quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A nuvem palestina

Por Murillo Victorazzo

"Política é como nuvem. Você olha e ela está de um jeito. Olha de novo e ela já mudou". Cunhada pelo ex-governador mineiro Magalhães Pinto, a analogia há décadas serve para explicar por que os prognósticos políticos, ainda que possam guardar alguma lógica, são, quase sempre, de difícil precisão. A recente libertação do militar israelense Gilad Shalit, sequestrado há mais de cinco anos pelo Hamas, em troca de cerca de mil prisioneiros palestinos mais do que ratifica a máxima. Mostra que ela se aplica tanto nas disputas nacionais como internacionais em muito por serem estas frequentemente influenciadas pelas primeiras.

Por envolver dois lados que sempre resistiram a qualquer contato mútuo, a negociação causou, de certa forma, surpresa ao mundo. O governo linha dura de Israel sempre se negou a fazer concessões à organização terrorista, que, por sua vez, sempre teve nas armas o único meio de lutar pelo seu objetivo: a criação do Estado palestino através da eliminação do Estado judeu. Os motivos que levaram o Hamas e o primeiro-ministro israelense, Benjamim Netanyahu, a ceder, porém, têm mais a ver com as disputas internas do que com eventuais inflexões mais consistentes no modo dos inimigos se verem.

Há menos de um mês, numa ousada estratégia, o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, cético quanto a retomada das negociações com Israel, levou à ONU o pedido de reconhecimento formal da Palestina como Estado. Um atitude que esgarçou a débil comunicação com Netanyahu e reacendeu o receio de uma nova espiral violenta entre os dois lados inclusive uma terceira Intifada.

O governo de Israel e seu maior aliado, os Estados Unidos, defenderam que o Estado palestino deveria vir em consequência de negociações diretas entre os dois lados, e não por ações unilaterais. A tese é respeitável, mas, refém de ideologias e visões religiosas estreitas, a direita israelense, representada por Netanyahu e seu chanceler, Avigdor Lieberman, não levou em conta que o pedido, por outro lado, nada mais era do que a legitimização de Israel pela moderada e secular Fatah, partido que comanda a ANP. Ao contrário do Hamas, Abbas aceitara implicitamente a coexistência entre os dois Estados, incorporando de vez o uso exclusivo da diplomacia na busca por seu objetivo.

Nos dias que se seguiram a Assembleia Geral da ONU, o diagnóstico unânime foi de que prestígio de Abbas havia aumentado, em contraste com um provável isolamento de Israel na figura de seu premiê. Este, por sinal, enfrentava ainda desgastes internos, como as manifestações populares contra os resultados econômicos de seu governo, em especial o crescente nível de desemprego e o alto custo de vida. Na gangorra política do Oriente Médio, o líder palestino subia, enquanto o israelense e o grupo radical desciam.

Mas então veio a troca de prisioneiros e o cenário mudou. Tudo indica que os recentes movimentos de Netanyahu. e do Hamas foram uma resposta à jogada de Abbas. Na tentativa de sair da defensiva interna e externa, o governante israelense aceitou fazer algo que, segundo pesquisas, era apoiado por dois terços do eleitorado local. Como disse Diego De Ojeda, diretor da Casa Sefarad-Israel, ao jornal espanhol "El País", "Netanyahu dá uma mostra de generosidade em um momento de debilidade  interna, diante da maré ´indignada` que reclama uma melhor divisão da enorme riqueza gerada em Israel durante os últimos anos".

Outra análise mais arriscada é ter Netanyahu preferido dar os anéis para ficar com as mãos no front externo. Diante do fortalecimento de Abbas, cuja proposta pode levar os Estados Unidos a ficarem sozinhos no Conselho de Segurança, em um constrangimento que certamente refletiria em pressões ainda maiores do governo Obama e da União Europeia para estancar a  expansão de colônias judias na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, o líder direitista teria preferido forçar um reequlíbrio de forças palestinas.

Para um governo acusado de não querer negociar qualquer acordo mais profundo que envolva territórios, o fortalecimento da facção terrorista seria, até certo ponto, conveniente. Reforçaria a imagem de fraqueza do moderado Abbas, único com legitimdade internacional para tentar um verdadeiro acordo de paz, em um ótimo pretexto para justificar suas inflexibilidades futuras, que acabariam por serem respeitadas pelas potências ocidentais. Portanto, a percepção pela opinião pública palestina de que o Hamas é mais efetivo em sua demandas, o que poderá fortalecer a resistência armada, em detrimento da ponderada e diplomática tática da ANP, cujo pedido à ONU ainda é uma incógnita tanto em termos de tempo como de resultado, lhe seria útil.

A mesma lógica cabe aos objetivos do Hamas, indiscutivelmente o grande vencedor do episódio. Crítico da estratégia de Abbas, justamente por não reconhecer Israel e se negar a largar as armas, a organização nada perde com a pequena concessão. Ao contrário. Trocar mil pessoas por uma, ainda que esta seja um membro das poderosas Forças Armadas inimigas, é uma troca vantajosa e principalmente vitoriosa, em termos políticos. Segundo o "Globo", pela primeira vez em anos, bandeiras verdes da organização foram vistas tremulando em Ramallah, Cisjordânia, região onde o Fatah é dominante. Seu maior prestígio interno dificultaria ainda mais qualquer proposta que levasse em conta os direitos de existência do inimigo.

Não é de hoje que radicais de campos opostos se unem, conscientemente ou não, quando o inimigo é a paz e o consenso. Segundo suas óticas obtusas, seus objetivos inflexíveis serão alcançados apenas à força, como se a disputa fosse entre o bem e o mal dos filmes de super heróis. Não por outro motivo, em editorial, o "New York Times" criticou a postura de Netanyahu, dizendo não entender por que o premiê "não negocia seriamente com a ANP", se é capaz de negociar com uma organização que "lança foguetes contra Israel, recusa-se a reconhecer sua existência e prometeu mais sequestros". Na mesma linha, o diário israelense "Haaretz", ao acusar o premiê de estar "fazendo um esforço para retratar o Fatah como desprovido de propósito", defendeu que ele evite "tomar medidas que minem o status do nosso parceiro palestino e o status internacional de Israel".

Ainda que os otimistas defendam "que a troca de prisioneiros removeu um grande obstáculo de qualquer futuro de paz entre israelenses e palestinos", como opinou Ronald Zweig, professor de Estudos Israelenses da Universidade de Nova York, ao "Globo", as perspectivas são, para muitos, angustiantes. A sensação é de que o radicalismo foi revigorado. Como metaforizou o ex-ministro israelense Yossi Beilin, a bomba-relógio foi ativada, e só se conseguirá desligá-la caso Netanyahu reative o processo de paz com seu parceiro legítimo, Abbas.

O fato é que, embora não se possa dizer até quando, o líder israelense e o Hamas escaparam do canto do ringue. Se a inconstância é marca da política, ela, sempre intensa no Oriente Médio, ganhou tons ainda mais preocupantes. As nuvens que no início do mês desenhavam um quadro a favor de Abbas agora ganharam feições desejadas pelo fundamentalismo. E, neste caso, o céu se encontra especial e perigosamente cinzento.

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