quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

É o enredo, estúpido

Por Murillo Victorazzo

Parece óbvio dizer, mas vale repetir, já que há gente que ainda não entendeu, inclusive dentro do "mundo do samba": desfile de escola de samba não se resume a avaliações sobre plasticidade de alegorias e fantasias. É, acima de tudo, uma história a ser contada. Uma história carnavalizada, obviamente, mas com fios condutores que unem de forma clara início, meio e fim. Um bom enredo é aquele que foge da banalidade, do trivial, sem apelar para narrativas mirabolantes que acabam por se perder no decorrer da Avenida, deixando mensagens pouco compreensíveis.
 
É um bom enredo, levado aos compositores pelas sinopses, a principal matéria prima para a produção de um bom samba. Um bom samba favorece bateria, harmonia e até evolução. Não por acaso, os melhores enredos desse ano resultaram nos melhores sambas. Imperatriz, Viradouro, Mangueira, Grande Rio e Beija-Flor (esta um pouco atrás) tinham enredos ricos, bem pesquisados, concatenados, inteligíveis.
 
Leandro Vieira sabe como poucos contar uma história diferenciada. E conta quase sempre de forma brilhante em todos os sentidos. Baseada em literatura de cordel, a “história de assombrar, tirar sono mais de mês" mesclou - de forma divertida e com muito bom gosto  - História do país e cultura regional. Uniu o samba ao xaxado. Carnavalizou a ambiguidade moral de Lampião. Todo mundo entendeu e riu do desespero do “rei do cangaço” para fugir do inferno e tentar ser aceito no céu. Brincando sem perder a técnica, a Imperatriz fez muito por merecer o título .

 A vice-campeã Viradouro nos revelou Rosa Maria Egipcíaca, a "santa que o povo aclamou". Provavelmente poucos conheciam história de vida tão bonita, intensa e emblematicamente brasileira: escrava, prostituta que se tornou freira, unia o catolicismo com ritos africanos. Com dons místicos e tida como milagreira, foi por isso torturada pela Inquisição. Foi a primeira preta a escrever um livro no país. Tarcísio Zanon e sua equipe propiciaram à escola niteroiense material para um samba de letra bonita, que, se aparentava ser arrastado, escapou, com ajuda de Mestre Ciça e Zé Paulo, de cair na monotonia. O que se viu foi um desfile leve, emocionante e visualmente belo

Por outro lado, como exemplo distinto, o sempre esperado Paulo Barros, embora de fácil assimilação e plasticamente muito bonita, optou por um enredo banal. Poucas coisas são mais lugar-comum do que falar sobre festas populares na Sapucaí. Não foi coincidência, embora não único motivo, a Vila Isabel ter levado um samba fraco, amenizado pela brilhante bateria do Mestre Macaco Branco, uma das melhores da cidade, e o canto do povo de Noel. "Inovações" visuais estão muito longe de ser tudo em escola de samba. Ao contrário, algumas, gostem ou não, só servem para aumentar o risco de penalização, como a troca de roupa e a construção cênica para o casal de mestre-sala e porta-bandeira. Pouco se tem a ganhar. Apesar dos gritos de “é campeã” do público, o terceiro lugar foi mais condizente.

E o Salgueiro? Bem, era aonde, com dor no coração, queria chegar. "Viagens" metafóricas são arriscadas de se fazer porque perigam se transformar em uma colcha de retalhos de difícil compreensão. Gênios como Joãozinho Trinta, cria da escola por sinal, sabiam realizar magistralmente. Mas foi justamente em homenagem a uma das suas “viagens”, um paraíso contestador que pretendia refletir sobre o que é pecado, que a escola amargou sua pior colocação desde 2007. Foram quinze anos sendo a única escola a estar sempre presente nos desfiles das Campeãs.
 
Um enredo de concepção (e também realização) confusa, compreensivelmente bastante penalizado (9,7/9,8/9,6/9,7), refletiu-se em um medíocre samba-enredo, o pior avaliado entre as doze do Grupo Especial. Não houve fantasias luxuosas e alegorias imponentes que compensassem o suficiente para sonhar com voos maiores. Carros gigantescos, aliás, contribuíram para a perda de pontos em evolução. Nem o amor e o suor de uma comunidade que, apesar de tudo, superou-se e cantou firme e alegremente, levando a escola ser a única a fazer 40 pontos em Harmonia. Não basta ter dois xodós como o casal de mestre-sala e porta-bandeira e a bateria Furiosa, orgulhos salgueirenses, sempre faturando notas máximas. Por sinal, entre todos os casais, também apenas Marcella e Sidclei alcançaram os 40 pontos

Nem se pode falar em frustração, porque surpresa não foi. O desgosto, porém, fica maior sabendo que a escola deixou escapar um dos melhores enredistas do carnaval carioca, salgueirense de coração, hoje nas equipes da Porto da Pedra, campeã do Grupo de Acesso, e da Viradouro. Dos nove quesitos, o Salgueiro gabaritou seis. A Academia do Samba tem tradição, comunidade ativa e, como se vê, muitos pontos fortes. Os poucos pontos fracos ficaram novamente expostos. É só a lição, dessa vez, ter sido aprendida na Silva Telles. E que o “mago” João, lá em cima, em seu paraíso, nos perdoe.

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