terça-feira, 7 de junho de 2022

Uma história nem tão portuguesa

Murillo Victorazzo*

Localizado a cerca de 80 quilômetros de Lisboa, Glória de Ribantejo foi um pacato vilarejo de Portugal, extinto administrativamente em 2013, após ser integrado a freguesias vizinhas. À época, contava com pouco mais de três mil habitantes, o que nos permite imaginar o quão pequeno era na década de 60, quando serviu de palco para a “guerra fria” entre Estados Unidos e União Soviética. Um episódio pouco conhecido até mesmo em Portugal e que agora a Netflix ajuda a dar conhecimento com "Glória", sua primeira série original portuguesa.

A obra gira em torno da RARET (Radio American Retransmission), uma central de retransmissão da Rádio Europa Livre (sediada em Monique), instalada em 1951 no lugarejo e a partir da qual, entre músicas de artistas tradicionais como Amália Rodrigues, difundiam-se, além de programas e discursos anticomunistas, notícias e obras censuradas para países do lado leste da Cortina de Ferro, o que suscitava constante tentativa de bloqueio dos sinais por parte de Moscou e governos satélites.

Com a transferência de funcionários da CIA e do Departamento de Estado, além de técnicos contratados, a presença americana tornou-se tão marcante que a vila passou a ser vista por seus próprios moradores como  "um Estados Unidos dentro de Portugal”. Todo ano, no dia 4 de julho, data da independência da superpotência, americanos e portugueses confraternizavam-se, em uma grande festa na praça central, com fogos, bandeirinhas dos dois países, música, comida e bebida. A grande maioria sem saber detalhes do que acontecia dentro da rádio.

É a partir deste fato histórico que se desenrola a ficção, passada em 1968 e disponível desde novembro do ano passado no streaming. Seu protagonista é João Vidal (Miguel Nunes), filho de Henrique Vidal (Marcello Urgeghe), um integrante do alto escalão da ditadura protofascista de Antonio Oliveira Salazar. Após servir na guerra colonial no Guiné, João passa a simpatizar com o movimento comunista, sendo recrutado pela KGB para ser espião em seu país. Consegue, graças a influência do pai, um emprego como engenheiro na RARET, de onde passa boicotar seu funcionamento e enviar informações para Moscou. 

"A guerra não se faz só com armas e aí entramos nós”. Assim Gonçalo (Afonso Pimentel), amigo e colega de trabalho de João, resume os objetivos da rádio. Entre dramas amorosos, cenas de suspense, tramoias políticas e situações que remetem aos costumes machistas do interior luso da época, “Glória” levanta uma antiga e perene questão: até aonde é justificável ir em nome de uma ideologia, seja ela qual for?

De família de alta sociedade, João é um idealista, incomodado com o racismo, a opressão e a injustiça social que Lisboa impõe às suas colônias africanas. Bonito, bondoso, educado, amoroso e gentil com todos, vê-se obrigado a matar, sequestrar, usar da força física, além de bem jogar o jogo de sedução, em prejuízo até de mulheres que pouco têm a ver com o enfrentamento político. Tudo com o intuito de concretizar as missões designadas pelo sombrio Alexander Petrovsky (Adriano Luz), seu recrutador e chefe direto dentro da agência de inteligência soviética.

É inegável o apelo da trama a clichês, como retratar ricos "bons moços" engajados em lutas sociais de esquerda. É compreensível, porém, esse artifício, dados os inúmeros jovens de classe média e alta que não só optaram pela causa socialista como entraram para a luta armada em meados do século passado. A legitimidade de certas ações de grupos revolucionários acarreta debates até hoje não apenas na dramaturgia. No decorrer dos dez episódios, a contradição entre esses dois lados do protagonista adquire contornos mais fortes.

Igualmente lugar comum é forçar nas cores de personagens espiões soviéticos, sempre solitários, sisudos, enigmáticos, maquiavélicos, vestidos com sobretudos negros e prontos para assassinar, em contraste com funcionários da CI de perfis menos maniqueístas, divididos entre o "dever com a pátria líder do mundo livre" e a vida social e familiar, em meio a relacionamentos amistosos com empregados e churrascos para conquistar a vizinhança. Assim são contrapostos o russo Alexander e o casal americano Anne e James Wilson. Ah, claro, não poderia deixar de haver também uma linda e fria espiã russa que usa seus dotes físicos para obter segredos.

Apesar dos chavões, “ Glória” tem o diferencial de nos brindar com algo pouco conhecido no Brasil, em que pese as relações umbilicais com Portugal: um pouco da História de nossa ex-metrópole. Ainda que de forma tangencial, mostra-nos o clima repressivo do dia a dia do Estado Novo (1933-1974), regime comandado pelo "professor Salazar", ideólogo e líder do integralismo luso. Movimento ultraconservador de cunho nacionalista e católico, o salazarismo baseava-se na Doutrina Social da Igreja e inspirou o integralismo brasileiro de Plínio Salgado. Hoje reverberado pelo bolsonarismo, o lema “Deus, Pátria e Família" foi importado de Salazar por Salgado.

"A ordem não é produto espontâneo da sociedade, mas filha da inteligência e da autoridade", disse certa vez Salazar, frase, na série, capaz de mudar por alguns instantes os ânimos de uma alegre conversa informal entre João, Gonçalo e amigos após o primeiro revelar sua autoria. De forma direta e indireta, através de ações, ameaças e diálogos que espelham o temor da população, são retratados os métodos da PIDE, a policia política de Salazar que matava e torturava inimigos do regime, muitas vezes em apoio ou contrapondo-se à CIA. 

Apesar de interesses comuns no combate ao comunismo, as relações entre Washington e a ditadura portuguesa não foram sempre harmônicas. A principal discordância se dava em relação às lutas por independência de Guiné, Angola e Moçambique, conflito considerado por salazaristas não como guerra, mas atos terroristas "daqueles pretos" incapazes de se governarem, como afirma Henrique ao filho.

A manutenção dessas colônias, propagava Salazar, era a "garantia da manutenção da civilização cristã e ocidental" no "continente negro". Os Estados Unidos, contudo, duvidavam da capacidade de Portugal em mantê-las. Os custos explodiam, especialmente pelo recrudescimento da guerra, em um contexto de progressivo isolamento internacional de Lisboa. Os demais países europeus já haviam concluído ou estavam em processo de negociação para a autonomia de seus territórios além-mar. Em 1965, a Comissão de Descolonização da ONU começara a falar em "territórios sob a dominação portuguesa" e havia reconhecido a legitimidade das  lutas de libertação nacional.

Uma saída negociada, acreditava Washington, evitaria que a causa caísse definitivamente em mãos dos grupos guerrilheiros comunistas, os quais, cada vez mais populares e bem armados, não cessavam de conquistar territórios. Mas, assim como Açores, cujo acesso era, por sua localização estratégica no Atlântico, crucial para os norte-americanos, o espaço cedido para a RARET dava a Salazar algum poder de barganha, obrigando os Estado Unidos a dosarem a pressão. Esse jogo de xadrez é mostrado nas tensas conversas entre Henrique e James, enquanto o desespero de Fernando (João Arrais), um introspectivo e franzino jovem obrigado a lutar no Guiné, reforça as péssimas memórias de João sobre a guerra.

O semestre final de 1968 revela-se um ponto de inflexão na História portuguesa. Por motivos de saúde, Salazar (que viria a falecer dois anos depois) é afastado do poder, sendo sucedido por Marcelo Caetano, uma espécie de títere que tenta manter a essência de um regime desgastado pelo conflito colonial. Sem êxito, é deposto em 1974 pela Revolução dos Cravos, levante com vasto apoio da população que, reunindo alguns liberais, socialistas, social-democratas e militares de média patente (muitos recém -regressados da África), dá início à democratização do país e a independência das colônias. Antes disso, porém, ascensão de Caetano significará a ascensão política do pai de João, com cruciais consequências para o desenlace da trama. 

A RARET chegou a transmitir programas em 18 línguas, todos destinados aos países sob influência soviética. Em 1985, sofreu um atentado, reivindicado por uma organização "anti-capitalista". Com o fim da Guerra Fria, foi desativada e deixada sob escombros por muitos anos, até suas instalações serem em parte recuperadas para as gravações da série.

Criada e escrita por Pedro Lopes, produzida pela SPi e RTP e dirigida por Tiago Guedes, "Glória" conta ainda com o ator brasileiro Augusto Madeira no papel do doutor Miguel, médico dos funcionários da rádio. Entre sotaques brasileiro e português, diálogos em russo e inglês, a pequena Babel é um atrativo a mais para a produção, que, apesar das peculiaridades bastante lusas, recorda circunstâncias sociopolíticas espalhadas pelo mundo até 1989, com reflexos ainda hoje.

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais ( FGV-Rio)

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