domingo, 18 de maio de 2014

A cultura estratégica russa e a anexação da Crimeia: O Império contra-ataca?

Por Marcos Degaut*  (Mundorama.net, 10/05/2014)

A anexação da Crimeia pela Rússia, em março de 2014, e a disposição do presidente russo, Vladimir Putin, em fazer uma incursão militar na Ucrânia, para garantir a incorporação da região ao país parecem ter pego de surpresa muitos analistas políticos e formuladores de políticas.

Mais uma vez, em meio a especulações sobre as verdadeiras intenções do país, tem  crescido o medo de que posições agressivas na política externa de uma Rússia imperialista se deva à ideia de reconstrução de um império. O objetivo seria conseguir assim algum tipo de superioridade estratégica sobre o Ocidente ou adquirir maior influência política na arena internacional.

No entanto, pode-se argumentar que os interesses estratégicos da Rússia são mais modestos. O país não está interessado em reviver uma nova Guerra Fria. Falta-lhe não só os meios políticos, econômicos e militares para fazê-lo como também vontade, já que tem mais a perder do que a ganhar na implementação de uma política de confronto com as principais potências do mundo.

Na verdade, o que é visto como uma agressão irracional contra a Ucrânia é apenas mais um capítulo da longa história de equívocos do Ocidente no entendimento de quais forças motrizes estão por trás do comportamento da política externa russa. Este pode ser explicado pela natureza duradoura da cultura estratégica do país. Sim, as especificidades do fato foram surpreendentes, embora não imprevisíveis.

Compreender tal cultura é de extrema importância para  formuladores de políticas, estudiosos e analistas, pois ajuda explicar  padrões regulares de comportamento dos Estados. Ajuda-nos a entender a lógica de sua percepção  sobre o cenário global e a vizinhança mais próxima, o que influencia sua política externa e por que tende a se comportar de determinada maneira. 

Em artigo de 1998, Michael Desch argumenta que a cultura estratégica pode não só explicar a defasagem entre mudanças estruturais e alterações no comportamento estatal como também "por que alguns Estados comportam-se irracionalmente e sofrem as consequências de não conseguirem se adaptar às limitações do sistema internacional".

Tendo em vista que esta cultura é produto da experiência histórica, Estados diferentes têm diferentes culturas estratégicas.Todas enraizadas nas experiências de formação do Estado e influenciadas, em algum grau, pelas características filosóficas, políticas, culturais e cognitivas dele e de suas elites.

A literatura sobre o assunto, geralmente, apresenta duas abordagens distintas na análise de cultura estratégica. A mais aceita é a que a define em termos de estratégia militar e uso da força nas relações internacionais. Haveria uma predisposição cultural fortemente correlacionada a determinado comportamento ou pensamento militar, sendo este derivado da história, da geografia, dos mitos e símbolos nacionais, das tradições políticas e instituições do país, entre outras fontes.

Cultura estratégica não é, no entanto, apenas um produto da cultura militar, e esta não é a única área onde sua influência é sentida. Ela também influencia as tradições e práticas políticas e de política externa do país, razão pela qual a segunda abordagem ampliou o conceito e incluiu variáveis como as econômicas e diplomáticas nos caminhos para atingir os objetivos dos Estados.

São, portanto, fatores determinantes na formação da cultura estratégica de um país não apenas a maneira como o poder político é adquirido e utilizado mas também como ele vê e aborda o mundo exterior. Por sua vez,  metas de política externa,  que refletem identidades e interesses, são definidas por justamente por ela.

Nesta linha de pensamento, o Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM) define cultura estratégica como "a combinação de influências internas e externas com experiências – geográficas, históricas, culturais, econômicas, políticas e militares – que molda a maneira de um país entender sua relação com o resto do mundo e como um Estado se comportará na comunidade internacional".

Deste modo, a perspectiva de um país a cerca de seu papel no sistema international e sua percepção de segurança também são parte de sua cultura estratégica. Assim, para fins operacionais, a cultura estratégica pode aqui ser compreendida como uma profunda predisposição cultural a um particular comportamento ou pensamento estratégico.

De fato, a Rússia exibe uma propensão ao uso da força na busca por seus objetivos estratégicos. No entanto, apesar da cultura estratégica poder ser considerada razoavelmente estável no que diz respeito à percepção predominante de ameaça e à busca  pelo status de grande potência, algumas mudanças foram acontecendo após o colapso da União Soviética. Mais visivelmente, tem diminuído a percepção da força militar como única fonte de poder, enquanto o papel do poder econômico se tornou mais importante.

Isso certamente não significa que a Rússia desistiu da força militar como fonte de poder e influência política, uma ferramenta importante nas suas relações internacionais. Ela  ainda é a base institucional do Estado. No entanto, o desenvolvimento econômico também se tornou importante força motriz por trás de sua política externa.

Não podemos esquecer, contudo, que, por sua própria natureza, a Rússia é um país de revisionista. O estado russo nasceu e expandiu-se em semipermanente estado de guerra. Ao longo da história, dos tempos imperiais à era soviética, a noção de que seus território e recursos eram alvos de Estados vizinhos e inimigos bélicos expansionistas não apenas moldaram a percepção russa de ameaça como também contribuíram para forjar um forte nacionalismo, traço integrante da identidade nacional do país

A cultura estratégica do país e sua aspiração à grande potência são, portanto, fundadas sobre uma quase obsessiva percepção de ameaça generalizada à soberania russa e sua integridade territorial, além de exacerbado nacionalismo, centrado na influência global, na segurança e nos interesses do país.

A repressão aos movimentos separatistas na Chechênia e no Daguestão, a incursão militar na Geórgia em 2008, a recente anexação da Crimeia e o aparente apoio a movimentos separatistas nas regiões ucranianas orientais, mais especificamente nas cidades de Donetsk, Lugansk e Kharkov, seguem claramente esse padrão, já reforçado em julho de 2008, quando o então presidente Andrei Medvedev aprovou um novo "conceito de política externa" para o país, cujos principais objetivos eram "garantir a segurança nacional, preservar e fortalecer sua soberania e integridade territorial e alcançar posições fortes de autoridade no mundo".

Outros elementos também contribuem para moldar a cultura estratégica russa, tais como o estilo profundamente enraizado de liderança autoritária  e a cultura política militarizada. Na verdade, a cultura política russa tem profunda influência sobre sua cultura estratégica. Ela é em si muito "marcial"ou harmoniosa com os valores militares nos quais o princípio do kto-kovo (literalmente, "quem-quem)  se baseia : quem domina quem, a partir do poder coercitivo ou do status ditado pela autoridade superior".

Este pressuposto implica que as elites políticas russas tendem a ver elementos da democracia como meros instrumentos políticos a serem usados para manipular e controlar pessoas e governos mais fracos, a fim de perseguir e alcançar os interesses do país e em benefício da autoridade central.

Em grande medida, a política externa russa espelha sua cultura política. A tradição kto-kovo tem implicações nas relações internacionais do país, pois representa uma tendência a ver Estados e atores estrangeiros como inimigos, aliados transitórios ou idiotas úteis a serem manipulados 

Isso ajuda a explicar a opção preferencial por acordos bilaterais no desenvolvimento de sua estratégia multipolar no nível das grandes potências. Através deles, a Rússia forma uma variedade de coligações, em detrimento do sistema de instituições internacionais.

Esta perspectiva também explica a crescente pressão sobre Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Moldávia, Geórgia, Cazaquistão, e também a Ucrânia, para juntarem-se à União da Eurásia, bloco comercial desenhado por Moscou com o intuito de vincular a Rússia aos seus vizinhos mais próximos, contrabalançando a influência econômica da União Europeia na região.

Superado o período caótico que se seguiu ao colapso da União Soviética, as lideranças russas manifestam sistematicamente o desejo de devolver à nação o status de grande potência, importante fator de condução na política externa russa.. Sob este prisma, elas têm agido. O país não só quer aumentar e projetar sua influência e poder em sua região como pretende ser um ator mais significativo na arena internacional. Um impulso improvável de ser arrefecido.

As lideranças parecem ver o mundo basicamente pela ótica realista, na qual a busca pelo equilíbrio de poder é permanente. Para eles, a missão da Rússia é promover o surgimento de um mundo multipolar, a fim de conter e contrabalançar a magnitude do poder americano.

Os principais elementos da cultura estratégica russa – combatividade, competitividade, assertividade política e uma posição firme contra o que é percebido como a maior ameaça à sua segurança e ambições, os Estados Unidos – estão presentes na renovada aspiração ao status de grande potência.

Ao mesmo tempo, devido à sua cultura estratégica, a Rússia se manterá reagindo ao que é percebido como ameaça a sua integridade territorial, influência e valores. Continuará sendo particularmente sensível às tentativas de EUA e União Europeia de não apenas incluírem em uma comunidade de segurança coletiva países que já foram parte de sua esfera de  influência, mas também de promover a economia de mercado e a democracia liberal nestas áreas.

Putin deixou claro que  está pronto para gastar seu capital político e significativos recursos militares e econômicos na defesa do direito de proteger o que vê como "espaço vital" e  interesses da Rússia. E desde a anexação da Península da Criméia, agora um fato consumado, quando não enfrentou nenhuma oposição internacional séria, apenas leves protestos diplomáticos, uma análise da cultura estratégica do país indica que outras aventuras semelhantes podem estar por vir. 

Exceto, obviamente, se Estados Unidos e demais potências ocidentais descobrirem uma efetiva maneira de tornar tais ações mais custosas para a Rússia sem aumentar os riscos de um confronto militar direto.

*Marcos Degaut is estudante de pós-doutorado em Segurança Internacional na Universidade da Flórida Central
(tradução livre do blog)


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