sábado, 25 de março de 2023

O caos em dois idiomas

Por Murillo Victorazzo

Há 75 anos, israelenses e palestinos compartilham o caos. Em maior ou menor intensidade, esta é possivelmente a palavra que melhor resume o cenário regional desde que foi declarada a independência de Israel, após, um ano antes, resolução da Assembleia Geral da ONU aprovar a divisão em dois do protetorado britânico da Palestina. O novo país era a concretização, pelo menos em parte, dos ideais da Organização Sionista Mundial, criada no final do século XIX por Theodor Herzl.

O termo, criado por Nathan Birnbaum, deriva do Monte Sião, colina de Jerusalem onde, segundo o Antigo Testamento e a Torá, localizava-se a fortaleza conquistada por David "sob os desígnios de Deus". Ali, Deus havia escolhido manifestar-se ao seu povo e foi a partir de onde Davi expandiu seu reino. Ali, anos mais tarde, seu filho Salomão construiu o primeiro grande templo do judaísmo. Sião passou a ter o mesmo significado bíblico que a cidade sagrada, ao redor da qual os sionistas almejavam a volta do povo judeu livre sob um Estado próprio.

O sionismo articulou-se fomentado pela violenta onda de pogroms contra a comunidade judaica russa perpetrada, entre 1881 e 1883, pela polícia secreta do czar Alexandre III, um massacre que resultou na primeira grande leva de imigrantes judeus para os Estados Unidos. Tantos outros optaram pela Palestina, dando início à primeira Alyia - onda de imigração para a "Terra Prometida". As cerca de seis milhões de mortes causada pelo Holocausto reforçaram na comunidade internacional a necessidade do Estado judeu. O nazismo havia sido derrotado três anos antes da independência, e as chocantes imagens de campos de concentração e de extermínio ainda estavam sendo reveladas ao mundo.

A "Diáspora" milenar se encerrava. A "Terra Prometida" por Deus aos descendentes de Abraão se tornava realidade. No entanto, poucas horas após David Ben-Gurion, no dia 14 de maio de 1948, encabeçar a lista de assinaturas da proclamação de independência, os exércitos de Síria, Egito Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita iniciaram, em três frentes diferentes, um ataque militar ao país recém criado. Os árabes não aceitavam a divisão das terras palestinas, mas, derrotados um ano depois, viram não apenas a consolidação do Estado de Israel como a anexação por ele boa parte dos territórios destinados ao que deveria ser um futuro Estado palestino. A Cisjordânia ficou sob gestão da Jordânia; a Faixa de Gaza, do Egito; e, o mais simbólico, dividiu-se Jerusalém,  cidade sagrada também para cristãos e muçulmanos e que, pela resolução de 1947, deveria permanecer sob jurisdição da ONU: a parte ocidental tornava-se israelense e a oriental, onde se encontra a "Cidade Velha", administrada pelos  jordanianos.
Durante as Guerra dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), Israel anexou a Cisjordânia, Gaza, a parte oriental de Jerusalem, a Colina de Golã síria e a egípcia Península do Sinai, esta devolvida, anos depois, a Cairo. Tirou, em 2005, suas tropas da Faixa de Gaza, mas criação do Estado palestino jamais se firmou e, a cada dia, torna-se mais distante. Os argumentos são inúmeros, não cabe aqui esmiuçá-los. O fato é que quase um milhão de palestinos foram expulsos de suas terras apenas entre 1948-1949. A muitos deles só restou fugir para campos de refugiados. O Direito Internacional foi mandado às favas.

Em 1952, a ONU criou um desses campos na cidade de Jenin, ao norte da Cisjordânia. É esse campo, hoje com cerca de 15 mil pessoas abrigadas em 2,5 quilômetros quadrados, o palco de boa parte das ações da quarta temporada de "Fauda", disponível na Netflix desde o início do ano. O título significa caos em árabe, mas a produção é israelense e narra os embates de uma força especial do Shin Bet (a agência de segurança interna de Israel) contra organizações terroristas islâmicas. Além da expertise militar, o pequeno e secreto grupo se distingue por falar fluentemente árabe, conhecer profundamente a cultura do inimigo e, portanto, conseguir se disfarçar com facilidade em meios aos palestinos, um traço que reforça o ineditismo da série: ela é a primeira de grande porte falada em árabe e hebraico. Dado o constante uso dos dois idiomas em uma mesma cena, a plataforma de streaming utiliza colchetes nas legendas para diferenciar o primeiro.

Protagonista e cocriador da obra, Lior Raz serviu como agente infiltrado de forças de contraterrorismo e viu uma namorada ser assassinada a facadas por um terrorista em Jerusalém. Sua experiência de vida certamente ajudou-lhe a moldar Doron, um amargurado agente que passa pelas quatro temporadas entre o combate e a aposentadoria. Suas escolhas muitas vezes pouco protocolares o colocam na linha tênue entre o heroísmo, a indisciplina e a imprudência, o que o faz viver em um círculo vicioso de erros, traumas e remorsos. Desperta, por isso, a mistura de ira e admiração entre seus chefes e colegas, um equipe que comunga forte amizade e sofre dramas pessoais decorrentes de suas profissões. O histórico militar além dos três anos de alistamento obrigatório não é exclusivo de Raz. Outros atores e produtores também emprestam aos personagens seus currículos como mista'arev (soldado treinado para se infiltrar entre os civis árabes)

Apesar de israelense, "Fauda" parece desejar dosar nas cores quando retrata terroristas. Obviamente não se busca relativizar suas atrocidades; os 'vilões" são nítidos. Mas Raz e Avi Issacharoff, o outro criador da obra, abordam as distintas motivações que podem levar um jovem ao extremismo. Expõe as particularidades do conflito, como a não rara vingança pessoal, que se entrelaça às razões e dinâmicas militar, política e religiosas, numa espiral de sangue que ultrapassa gerações de famílias. Mortes que se retroalimentam e empurram, seja com arma na mão ou bala no peito, gente que pouco ou nada tinha a ver com uma guerra intermitente com feições de guerrilha urbana. Um conflito em que inimigos, pouco visíveis e muito difusos, convivem diariamente, misturados a uma proporção muito maior de inocentes. Quase sempre em um espaço geográfico estreito e densamente povoado.

Acima de tudo, a série tem a virtude de destacar o sofrimento e os dilemas de familiares e conhecidos dos terroristas: pais que se desesperam com a "perda" de seus filhos para essas organizações, a ponto de correrem risco de vida por, desesperados, confrontar os líderes; esposas abandonadas, outros, contudo, compreensivas ou mesmo incentivadoras. Parentes que não escolheram a violência, mas, de repente, se veem no meio dela. Cidadãos comuns coagidos pelas armas a ceder suas propriedades para ataques criminosos. Nesta mais recente temporada, o fio condutor é a encruzilhada legal, afetiva e profissional de Maya (Lucy Ayub), uma palestina irmã de um terrorista, casada com um israelense e, assim como o marido, policial do Estado de Israel.

"Fauda" consegue assim explicar - para quem tem boa vontade, claro - que humanizar personagens não é fazer falsas equivalências, ainda que sutilmente critique políticas de Israel, "um país que ocupa e mata crianças", como acusa, na série, um libanês. Deixa no ar, por exemplo, se algumas práticas fora da legalidade do protagonista, na velha máxima dos fins que justificam os meios, não o nivelam ao inimigo.

Quem acompanha a série desde o início pode ainda notar como os produtores optaram por, em cada temporada, antagonizar a equipe de Doron com vertentes diferentes do terrorismo. Na primeira (2015) e terceira temporada- esta passada basicamente na Faixa de Gaza, os algozes são membros do Hamas; na segunda, é a vez do Estado Islâmico; e, nesta última, do Hezbollah. Ao chamar ao palco o grupo xiita libanês, "Fauda" internacionaliza sua trama, o que, como consequência, coloca em cena o Mossad, a conhecida e temida agência de inteligência externa israelense, e faz abordar, embora superficialmente, a rivalidade entre xiitas e sunitas.

O Hezbollah não é "apenas" mais um grupo terrorista. Fundado em reação à invasão israelense em 1982, é, além de um partido com presença relevante no Parlamento libanês, uma milícia fortemente organizada, treinada pela Guarda Revolucionária Iraniana e com estrutura similar ao do próprio Exército do país. Por ocupar parcelas do território do Líbano e organizar nessas regiões ações sociais paralelas às do governo oficial, muitos consideram-no um Estado dentro do Estado. Um apêndice do Irã entre os libaneses, cumplicidade discutida quando se aproxima o clímax da série. "Eles [os iranianos] não estão nem aí para vocês. Veja o que eles fizeram com o seu país. Beirute era considerada a Paris do Oriente Médio. Em vez de nomearem um governo, destruíram o Estado", acusa um agente israelense em diálogo com um líder da organização, que, financiada também por Damasco, tem células na Europa, ponto inicial da temporada. Além de Jenin e Tel Aviv, os personagens, por isso, percorrem Bruxelas, a fronteira sírio-libanesa e Beirute.

Em situações não apenas da quarta temporada, Raz e Issacharoff abordam ainda a delicada situação do Fatah, partido rival do Hamas e que comanda a Autoridade Palestina na Cisjordânia. Os casos de corrupção dessa incipiente burocracia é terreno fértil para a perda de sua legitimidade perante os palestinos. Um sentimento que reforça, para alguns, a percepção de subserviência à Tel-Aviv e serve, portanto, como ímã para o extremismo.

Para Issacharoff, essas nuances são o segredo do sucesso de "Fauda", eleita pelo New York Times a melhor série internacional de 2017, ano da segunda temporada. Em 2019, o jornal americano colocou-a em oitavo lugar entre as melhores da década. Segundo ele, até membros do Hamas assistem: "Eles falam comigo sobre isso. Alguns membros presos em cadeias de Israel já me pediram links para assistir aos episódios”, afirmou à Folha de São Paulo ainda durante as gravações da terceira temporada, lembrando do dia em que, esperando um líder da organização para fazer uma entrevista, um dos soldados comentou: “As coisas não acontecem exatamente assim como está no seriado. Mas é bem parecido”.

"Por 40 minutos, eles [o Hamas] conseguem se pôr no lugar do outro e sentir o que eles sentem. Isso é incrível. Parte do segredo aqui é que nós não tentamos julgar ninguém. Isso confunde as pessoas, mas as deixa muito curiosas (...) Comecei a receber e-mails de israelenses falando que, pela primeira vez na vida, estão compreendendo e tendo pena do outro lado”, afirma.

Talvez não seja bem por aí. Em seu site, o Hamas acusou a série de "criminalizar os palestinos" e estimular a ocupação "sionista". Não suficiente, foi além e iniciou a gravação de "Os punhos dos homens livres" (tradução livre), trama toda passada na Faixa de Gaza, com o intuito de mostrar o que entendem ser a versão palestina sobre o assunto. O grupo terrorista administra o território e lá controla o canal de TV Al Aqsa. Em entrevista à France Express (AFP) no início do ano, o diretor Mohamed Soraya assegurou que, “em Gaza, não é boa ideia admitir que assistiu" à produção israelense. Até mesmo o prestigiado jornal israelense Hareetz abriu espaço para artigos com títulos como "´Fauda` não é apenas ignorante, desonesto é absurda. É uma incitação anti-palestina" e "Como ´Fauda` romantizou o lado mais repugnante da ocupação israelense".

Certos ou errados, a série, de fato, busca mostrar aos israelenses que, entre os palestinos, há repulsa ao terrorismo. No entanto, se logo no primeiro episódio da primeira temporada, um deles tem seu carro confiscado ilegalmente por guardas israelenses, aspectos mais graves da ocupação, como despejos e a expansão de colônias judaicas na Cisjordânia, não ganham espaço. Nada se diz da dinâmica política interna de Israel, em um momento em que autoridades e parlamentares do governo mais à direita  de sua História vêm perdendo o pudor, com propostas que oficializam a segregação. Semana passada, o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, gravou um vídeo em que afirma que "não há história ou cultura palestinas. Não existe povo palestino". Uma declaração que lembra a de Putin a respeito da Ucrânia dias antes de invadir o país. A velha simbiose dos extremos...

A Questão Palestina é um conflito regional que irradia tensões e suscita acalorados debates pelo mundo. Em todos os países, setores da direita se alinham automaticamente aos argumentos do premiê Benjamin Netanyahu e seu partido, o Likud, enquanto setores da esquerda agem igual no sentido inverso, sempre repetindo palavras de ordem e preconcepções. De um lado, alguns confundem crítica ao governo de plantão israelense com antissemitismo; do outro, camuflam antissemitismo e/ou antissionismo com a luta pelo Estado palestino. Uns ignoram o direito de defesa de Israel, cercado por grupos terroristas que, por definição, não diferenciam alvos militares da população civil e explicitamente negam seu direito de existência; outros minimizam a legitimidade da constituição de uma Palestina independente e os vários casos de desrespeito aos Direitos Humanos nos territórios ocupados. Para uns, Israel é cúmplice do "imperialismo" norte-americano; para outros, o Islã é "ameaça ao Ocidente". Nesse binarismo histérico e raso, todo israelense torna-se um racista defensor do "apartheid" na Cisjordânia e Faixa de Gaza e todo palestino, terrorista ou conivente ao terror. As reações à série, portanto, são esperadas. É possível inclusive que alguém perceba essa resenha como parcial também. Ideologias exacerbadas enviesam interpretações de textos.

Seja como for, para quem prefere fugir a essas questões, 'Fauda" é, mais do que tudo, um excelente thriller militar, com longas e bem treinadas cenas de combate que tiram nosso fôlego e congelam nossos olhos em frente à TV. A experiência real dos atores é um ativo. Cenários quase sempre movimentados e barulhentos, uma direção ágil e a mão nervosa de câmeras em constantes movimentos são garantias de angústia e adrenalina em todos os 12 episódios. Sangue não falta, mas longe de ser uma carnificina vulgar. Mas, possivelmente por priorizar esse perfil, joga sem grandes explicações siglas, órgãos e fatos históricos, o que pode deixar os menos informados um poucos perdidos. É agradável para quem curte conhecer dogmas, ritos e cerimônias muçulmanas e judaicas. Muitas dessas ocasiões, por sinal, servem de pano de fundo para o que virá depois: a ação de Doron e amigos, o que é bastante emblemático.

Lançada pela emissora Yes, esse thriller, contudo, diferencia-se dos demais do gênero por nos dar um final nem sempre feliz, as vitórias serem momentâneas e ambos os lados, de alguma forma, sempre perderem. Talvez por isso seja a obra mais vista na história do canal. Na busca pela verossimilhança, contou com (in) felizes coincidências. Pouco antes da terceira temporada ir ao ar, uma ação do exército israelense foi descoberta enquanto realizava uma ação secreta na Faixa de Gaza. Soldados israelenses de origem árabe entraram em Gaza à paisana, mas foram identificados por militantes do Hamas, causando a morte de um coronel. O mesmo local e enredo semelhante da ficção. 

Em janeiro, enquanto chegava na Netflix a quarta temporada, o governo de Israel deflagrou uma operação no campo de refugiados de Jenin que resultou em nove mortos, entre eles uma idosa. Sob a justificativa de se antecipar a atentados, agentes à paisana entraram escondidos em um caminhão frigorífico. Um apartamento situado no meio de Jenin foi cercado. A semelhança com a série chama a atenção. Em março, outra operação terminou com quatro vítimas fatais; uma delas, um adolescente. Imagens que remetem à Operação Escudo Defensivo, tragédia de 20 anos atrás que entrou pra História como o “Massacre de Jenin”: em meio à Segunda Intifada, foram enviados 150 tanques, o campo foi sitiado, a eletricidade cortada, em uma feroz batalha com saldo de, segundo a ONU, 56 palestinos mortos, entre crianças, idosos, mulheres e terroristas. Não por acaso, a operação é citada em “ Fauda” como algo a ser evitado. “Acho que a realidade é sempre mais forte que a ficção. Está sempre um passo à nossa frente”, diz Issacharoff. 

"Fauda" é também um jargão militar israelense utilizado para se referir a uma operação fracassada, com perdas elevadas. O título não poderia condizer melhor com a trama, que, se não é imparcial, como muito dificilmente seria, escapa do maniqueísmo barato. Para evitar spoiler, uma dica apenas: o final é repleto de simbolismo. O caos, afinal, é bilíngue.

       "Ouça, Ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor".

     ["'Em nome de Alá, o Clemente, o Misericordioso, Soberano no Dia do Juízo"]

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