segunda-feira, 18 de julho de 2016

O dia em que Erdogram foi Chávez: por que engolimos tiranetes

Por Murillo Victorazzo

Os regimes não liberais ( no sentido político, não necessariamente econômico), cuja característica mais perigosa é a extrema concentração de poderes no Executivo e o desprezo pelas minorias, separam-se tanto das democracias de fato como das ditaduras por uma tênue linha. Transitam entre estas com nuances, roupagens democráticas ou cerceamento de direitos em maior ou menor graus, que dificultam a atuação da comunidade internacional e a aplicação de normas em favor dos direitos humanos e liberdades civis.

Em abril de 2002, um grupo de militares chegou a tirar Hugo Chávez do poder. Com o apoio de grandes empresários, inclusive donos de veículos de comunicação, detiveram-no, colocaram no seu lugar Pedro Carmona, presidente de uma das principais entidades patronais, dissolveram o Parlamento e a Corte Suprema e anularam a Constituição de 1999, entre outros atos à margem da lei.

Após repúdio internacional, mobilização popular e reação da outra parte das Forças Armadas, fiéis a seu colega de farda, o levante foi sufocado. Em 48 horas, o presidente reeleito pelo povo dois anos antes estava de novo à frente do Palácio Miraflores.

Umas das principais vozes a se levantar contra a ruptura da ordem constitucional na Venezuela foi o então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, cabeça das pressões e do manifesto assinado por líderes latino-americanos contra a quartelada. Posição oposta a dos Estados Unidos de George W. Bush, que prontamente reconhecera o governo golpista, acompanhado apenas da Espanha.

Embora por razões e em contexto diferentes, aquele filme foi  repetido na última sexta-feira na Turquia, quando o também polêmico presidente Recep Erdogran balançou após parcela das Forças Armadas colocar seus tanques nas ruas e anunciar estar tomando o poder. A "defesa da democracia e dos direitos individuais" era sua justificativa.

Manifestantes em peso desafiaram metralhadoras e blindados e foram às ruas em defesa de Erdogran. Partidos políticos representados no Parlamento, inclusive os de oposição, posicionaram-se ao lado do governo eleito, assim como toda a comunidade internacional - desta vez unanimemente, inclusive os EUA. Em apenas uma madrugada, forças de segurança (militares e policiais) desmobilizaram os rebelados. A rapidez com qual foi derrotado  o movimento, porém, não refletia seu saldo sangrento: cerca de 300 pessoas mortas.

Quando as armas quase o depuseram, Chávez começava a colocar em prática  sua retórica populista-nacionalista.  Expropriara terras, aproximara-se de Fidel Castro e ganhar poderes com a Carta de 1999, referendada por dois terços da população. No entanto, ainda não havia descambado para o autoritarismo explícito visto em anos recentes. Não haviam, por exemplo, notícias de adversários presos.

O ataque à democracia liberal inerente ao projeto chavista já dava sinais. Passos semelhantes aos de Erdogran, que, depois de três mandatos como primeiro-ministro, elegeu-se presidente em 2014, com o voto popular e em primeiro turno. Desde então, com a submissão de primeiros-ministros aliados, vinha acumulando funções alheias às de chefe de Estado, cargo mais protocolar no parlamentarismo turco. Não por outro motivo, trabalhava para  a convocação de nova Constituinte, através da qual se implantaria o presidencialismo.

Considerado até pouco tempo atrás um islamista moderado, capaz de fazer conviver a democracia secular com o Islã político, Erdogran passou a ser visto com preocupação e ceticismo pelo mundo e pela oponentes internos por avançar também o sinal da laicidade fundada por Kemal Atatürk há quase cem anos.

O fim da proibição do uso de véus islâmicos em locais públicos e a tentativa de criminalizar o adultério e proibir a bebida alcoólica me certos locais foram vistos como indicadores da islamização de seu governo. Perseguições a adversários e ataques até policiais à imprensa, sempre sob a retórica típica dos protoditadores da "traição à pátria", tornavam-se mais frequentes.

Reconduzido ao cargo, Chávez se fortaleceu. Reelegeu-se em 2006, após derrotar um referendo revogatório dois anos antes, quando quase 60% dos eleitores disseram querer a continuação de seu mandato. Progressivamente foi  endurecendo o regime, conforme ele se fragilizava economicamente. A cada crítica,  o apoio dos norte-americanos e de empresários ao golpe de 2002 era relembrado para reforçar a ideia de ser vítima de boicotes e conspirações das elites e do "império yankee". Hoje o protoditador Maduro esta aí.

Ainda que rapidamente sustado, as tensões decorrente da última sexta-feira não cessarão imediatamente na Turquia. Mais do que a volta do fantasma das quarteladas, tempos que pareciam ter ficado para trás, o levante expôs graves fissuras no regime turco e dá a Erdogran a oportunidade de, vestido com o mesmo uniforme de vítima, aumentar a perseguição aos seus adversários. Sob  o argumento de, em suas palavras, "eliminar o vírus golpista" do Estado, acelerará o processo de concentração de poderes.

A alusão à volta da pena de morte; as mais de sete mil detenções, entre eles seis mil militares e 755 magistrados; a destituição de 30 dirigentes políticos, como governadores e prefeitos; e a demissão de 8.500 policiais, evidenciam essa direção. Uma verdadeira caça a bruxas se iniciou.  A imagem de um parlamentarismo estável e laico, exemplo raro no Oriente Médio e norte da África, não condiz mais com a verdade.

Aspirante à potência regional - objetivo número um da política externa de Erdogran -, a Turquia é estratégica geopoliticamente, na luta contra o terrorismo e nas discussões sobre refugiados com a União Europeia, além de membro da OTAN. A instabilidade de um país com estas credenciais causa arrepios aos líderes ocidentais. Tudo que não precisam é de um aliado cujo único contraponto a regimes islâmicos seja ditaduras militares, dicotomia comum no Oriente Médio e norte da África.

Algumas vozes acusaram os Estados Unidos de terem se pronunciado contra o golpe somente após evidências de sua insustentabilidade. Integrantes do governo turco foram além: insinuaram digitais norte-americanas no golpe. Teorias que, se não podem ser descartadas, fazem a alegria do presidente turco, que não tardou para pressionar publicamente pela deportação de seu maior inimigo, o clérigo moderado Fethullah Gülen. Radicado na Pensilvânia, ele é acusado de ser o mentor do levante. Pela mesma cartilha usada por Chávez, Erdogran enforca internamente posando de enforcado pelos "imperialistas ocidentais".

Historicamente, os Estados Unidos, quando não apoiaram, foram complacentes com os ditadores seculares, "o mal menor", na luta contra a islamização política de Estados. Em 2013, diante da deposição por militares do islâmico Mohammed Mursi, eleito pelo povo egípcio apenas um ano antes, a diplomacia de Obama "mostrou-se preocupada" com a situação e, com o golpe bem sucedido, suspendeu boa parte da ajuda militar ao país.

Dois anos depois, contudo, cessou a sanção. A luta contra o terrorismo falou mais alto, mesmo não se podendo dizer que o general Abdel-Fattah al-Sisi, eleito em pleito, embora direto, carente de legitimidade e imparcialidade, tivesse colocado o Egito no trilho da democracia. Muito pelo contrário.

Ilações são complicadas de se analisar, pois fogem ao concreto . O fato é que o secretário de Estado, John Kerry, no início da noite de sexta-feira, em conversa por telefone com o chanceler turco, ofereceu "apoio absoluto ao governo eleito". Jogada de cena ou não, uma resposta mais rápida e assertiva do que a emitida sobre Egito, provavelmente por ele e os europeus terem consciência do protagonismo turco na região e, portanto, no contexto atual, dependerem mais da Turquia do que o contrário.

Não se sabe qual seria a reação das potências ocidentais na hipótese de sucesso golpista. Mas, diante dessa dependência, parece pouco provável que, além de estrilar, tivessem espaço de manobra suficiente para pressionar a médio prazo os militares em favor de liberdades e direitos. Do mesmo modo, acontece agora com Erdogran, com a faca e esse queijo para lidar com Estados Unidos e europeus em sua espiral autoritária, eufemismo para, partir de agora, não se dizer ditatorial.

Os regimes não liberais, tornam o mundo mais complexo. Mas é preciso ressaltar que, se eles, por serem mutantes e complexos, embarreiram ações do Ocidente na defesa da democracia,  uma sociedade internacional cujo lastro retórico e normativo seja a manutenção de mandatos constitucionais, mesmo que existam variáveis pragmáticas, cria barreiras para a proliferação de governos autocráticos, sem o mínimo de legitimidade popular. Se não por razões morais, pelo perigo de se abrir precedentes, a objetividade legal é melhor do que a subjetividade política.

A quebra de normas através da força nesses casos, além de ser uma caixa de pandora que como seu alvo, acaba por perseguir e cercear direitos, torna o opressor um falso oprimido. O caminho é a vigilância, a pressão diplomática, a negociação caso a caso, por mais lentos e muitas vezes falhos que sejam.

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