segunda-feira, 25 de julho de 2016

Turquia e Rússia: uma desigual reaproximação

Por Jeffrey Mankoff (Foreig Affairs, 20/07/2017)

A normalização do laços entre Turquia e Rússia no final de junho foi uma das raras boas notícias para o país. Sob a pressão de uma onda de guerrilha curda, de ataques terroristas e o auto-proclamado Estado Islâmico; um afluxo maciço de refugiados sírios; problemas econômicos decorrentes das sanções russas; e crescente atrito com União Europeia e Estados Unidos; o presidente turco Recep Tayyip Erdogan parece ter decidido que seu país já não podia pagar por uma guerra fria com Moscou.

Ao pedir desculpa pela derrubada de um avião de guerra russo em novembro de 2015, Erdogan pavimentou o caminho para a retomada dos laços econômicos e de maior cooperação em segurança entre os dois países. O pedido de desculpas, no entanto, não diminuirá a influência crescente da Rússia no quintal da Turquia.

Esta  ampla mudança geopolítica  —  vista no crescimento do poder russo na região do mar Negro, no Cáucaso e no Médio Oriente, muitas vezes às custas de Ancara — pôs fim à curta parceria estratégica russo-turca surgida na primeira década deste século.

Nos próximos anos, essa crescente influência vai continuar a limitar as possibilidades de uma parceria genuína entre Ancara e Moscou. E embora os ruídos com o Ocidente causados pela tentativa de golpe criem oportunidade de maior cooperação a curto prazo, deixa, por outro lado, a Turquia mais fraca e, portanto, mais vulnerável à coerção russa.

A primeira década deste século viu uma estreita parceria russo-turca transformar séculos de confronto. As ambições estratégicas dos dois países começaram a convergir: ambos esperavam moldar um maior papel para si na ordem global e foram se frustrando cada vez mais com o que eles viam como recusa do Ocidente em lhes dar um lugar à mesa.

Ancara e Moscovo começaram a concentrar-se na cooperação econômica, aprofundando laços comerciais e de investimento. Até 2015, Rússia era o terceiro maior parceiro comercial da Turquia, quarta maior fonte de investimento estrangeiro e o principal fornecedor de gás natural. Turistas russos tornaram-se frequentes nas cidades turcas.

A decisão russa de novembro de 2015 de impor sanções sobre a Turquia após derrubada do caça debilitou fortemente a economia turca. Moscou centrou suas sanções nos três pilares das relações econômicas bilaterais: agricultura, construção e turismo.

Entre outras medidas,proibiu a importação de alimentos turcos, restringiu as atividades de empresas de construção turca na Rússia, proibiu voos charters entre os dois países e cancelou um acordo de isenção de visto finalizado em 2010. A gigante de gás russa Gazprom engavetou planos de construir um novo gasoduto através do mar Negro para a Turquia, e a Rosatom, empresa estatal nuclear, suspendeu a construção de um reator na cidade turca de Akkuyu.

Tomados em conjunto, de acordo estimativa do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, as sanções diminuiriam o PIB  turco em 0,7 pontos percentuais em 2016 caso fossem mantidas.

Igualmente prejudiciais para a Turquia foram os efeitos do confronto com a Rússia na crise na Síria. Junto com o Irã e a milícia xiita Hezbollah, os russos apoiam o governo deBashar al-Assad, contra a Turquia, que, juntamente com Estados árabes do Golfo e ocidentais, dão suporte a vários grupos rebeldes sunitas, em busca da deposição de Assad.

Nos meses após o incidente com o caça, Moscou intensificou as ações contra interesses turcos na Síria, usando sua Força Aérea para atacar rebeldes apoiados por Erdogran. Por sua vez, mais sírios  se refugiaram na Turquia, que agora abriga mais de três milhões de refugiados.

Ao mesmo tempo, a Rússia forneceu apoio adicional para o Partido da União Democrática Curdo (PYD), baseado na Síria — motivo de angústia entre os líderes turcos, que vêem o PYD como uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), grupo que luta um sangrento conflito separatista  no sudeste da Turquia e que tomou vida nova no ano passado.

Os russos permitiram ainda que o PYD abrisse um escritório de representação em Moscou e, através de bombardeios aéreos, abriram caminho para os curdos sírios ganharem territórios (Ankara protestou que armas russas entregues ao PYD teriam sido contrabandeadas na fronteira sírio-turco, caindo nas mãos do PKK.)

Neste contexto, não deveria ser surpresa a brusca mudança de postura de Erdogan, a fim de restaurar os laços com a Rússia. Emparedado pelo surto de ataques do Estado Islâmico na Turquia, o fracasso de sua estratégia para a guerra civil síria, o isolamento internacional mais profundo, o agravamento do conflito com o PKK e os custos econômicos e estratégicos da retaliação russa, ele pareceu convencido a não mais pagar pelo confronto com Moscou.

A demonstração de arrependimento de Erdogran parece destinada a preparar o caminho negociar sua demanda pela deposição de Assad (algo aparentemente improvável há algum tempo) em troca do fim das sanções russas e o do apoio russo ao PYD. Se bem-sucedida, Ancara será capaz de focar seus desafios mais imediatos no PKK e  no Estado Islâmico — neste último caso, talvez em conjunto com a Rússia.

Nas últimas semanas, a Rússia cancelou as proibições impostas aos voos charter para cidades turísticas turcas e autorizou negociações com vistas à normalização dos dos laços econômicos. Na sequência do atentado suicida no Aeroporto Internacional de Istambul, os chanceleres russos e turcos reuniram-se em Sochi e concordaram em retomar  contatos militares e a cooperação antiterrorismo.

Qualquer detènte russo-turca, no entanto, provavelmente não irá restaurar a parceria estratégica que definiu a relação entre Ancara e Moscou antes do conflito sírio. As primeiras sementes desta parceria foram semeadas na década de 1990, mas foi quando Erdogan tornou-se primeiro ministro, em 2003, que realmente floresceram.

Como agora, Erdogan e o presidente russo Vladimir Putin, dois homens autoritários que compartilham alguma química pessoal, tinham em comum a frustração com uma ordem internacional dominada pelo Ocidente que estimulou a integração plena entre os dois países. Tanto a Turquia de Erdogan Turquia como a Rússia de Putin compartilham alguns interesses econômicos — por exemplo, enviar o gás russo para a Europa por meio de dutos pela Turquia.

O que, no entanto, realmente possibilitou a parceria russo-turca foi a retirada do poder militar de Moscou das fronteiras turcas após o colapso da União Soviética. Da guerra da Crimeia à Guerra Fria, a insegurança da Turquia perante tal poder forçou-a a amarrar-se aos Estados mais poderosos da Europa e América do Norte  — França e o Reino Unido na década de 1850, Alemanha durante a I Guerra Mundial e a OTAN, a partir da década de 1950.

Isso mudou em 1991, quando o esfarelamento militar da Rússia e o declínio de sua influência nos Balcãs, no Mediterrâneo Oriental e no Cáucaso do Sul acabaram com a ameaça representada por ela pela primeira vez em séculos, permitindo que a Turquia prosseguisse com uma política externa mais ambiciosa, com o intuito de aprofundar o seu papel no Oriente Médio.

Nos últimos anos, no entanto, as Forças Armadas da Rússia se fortaleceram, em grande parte como resultado do enorme programa de modernização de defesa do país, iniciado em 2008.

Na vizinhança da Turquia, Moscou está reforçando sua presença militar. Criou zonas de exclusão área no Mar Negro, onde, desde a anexação da Crimeia, em 2014, tem trabalhado para atualizar suas forças navais. Moveu forças adicionais e equipamentos para sua base naval na cidade síria de Tartus e fechou acordos com Assad para posicionar outras em outros locais do país, especialmente em Latakia.

Em dezembro de 2015, Putin prometeu reforçar seu contingente de cinco mil militares na Armênia, na fronteira turca, e estabeleceu um sistema de defesa aérea conjunto com aquele país. (Alguns destes passos, tais como a implantação das forças adicionais na Armênia, podem não acontecer na sequência da aproximação russo-turca, mas a maioria deles provavelmente resistirá.)

Essas mudanças,  uma vez mais, tornaram Ancara vulnerável à coerção russa. Ao mesmo tempo, os interesses estratégicos de Rússia e Turquia divergiram: não só na Síria, mas também na Ucrânia, a qual a Rússia tem trabalhado para desmembrar enquanto a Turquia aprofunda laços, e no Cáucaso, onde a renovada luta entre Armênia e Azerbaijão exacerbou a rivalidade entre Ancara e Moscou na região.

O golpe fracassado na Turquia pode amenizar algumas destas tensões no curto prazo, já que Moscou, ao contrário dos EUA e outros aliados turcos da OTAN, estará disposta a olhar de outra forma a "caça as bruxas" contra oponentes domésticos de Erdogran. Com efeito, a Rússia provavelmente levará vantagem com o distanciamento turco em relação ao Oeste e tentará puxá-la para perto.

Nem importa que a Força Aérea turca, que tanto se irritou com as violações russas do espaço aéreo e incentivou robustas respostas a elas, agora se encontra diante da ira do Erdogan pelo papel central desempenhado no plano para derrubá-lo. (Na verdade, os pilotos que abateram o jato russo estavam entre os presos após o fracasso do golpe).

A longo prazo, porém, as conseqüências do golpe irão exacerbar a insegurança relativa da Turquia. O expurgo de militares conduzido por Erdogran vai deixá-lo menos capaz de resistir à expansão do poder russo, ainda mais com o estranhamento  de seus aliados ocidentais.

Com a Turquia enfrentando as incertezas mais profundas vista em décadas, Erdogan não está em posição de afastar-se de Moscou. Rússia vai continuar a expandir a sua influência na vizinhança compartilhada, oferecendo Ancara apenas a perspectiva de um relacionamento desigual.

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