quinta-feira, 16 de junho de 2022

Soberania é dar exemplo

Murillo Victorazzo

Não, meu caro bolsonarista. Não são narrativas. São fatos, e se você não se lembra deles, eu os recordo:

Bolsonaro praticou garimpagem ilegal na década de 80. Repreendido por seus superiores de farda, desdenhou publicamente e estimulou outros militares a agirem de forma igual. Em 2012, foi autuado por pesca ilegal em Angra dos Reis, um episódio que terminou, coincidência ou não, com a exoneração do responsável pela multa em 2019, já sob seu governo. Por décadas, criticou a legislação ambiental produzida nos anos FHC e PT, chamando-as de "socialistas". A mesma legislação que, acuado nos fóruns internacionais, agora enaltece para provar que o "Brasil é quem melhor protege suas florestas" - ao mesmo tempo que propõe ou apoia projetos de lei que a fragilizam.

Bolsonaro cresceu politicamente prometendo "acabar com o ativismo". Eleito, em detrimento do corpo técnico, enfraqueceu, inclusive financeiramente, órgãos como Funai e Ibama: apoiado pelo ruralismo mais atrasado, nomeou policiais sem expertise para suas chefias e direções; empoderou o discurso de grileiros e garimpeiros ao constantemente tachar os funcionários concursados de "xiitas"; e pressionou por flexibilização de multas ambientais.

Qualquer calouro de economia sabe distinguir fluxo de estoque. Dados do INPE - órgão estatal ( não, não é a Globo, o Foro de SP nem a Greta) mostram o forte aumento do desmatamento da Amazônia nesses quase quatro anos de governo. Outros números comprovam o recrudescimento de crimes na região, assim como de invasões a terras indígenas. Confrontado, Bolsonaro e seus bovinos preferiram desqualificar as denúncias. Optaram por virar suas metralhadoras verborrágicas para a "mídia esquerdista" e hipocrisias europeias - o que não anula os vergonhosos dados oficiais, em área em que, pela postura proativa nas três décadas anteriores, o Brasil era capaz de moldar as normas internacionais. Uma das raras em que podemos ser global player.

Sim, Chico Mendes, em 1989, e Dorothy Stang, em 2005, foram mortos na Amazônia. O que difere, porém, é, além do contexto, a reação do governo. Não precisava ser muito sábio pra imaginar a repercussão internacional que teria o homicídio de um jornalista inglês em uma região que mobiliza atenções mundiais - alguns por interesses sim, mas tantos outros por preocupações genuínas. Ainda mais acompanhado de um reconhecido indigenista, demitido de seu cargo de coordenador-geral de índios isolados da FUNAI três anos atrás e substituído por um pastor evangélico, defensor da evangelização de indígenas, uma volta de quase 500 anos no tempo.

Mas, não bastasse a Justiça ter que entrar em ação para agilizar o envio de apoio às buscas, já que a velocidade com que o Exército responde ao TSE não foi vista para suas verdadeiras atribuições constitucionais, o presidente da República escolheu relativizar o caso ("sempre ocorreu") e culpabilizar as vítimas pela "aventura". Duas pessoas que se arriscaram para denunciar crimes - e proteger o que seu governo deveria proteger. Uma postura certamente diferente da como agiria caso os homicídios tivessem ocorrido em uma comunidade dominada pelo tráfico no Rio De Janeiro. Estaria até agora vociferando contra a "bandidagem", que boa é a morta. É mera coincidência os suspeitos fazerem parte de grupos como grileiros, garimpeiros, madeireiros ilegais, pescadores em áreas de conservação, todos integrantes de sua poderosa ($$) base eleitoral no norte do país, com tentáculos no aliado Centrão?

Não são narrativas, é notório. Tão notório quanto as desastrosas declarações do delegado presidente da FUNAI. Ecoando Bolsonaro, Marcelo Xavier achou mais conveniente apontar o dedo para as vítimas. A fim de tentar se eximir, acusou Bruno Ferreira e Don Phillips de não terem comunicado aos órgãos de segurança suas entradas em terra indígena. “O problema é que, infelizmente, as pessoas sabem do risco e insistem em ir lá sabendo desses riscos". Bruno não só tinha autorização como, na verdade, o desaparecimento nem se deu nessas áreas. 
Xavier fez ainda questão de frisar que o indigenista não estava em missão oficial da FUNAI. É um estranho caso de agente público que atua contra os direitos de quem deveria proteger. Não há diálogo, afirma Alberto Terena, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a maior organização indígena do país.

É fato que sempre houve dificuldades para a presença estatal na Amazônia. No entanto, as políticas ambiental e indigenista do atual governo não apenas as reforçaram abruptamente, seja por ações ou declarações. Parecem sinalizar o desejo pelo caminho oposto: a ausência de Estado. Faltava um símbolo para essa inédita degradação institucional, já tão mal vista interna e externamente. Não falta mais. Se militares e bolsonaristas, presos a teorias anacrônicas, temem por "interferência" estrangeira, é justamente o presidente da república quem mais dá argumentos aos que dizem que "os brasileiros não sabem cuidar da Amazônia". Imagem é tudo. Soberania é saber governar; é proteger; é dar exemplo.


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