segunda-feira, 2 de junho de 2014

"Brasil e EUA vivem hoje uma relação de paranoia mútua", afirma publisher da "Foreign Policy"

Por Raul Juste Lores  (UOL, 02/06/2014)

Brasil e EUA precisam resolver suas "paranoias" recíprocas se quiserem ter uma parceria mais produtiva. "Hoje, quando os dois presidentes se encontram, só falam de ninharias", diz o publisher da revista "Foreign Policy", influente publicação americana sobre assuntos internacionais, David Rothkopf, 58.

Crítico duro do governo Barack Obama, apesar de ser democrata, Rothkopf acha que Brasil e EUA têm visões "caricaturais" um do outro e que a memória da Guerra Fria tem peso excessivo. "Se a China desacelerar, se houver uma seca de capitais rumo aos emergentes, o que [a presidente Dilma Rousseff] vai fazer?", pergunta. Seu próximo livro, a ser lançado em outubro, será sobre a política externa de Bush e Obama "na era do medo". Ele recebeu a Folha em seu escritório em Washington.

Folha - O Brasil pode ficar isolado se os dois blocos comerciais estimulados pelos EUA, com a Europa e com os países do Pacífico, saírem do papel?
David Rothkopf - Não parece que ninguém do governo brasileiro esteja preocupado com isso, senão fariam algo. Dilma vai enfrentar muitos problemas domésticos em relação à economia. Se a China desacelerar, se os estímulos à economia americana forem reduzidos, se houver seca de capitais rumo aos emergentes, o que ela vai fazer? Ela não mostrou apetite pela arena global. O Brasil tem seguido a política de fazer seus próprios negócios, desde que não sejam negócios com os Estados Unidos.

Folha - Por quê?
Rothkopf - Todo país é colorido por sua história e tem suas paranoias. O Brasil é paranoico em ser dominado pelos EUA. Tem uma reação negativa anormal a qualquer projeto de cooperação com os EUA. Como meu irmão é casado com brasileira, minha mulher já trabalhou lá e tenho muitos amigos brasileiros, acho que posso ser franco. Já os EUA são paranoicos com a ascensão brasileira e regularmente suas políticas na região querem deixar o Brasil de fora.

Folha -Depois da crise causada pela espionagem da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA), o sr. vê a possibilidade de reconstruir a confiança? 
Rothkopf - Se hoje os dois líderes se encontram, vão falar sobre o quê? Só de ninharia. Não conseguimos falar nem de liberar os vistos reciprocamente, nem de facilitar alfândega. O melhor momento recente foi a relação entre [George W.] Bush e Lula. Veja só. Lula fez algo admirável, construindo em cima das fundações deixadas por Fernando Henrique Cardoso, que estabilizou a economia. Transformou o Brasil em um ator global. Se eu fosse os EUA, cansado de guerras e querendo ter novos aliados no mundo, priorizaria essa gigante democracia no nosso hemisfério, com quem compartilhamos a diversidade cultural. Mas Dilma não é Lula.

Folha - É comum detectar antiamericanismo de um lado e um antiesquerdismo do outro. Vai demorar essa aproximação?
Rothkopf - A memória da Guerra Fria tem um papel grande demais nos dois lados. Temos um problema aqui nos EUA: muitos dos nossos latino-americanistas foram educados na Guerra Fria e têm uma atitude automática contra a esquerda. Tratam igual, seja Cristina [Kirchner], [Evo] Morales, [Rafael] Correa, seja quem estiver à frente da Venezuela. Onde estão hoje os líderes inovadores da América Latina? Na esquerda. Lula foi talvez o mais importante lider latino-americano dos últimos cem anos, e a reação inicial a ele foi negativa. Hoje, há um líder mais inovador do que [José] Mujica?

Folha - Do lado americano, é comum a reclamação de que o Brasil não se comporta como aliado, abstendo-se na crise da Ucrânia ou da Síria. O acordo com o Irã é lembrado até hoje.
Rothkopf - O Irã foi "nonsense" (absurdo), mas Brasil e Turquia estavam por trás do acordo, e fizemos as pazes com a Turquia rapidinho por termos interesse. E olha que [Recep Tayyip] Erdogan não era tão legal quanto pensávamos. Mas, se Dilma for reeleita, ela tem de pensar em como será a relação com Hillary Clinton ou com Jeb Bush, os favoritos para a sucessão de Obama. Há oportunidades para cooperação em ciência, energia, mudança climática.

Folha - Mas não parece que a América Latina esteja entre as prioridades do governo Obama.
Rothkopf - Há 20 crises simultâneas, então só o que é problema vira prioridade. É a política velha, por inércia.

Folha - O mundo parece dar um suspiro de alívio quando um presidente americano, como Obama, diz preferir a diplomacia ao uso da força. Por que o sr. acha que não devemos comemorar?
Rothkopf - Podemos celebrar o fim do uso exagerado da força dos anos Bush, mas Obama faz um governo minimalista. A menor ação possível, criando a ilusão de fazer muita coisa. Precisamos de uma combinação de diplomacia, pressão política e econômica, cooperação militar, ação legal, ação multilateral.

Folha - Obama não está de mãos atadas por uma opinião pública que não quer saber de guerra nem de intervenções no exterior e por um Congresso onde ele não tem maioria?
Rothkopf - Não precisava ser binário –ou usamos força ou não fazemos nada. O povo americano não quer mais guerra, mas quer que o país lidere, que o mundo não se torne mais perigoso, que não sejamos cúmplices por inação pelo massacre na Síria. Ou pelo crescimento do terrorismo, ou por encorajar [Vladimir] Putin, ou por a China invadir vizinhos ou ilhas. Falta liderança, energizar a opinião pública, identificar objetivos, convencer aliados. Obama é cauteloso demais e sem experiência de política externa. Sua equipe se tornou ainda mais fraca, com menos poder, no segundo mandato que no primeiro. Centraliza tudo na Casa Branca.

Folha - Quando os EUA falam em contenção de China ou Rússia, não acaba provocando reação de ambos, por se sentirem "cercados" pelos EUA?
Rothkopf -A "contenção" é maior que os EUA admitem, mas menor do que os chineses reclamam. Os vizinhos da China não têm uma relação tão boa e não a querem como chefe por lá. É uma questão de avançar nossos interesses, de proteger nossos aliados. A China tem uma estratégia, dá a volta ao mundo com o talão de cheques na mão, cria interdependência. Nós não temos estratégia.

Folha - Os EUA perderam a moral para denunciar a pirataria cibernética chinesa?
Rothkopf - Ambos espionam e admitem. Os EUA dizem "vocês roubam segredos industriais para dar às suas empresas, nós cuidamos da segurança nacional", mas a China retruca que os EUA querem benefícios comerciais e que espionaram a [empresa] Huawei. Na Guerra Fria, o preço do conflito ficou tão alto com a possibilidade de guerra nuclear que não lutamos porque seria a destruição. Já os ataques cibernéticos, assim como os drones, sem humanos, são baratos demais. O perigo é não pararem nunca. Em que ponto veremos que fomos longe demais?

Folha -  A crise da NSA também demonstrou como os governos ainda conhecem pouco a segurança digital?
Rothkopf - Não há tanta gente no governo, especialmente em altos cargos, que entenda o mundo cyber. Sete bilhões de pessoas terão celular, e o fluxo de dados já é mais importante que o de capital. Privacidade é uma nova prioridade, e não temos uma doutrina cibernética, nem debate, nem normas globais.

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