de armas para o exterior e decisão de dobrar o orçamento militar, deixando para trás o pacifismo decorrente das marcas do nazismo. Nem mesmo um Ministério das Relações Exteriores sob comando dos Verdes foi capaz de evitar a quebra de simbólico paradigma.

A OTAN, passou de "morte cerebral", como resumiu o presidente francês, Emmanuel Macron dois anos atrás, a uma aliança mais coesa, melhor financiada e atraente para novos membros. Suécia e Finlândia logo tornaram-se alvos de ameaças de represálias explícitas por parte de Kremlin assim que indicaram, semanas atrás, voltar a debater em seus Parlamentos a adesão à aliança. Matéria do Financial Times do dia 29 mostrou como o governo finlandês se prepara para entrar em um possível "modo de crise": "kits de sobrevivência" espalhados por diversas localizações do país, reservas de seis meses de grãos e combustíveis, farmacêuticas obrigadas a estocar medicamentos importados, em um país onde um terço da população é reservista, prédios precisam por lei ter abrigos antibombas e cuja capital Helsinque é repleta de túneis subterrâneos. São quase 1,5 mil quilômetros de fronteiras com a Rússia.

Alexander Dugin é um cientista político ideólogo do "eurasianismo", uma concepção de ordem multipolar crítica à hegemonia norte-americana e que "preconiza a integração, na base da civilização comum", do território do antigo império russo ou da União Soviética". Influente nos meios militares russos onde deu aulas na década de 90, é hoje, se não seu "guru", como equivocadamente é rotulado por muitos, um declarado entusiasta de Putin por ver nele seus ideais.

De certa forma, Lavrov, em seu tuíte, foi ao encontro do que Dugin afirmou à Folha de São Paulo logo após a anexação da Crimeia. Para o intelectual russo, os Estados que se separaram após a desintegração soviética, em 1991, "nunca existiram como Estados e representam apenas distritos administrativos sem nenhum significado histórico ou político dentro do Império russo ou da União Soviética”. Putin já declarou considerar o colapso soviético, independente da crítica ao comunismo, "a maior catástrofe geopolítica do século 20". “Foi a desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética", afirmou.

Dugin é admirador de Halford Mackinder, geógrafo britânico que se notabilizou nos estudos da geopolítica no início do século passado por desenvolver a Teoria do Heartland. Para Mackinder, ao contrário do que o consenso da época dizia, não era mais o controle dos mares que conduzia países a hegemonias. Em decorrência de avanços tecnológicos na indústria bélica e de base, a supremacia do poder naval terminara. Ferrovias e o motor à combustão permitiam a integração, deslocamento e ocupação física de grande massas continentais.

Sob essa ótica, Mackinder acreditava que a Rússia, por seu gigantesco território contínuo, rico em recursos minerais e terras aráveis, seria o "pivô geográfico" do planeta, dada sua destacada posição na "Ilha-Mundo", os territórios localizados na Europa, Ásia e Africa, onde se concentram cerca de três quartos das terras emersas (Estados povoados). A porção central da Eurásia, portanto, seria o "coração da Terra - o Heartland, inacessível pelo mar e vulnerável apenas por ataques terrestres vindo do leste europeu. "Quem domina o leste da Europa, domina o Heartland. Quem domina o Heartland, reina na 'Ilha-Mundo'. Quem domina a 'Ilha-Mundo' governa o mundo inteiro", concluiu.

Mackinder, por isso, temia uma aliança da Rússia com a Alemanha, à época bem mais industrializada. As características complementares das duas economias permitiriam a constituição de uma poderosa indústria bélica e invencíveis forças armadas, tornando o Heartland inexpugnável ao poderio naval britânico. A aliança nunca aconteceu, mas foi com o geógrafo britânico em mente que Karl Haushofer deu aulas de geopolítica para Hitler na prisão, após a tentativa de golpe de 1923. O Pacto Molotov-Ribbentrop e o seu posterior rompimento pelos alemães, dando início à invasão da União Soviética, encontravam base teórica em Mackinder. Vinha daí a inspiração para o Generalplan Ost do ditador nazista, que previa transformar a parte ocidental do território soviético em colônia agrícola e energética, com assentamento de alemães espalhados por ele.

Sob mesma influência, os Estados Unidos, com o advento da Guerra Fria, reformularam sua estratégia diplomática e militar. George Kennan, o diplomata norte-americano ideólogo da Containment no final da década de 40, embora não fosse entusiasta de determinismos geográficos, via espelhada sua política na Teoria do Rimland, de John Spykman. Rimland são as regiões costeiras e bordas eurasiáticas. Em complemento, mas com conclusão diferente da de Mackinder, Spykman defendia que seria quem dominasse tais áreas os hegemônicos no planeta, por serem elas vitais na contensão dos que possuem o Heartland.

Na avaliação de Spykman, os Estados Unidos detinham poderio econômico inigualável e privilegiada posição geográfica, sem vizinhos hostis e cercado por dois gigantescos oceanos, o que inibia ataques diretos a seu território. No entanto, fazia-se necessária uma política externa intervencionista no Rimland, para assim bloquear o expansionismo soviético sobre a Eurásia. Através do desenvolvimento do poder aeronaval e de bases ao redor do leste europeu, na Alemanha, Itália, Turquia, Coreia do Sul e Japão, Washington, a partir de uma concepção geopolítica, cercou o inimigo ideológico.

Em seu livro "Fundamentos da Geopolítica”, lançado em 1997, Dugin deixa claro por que, para ele, a ideia de uma civilização da “Grande Rússia”, que abrange ucranianos e bielorrussos e cujo berço foi Kiev, encontra eco na teoria de Mackinder: "Em geopolítica, há dois polos absolutos de poder. O poder naval, que pertence ao Ocidente, e o poder terrestre, que é a Rússia. Há uma briga para controlar o Heartland". Em 2011, Putin propôs a formação da União Econômica da Eurásia, logo assinada por Rússia, Bielorrússia e Casaquistão. A deposição do aliado Victor Yanukóvich na Ucrânia e a guerra civil que se sucedeu no leste do país, em meio a discussões sobre a entrada na União Europeia, embarreiraram a ampliação do bloco. O que veio depois já muito se sabe.

A polêmica expansão para o leste da OTAN foi mais do que debatida nos últimos meses. Também os riscos de "afeganistização" de uma Ucrânia com territórios perdidos, armas poderosas nas mãos de civis e a previsão de queda de 35 % do PIB. Putin deve conseguir garantias de que o vizinho não entrará para a aliança ocidental, mas a instabilidade regional pode até piorar a médio-prazo. A mobilização da OTAN no leste europeu não cessou. Ao contrário, aumentou. Pesam também incertezas sobre como o aparente recrudescimento de seu regime se refletirá nas relações com a vizinhança e na atuação em organismos internacionais. Não se descarta, por outro lado, seu enfraquecimento, à medida que a situação econômica do país piore. A instabilidade política em um país como a Rússia sempre traz preocupações e consequências além de suas fronteiras.

A guerra na Ucrânia marca o retorno da insegurança à Europa, sensação que parecia ter ficado nas páginas de História desde a ampliação do bloco europeu, cuja concepção fora justamente a integração como fórmula para a paz. Disputas territoriais sempre dão calafrios em Estados, pois podem abrir precedentes. Países com problemas semelhantes costumam ser bastante cuidadosos em suas reações políticas, pois elas podem se voltar contra eles no futuro. É uma das razões do posicionamento sutil da China em relação a quem, dias antes da invasão, declarou ter um "parceria sem limites". Os delicados imbróglios acerca de Taiwan e Tibet exigem, ao mesmo tempo, a tradicional defesa da integridade territorial e a cautela para aferir a reação da comunidade internacional, tendo em vista uma hipotética incursão militar sua à "ilha rebelde".

A geopolítica é apenas uma lente de se ver as relações internacionais. Céticas quanto ao determinismo geográfico, outras correntes de estudos, sejam de cunho institucional, econômico ou político, complementam-na ou se chocam com ela. A Napoleão, por exemplo, são atribuídas duas frases que retratam as nuances: "A política de um país está em sua geografia" e "Eu, eu mesmo faço as circunstâncias". Questões geopolíticas podem instrumentalizar ou ser instrumentalizadas por visões ideológicas, como a Containment de Kennan, e étnico-culturais, no caso do Eurasianismo de Dugin e Putin.

Não se pode negar, porém, os indícios de contemporaneidade de Mackinder, ainda mais se levarmos em conta que na "Ilha-Mundo" situa-se a China, com a parte noroeste de seu território incluída por neomackinderianos no Heartland. Vizinha da Rússia ao nordeste, uma potência em ascensão ainda mais poderosa economicamente que, em uma década, elevou em quase 80% seu investimento em defesa. Diferente da hoje parceira, uma potência “anfíbia”, nas palavras de estudiosos militares, por ser dona de crescente poderio terrestre e aeronaval.

É justamente no Mar da China Meridional que se encontram os mais perigosos pontos de atritos geopolíticos e militares com o Washington e seus aliados asiáticos. Ano passado, os norte-americanos deram largada para sua nova, e por hora suavizada, versão da Containment. Desta vez, nas franjas marítimas chinesas. O Aukus, pacto militar entre Austrália (Au), Reino Unido (Uk) e Estados Unidos (Us) permitirá aos australianos a construção de submarinos nucleares com tecnologia norte-americana, além de acordos em áreas como inteligência artificial, tecnologia quântica e cibersegurança. Nas palavras oficiais, uma medida para "promover a segurança e a prosperidade na região do Indo-Pacífico".

Poucos anos antes, saiu do esquecimento o Quad (Diálogo de Segurança Quadrilateral), fórum que reúne Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália. Seus membros afirmam não ser uma organização de segurança regional e sim uma "reunião informal das principais democracias do Indo-Pacífico". No entanto, além de reuniões entre os quatro chefes de governo, exercícios militares conjunto já foram realizados, o último, em 2020, na Baía de Bengala, nordeste do Oceano Índico. Na declaração do último encontro, os líderes alertaram contra “qualquer tentativa de mudar o status quo [nas águas] do Mar do Sul da China e do Mar do Leste da China”, uma resposta ao sinais de projeção militar chinesa em ilhas reivindicadas por Pequim e construções de outras artificiais.

Os olhos de Mackinder estariam certamente arregalados com a "Nova Rota da Seda", ambicioso megaprojeto de infraestrutura chinês que prevê financiamentos para a construção de ferrovias, usinas, gasodutos, entre outras obras, em países asiáticos, europeus e africanos, permitindo a criação de uma grande malha integrada sob a influência de Pequim. As relações entre China e Rússia são as melhores desde um breve período com Stalin e Mao, mas há, como sempre houve, uma potencial rivalidade. Seja cooptando um isolado Kremlin ou por eventuais choques futuros entre eles, a disputa pelo liderança da Eurásia continuará sendo balizadora das relações internacionais.

O que está em jogo não é "apenas" mais uma guerra, é a disputa pela legitimidade de alterar a ordem internacional. Ao contrário do que gritam certos militantes, sempre presos a seus chavões ideológicos, as atenções da mídia não estão voltadas para Ucrânia porque as “vítimas são brancas" - o que é diferente de constatar o racismo enfrentado por refugiados e comparar ao modo com que parcelas da população europeia receberam recentemente africanos e muçulmanos. Todas as mortes são lamentáveis; todas as guerras são condenáveis. Sim, há conflitos na Palestina e Iémen, há guerras civis na África. Mas as implicações da guerra ucraniana alcançam perigosamente outra dimensão a curto, médio e longo-prazo. Um acordo de paz pode até ser assinado amanhã, mas ela não terá terminado. Esta é a razão.

Através da imprensa ocidental, o mundo tomou conhecimento de crianças vietnamitas queimadas por bombas napalm jogadas por norte-americanos. Milhões reuniram-se em passeatas no Ocidente pedindo o fim de uma traumática guerra que tensionou socialmente os Estados Unidos. A pressão funcionou. A ilegal Guerra do Iraque, perpetrada unilateralmente por Washington a partir de mentiras, foi condenada pela opinião pública internacional graças a uma extensa cobertura televisiva. Quantos milhões de cartazes contra George W. Bush vimos, pelas TV e jornais, em ruas europeias e norte-americanas. Causou comoção as fotos de prisioneiros iraquianos torturados e humilhados por militares norte-americanos. Se Bush conseguiu ser reeleito, grande parcela do eleitorado do país se mobilizou contra aquela invasão. A encruzilhada em que ela se transformou fragilizou seu segundo mandato, ajudando-lhe a sair pelas portas dos fundos da Casa Branca no inicio de 2009.

Se não era obviamente seu objetivo, convém a Putin o quadro atual de “guerra de fricção”, na qual nenhum lado tem força para avançar, mas tampouco consegue fazer o inimigo recuar. Assim como no Afeganistão e Iraque, a estagnação retira o conflito de manchetes e cobertura 24 horas das TVs a cabo, como já se pode notar. Visibilidade nunca interessa a autocratas invasores. Atrapalha narrativas oficiais e será sempre obstáculo para crimes de guerra.

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