quarta-feira, 8 de abril de 2020

Por que Bolsonaro recuou e não demitiu Mandetta

Por Carolina Botelho* (Nexo, 07/04/2020)

A última segunda-feira (6) foi um dia especialmente tenso para o país. Não pelos motivos ordinários que já estamos nos acostumando a naturalizar em relação ao presidente da República, seus filhos e seus apoiadores. Não, esse dia foi um pouco além. A ameaça real de demissão do único ministro que parece valorizar a ideia de república como se espera de um gestor público tornou-se quase palpável e já havia sido anunciada. Bolsonaro iria mandar embora o seu ministro da Saúde, o único do time que tem se preocupado e agido para poupar vidas num período horrível da história das epidemias com o qual o mundo “quase” todo, ou pelo menos, o mundo “civilizado”, tem se preocupado. 

O presidente ao final do dia voltou atrás, ou melhor dizendo, voltaram atrás na decisão de Bolsonaro. Quem foi? Essa é uma importante interrogação neste momento. Quem fez Bolsonaro voltar atrás? Em uma democracia na qual os eventos ocorrem de maneira tranquila, seria esperado que as instituições políticas e sociais recomendassem ao presidente a prudência necessária diante da ameaça da covid-19, e ele aceitaria.

 No caso brasileiro, as instituições têm cumprido seu papel, mas Bolsonaro despreza todas elas, desqualifica o debate científico e deslegitima os especialistas. O resultado dessa equação é simples, nossa democracia perde diariamente, mas ontem pareceu diferente. Uma grande parcela dos analistas afirma que foram os generais que hoje circulam em torno de Bolsonaro para conter seus “excessos” que exigiram a marcha à ré do presidente. E eu concordo, só que essa não é toda a resposta. Dito isso, reformulo mais uma vez a frase: a quem os generais ouviram para depois fazerem Bolsonaro recuar?

Tenho insistido em um tema muito frequente nos estudos das ciências sociais, aquela ciência mais desprezada e desqualificada por Bolsonaro (por quê?): a teoria das elites. Estudei um pouco sobre ela na graduação e também utilizei a teoria na minha dissertação de mestrado há quase duas décadas. Em 2019, ao oferecer um curso para a graduação, julguei o assunto importante para incluir na bibliografia e não me arrependo. 

Recentemente, o Datafolha mostrou que 51% das pessoas entrevistadas disseram que Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda no combate ao coronavírus e 39% reprovam o presidente de modo geral. Seria algo simples de aceitar, mas esse dado traz um resultado mais interessante. Bolsonaro é mais mal avaliado por mulheres (43% de reprovação), pessoas com curso superior (50%) e mais ricos (acima de 10 salários mínimos mensais, 46%).O presidente dirá que não confia em pesquisa, mas a teoria das elites explica por que o Datafolha está correto e parte dos brasileiros desembarcou da sandice do projeto Bolsonaro. 

Embora a metodologia tenha sido alterada nas últimas pesquisas devido ao isolamento social, entre os mais ricos, a reprovação ao presidente subiu de 28% em dezembro para 46% em abril. A importância desse grupo nas sociedades não é trivial. Bottomore, um teórico das elites, já mostrou que elas são capazes de exercer um verdadeiro poder de veto aos rumos do desenvolvimento econômico e político de um país. 

Como observou Elisa Reis, até as possibilidades de uma mudança gradativa no Brasil dependem consideravelmente da aquiescência das elites. Segundo ela, “a importância das elites está na direção e no controle que elas podem exercer sobre a complexa e difícil transição de uma forma de organização social para outra”. Abram De Swaan tratou da emergência de políticas nacionais de bem-estar social na Europa. Para ele, a percepção das elites sobre os problemas sociais possui um significado fundamental. 

No caso da Europa, e como bem lembrou também Elisa Reis, De Swaan mostra que as elites viram vantagens na coletivização de soluções a problemas sociais e que o poder público tornou-se o agente natural na provisão de “bens de cidadania” como educação, saúde e previdência. Para De Swaan, a elite é, em regra, interesseira e age com o objetivo de evitar os “negative external effects” que ele exemplifica com epidemias, poluição, crimes, rebeliões e migrações. 

No meu estudo realizado no mestrado, a minha hipótese principal sugeria que não há, entre as elites brasileiras, semelhanças com as analisadas por De Swaan, ou seja, não existe entre elas uma consciência sobre a interdependência das classes sociais, o que viabilizaria uma mobilização para a solução dos problemas no Brasil, de forma cooperativa, para facilitar a criação de políticas sociais que favorecessem os pobres. 

Entretanto, até aquele momento, ainda não tínhamos sentido o peso de uma epidemia, ou melhor, de uma pandemia como o que estamos experimentando hoje em nossas vidas. Concretamente falando, a sociedade corre muitos riscos, caso o governo não tome medidas urgentes. Digo toda a sociedade porque os efeitos negativos serão partilhados por todos. Está certo que recairá mais para alguns grupos do que para outros, mas todos vão perder. A começar pela contaminação por um vírus até então pouco conhecido e letal, que entrou no país via elite, mas também pela falta de leitos, a crise econômica que se agravará, a ameaça de convulsão social e de saques pelos grupos que estão desassistidos. 

Todos vão ser afetados.A marcha à ré de Bolsonaro só foi possível porque uma parte considerável do grupo da elite captado pelas pesquisas se sentiu ameaçada. O que por sua vez, não garante longa permanência ao seu ministro da Saúde, mas dá fôlego a algumas políticas de controle da epidemia. Resta saber o que esse grupo pensa sobre a importância da democracia.

*Pesquisadora da PUC-Rio, professora e pós-doutoranda do Ence/IBGE. É doutora em ciência política pelo Iesp/Uerj, mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ e PhD Fellow do CLAS/UC Berkeley (EUA).

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