domingo, 16 de abril de 2023

A overdose de Lula na Guerra da Ucrânia

Por Murillo Victorazzo

Tão patológico quanto o americanismo deslumbrado de setores da direita liberal da sociedade brasileira é o antiamericanismo anacrônico de setores da esquerda. Preconcepções assim costumam empobrecer não só estratégias de política de externa como o debate sobre ela na opinião pública, imprensa e Parlamento. A interpretação das ações diplomáticas acaba por ser em função do ângulo ideológico do crítico. Essa discussão foi reacesa na última semana, quando o presidente Lula foi recebido com pompas pelo presidente chinês, Xi Jinping. Na ocasião, entre outras alfinetadas nos Estados Unidos, Lula afirmou que a superpotência "precisava parar de incentivar” a guerra na Ucrânia e que "a decisão dessa guerra fora tomada por dois países” - no caso o invasor e o invadido. Críticas em resposta não faltaram. E com razão.
O filme, de certa forma, não é novo. A diplomacia “ativa e altiva” de Lula em seus dois primeiros mandatos, com foco na cooperação "Sul-Sul" e busca por protagonismo internacional, foi muitas vezes rotulada como “antiamericanismo esquerdista”. No entanto, sem ignorar esse óbvio viés em um partido como o PT, é tradição no Itamaraty a busca da “autonomia”, seja pela "distância", "integração" ou "diversificação", como diversos governos expressaram suas políticas externas. Com breves períodos de exceção, como nos governos Dutra, Castelo Branco e Bolsonaro, não é da natureza do Itamaraty alinhamentos automáticos.

Ir a reboque de uma potência (bandwagoning) é custoso e pouco funcional qualquer que seja ela. Interesses nem sempre convergem e congela-se os passos do país mais fraco, preso ao "bom humor" do mais forte para obtenção de ganhos. Quando explicável, o é em circunstâncias específicas. Dutra foi o primeiro presidente eleito após o fim da II Guerra Mundial. Com o Brasil recém saído da ditadura varguista, alinhar-se à potência vencedora que emergia como líder do polo democrático parecia natural. Iniciava-se a Guerra Fria. Castelo Branco chegou ao poder através do golpe militar de 1964, que fora não só apoiado como insuflado pelos Estados Unidos. Tropas do país estavam no Atlântico caso Jango resistisse ( a Operação Brother Sam). Era preciso a qualquer custo manter esse apoio para a consolidação do novo regime. 

Em ambos os casos, porém, não tardou para que as ilusões acerca das vantagens prometidas viessem à tona. O afastamento decorrente desses dois momentos teve na Política Externa Independente (PEI), de Jânio e Jango, e o Pragmatismo Responsável, de Geisel, seus exemplos mais marcantes. Bolsonaro foi ainda mais sem sentido. Em um cenário externo que não se explicava, criou uma espécie esdrúxula de bandwagoning, na qual o alinhamento não era nem aos Estados Unidos em si, mas ao projeto de poder do inquilino de plantão na Casa Branca. Exceto o status de "alinhado preferencial extra-OTAN", nada ganhou. Derrotado Trump, o isolamento mundial veio.

É compreensível o interesse de potências médias por uma ordem internacional que não seja unipolar e baseada no multilateralismo. Quanto mais forte for o hegemon, mais fraca é a governança multilateral. Quanto mais fraca as instâncias multilaterais, menos espaço esses países terão para tentar projetar seus parcos recursos de poder e serem ouvidos. Mesmo assim, nos oito primeiros anos de Lula no Planalto, sua política externa não se pautou pela defesa da ruptura da ordem global. Os princípios não eram contestados, mas sim algumas de suas regras, entendidas injustas para países com a pretensão do Brasil.

Fazia sentido, por isso, que o Brasil, na primeira década do século, optasse por balancear o poder ( balancing, como conceituado) com os “países emergentes”, à época em forte expansão econômica. Era a época do foguete brasileiro subindo na capa da Economist, quem não se lembra? Daí surgiu os Brics, termo por sinal cunhado por um banqueiro. O Brasil assim recolocou na lista de prioridades uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU e liderou o processo de consolidação do G-20. Explicava-se ainda o olhar voltado à África e a integração sul-americana como meio de projeção. Não sendo desenvolvido, mas mais rico do que estes, o Brasil, como potência regional, se apresentaria nas disputas na arena internacional como o porta-voz dos mais pobres, reforçando suas cartas no jogo.

Para o americanista patológico, contudo, qualquer diversificação de parceiros e posições que se choquem com as dos Estados Unidos são tachadas de antiamericanismo. Ignoram, por exemplo, que, embora consensos fossem inevitavelmente difíceis em certas agendas, o diálogo entre Lula e o conservador George W. Bush foi positivo. Pessoalmente inclusive houve simpatia mútua, com o norte-americano vendo no brasileiro um interlocutor junto a Hugo Chavez. O petista, aos olhos da Casa Branca, era o “irmão mais velho”, moderado e confiável, do "caçula rebelde" venezuelano. 

Em seu livro "18 dias: quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush", o professor de Relações Internacionais da FGV Matias Spektor narra um telefonema dado por Lula ao republicano: "´Se vocês querem tranquilidade na Vene­zuela, eu estou disposto a ajudar. Agora, cada vez que a Con­doleezza [Rice, então secretária de Estado] bate no Chávez, ele tem um bom pretexto para fazer uma passeata contra vocês!` Bush ouviu e os artigos de Rice [em jornais] cessaram”. No mesmo livro, Lula admite: “Muita gente estranha quando eu digo isso, mas eu tive uma relação muito boa com Bush. Nós estivemos perto de construir uma parceria estratégica”.

Por outro lado, na esquerda repete-se até hoje como mantra que a política externa de Fernando Henrique foi “entreguista” e “subserviente” a Washington. Os anos 90 foram o auge da unipolaridade norte-americana, e o processo de estabilização econômica exigia uma aproximação com eles. O fim da década de 80 marcara não um antagonismo, mas um vácuo entre os dois países, e antes, como citado, exceto com Castelo Branco e ao contrario do que o senso comum simplifica, a ditadura militar, ainda que compartilhando a aversão ao lado soviético, entrou constantemente em choque com a superpotência capitalista. Os focos de embate iam desde Direitos Humanos até o acordo nuclear com Alemanha e a critica ao “congelamento de poder” na ONU.

Na visão dos tucanos, voltar a estar no radar norte-americano e participar do mainstream do sistema internacional, cuja liderança pelos Estados Unidos não tinha como ser contestada, era fundamental para sair do isolamento. Aderiu-se então às normas internacionais da ordem global liberal, mas sem haver um alinhamento. A recusa em apoiar o Plano Colombia ( acordo entre Bogotá e Washington contra o narcotráfico que previa financiamento, envio e treinamento militar norte-americano) e, embora com concepção distinta a de Lula, a atenção dada ao Mercosul são exemplos da preocupação em afastar o hegemon do nosso quintal. Se não colocou a pá de cal na Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) como fez seu sucessor, Fernando Henrique postergou o quanto pode as negociações, vistas com ceticismo por setores do Itamaraty e da indústria nacional.

De fato, após quatro anos da mais anômala politica externa que tivemos, na verdade um amontoado de palavras de ordem e espantalhos ideológicos, o Brasil voltou ao cenário internacional. A postura proativa na agenda ambiental merece elogios. Em pouco mais de três meses de governo, é sintomático Lula já ter sido recebido pelos presidentes das duas maiores economias do mundo. Que os chineses tenham remarcado rapidamente a visita após o adiamento causado por sua pneumonia é evidencia da relevância do encontro para Pequim, interessado em retornar à maturidade uma relação afetada pelo tosco anticomunismo de rede social de Bolsonaro. Simbolismos e protocolos norteiam a diplomacia.

Mas outros sinais também foram vistos durante as duas viagens. Enquanto Lula voltou de mãos abanando da visita a Washington, de Pequim trouxe 15 acordos assinados, entre eles a construção de um novo satélite de monitoramento e memorando sobre cooperação no desenvolvimento de tecnologia de informação. No total, uma promessa de investimentos de cerca de US$ 50 bilhões. Nem mesmo o discurso ambientalista durante a campanha eleitoral de 2020 fez com que Joe Biden abrisse os bolsos para o Fundo Amazônia. A promessa de doação de irrisórios U$$ 50 milhões constrangeu o Itamaraty.

Não é de hoje que os Estados Unidos não colocam a América Latina na sua lista de prioridades. Com o fim da Guerra Fria, acabou a necessidade de manter longe da região regimes satélites de Moscou. A Guerra ao Terror, declarada após o 11/9, moveu de vez o radar para o outro lado do oceano. Hoje as pautas que o mobilizam na região se resumem ao combate às drogas, à imigração irregular e a manutenção do embargo a Cuba. 

Nos anos que antecederam à II Guerra Mundial, Getúlio Vargas baseou sua política externa pela "equidistância pragmática" entre Estados Unidos e Alemanha. Utilizou-se do acirramento da disputa econômica entre os dois países a fim de barganhar vantagens para seu projeto de industrialização. Era de conhecimento de Washington as vozes simpáticas aos nazistas dentro do governo brasileiro, como seu ministro da Guerra, general Gois Monteiro, e o chefe da polícia do Distrito Federal, Filinto Müller. Foi através desse movimento pendular que o Brasil conseguiu o financiamento norte-americano para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). 

A China hoje é a maior parceira comercial dos países da América do Sul. O Uruguai, governado pelo direitista Lacalle Pou, está finalizando um acordo de livre-comércio com a potência asiática, motivo de rusgas com o Brasil, por enfraquecer Mercosul, cujo pilar é a negociação coletiva. "Os governos latino-americanos querem oportunidades de negócios e criação de empregos. E a China pode oferecer isso de alguma forma", resumiu ao jornal "O Globo" Xiaoyu Pu, cientista político da Universidade de Nevada.

 Diante desse panorama, algumas críticas feitas após a visita de Lula aos chineses são exageradas. Mesmo com viabilidade incerta, a desdolarização do sistema internacional já está em curso, com experimentos de comércio bilateral por meio de compensações e ensaios de moedas comuns que tentam fortalecer a integração econômica entre determinadas regiões. "Aderir firmemente ao princípio de uma só China", como diz o comunicado bilateral, não é novidade. Desde 1974, quando o Brasil reconheceu o regime de Pequim, consideramos Taiwan "parte inseparável" dele, posição, aliás, de mais de 180 nações, inclusive União Europeia e Estados Unidos, apesar da ambiguidade recente deste. Trump e Biden sinalizaram retaliação caso Xi Jinping parta para ações bélicas contra a ilha. Os exercícios militares de norte-americanos nas Filipinas uma semana após os chineses agirem igual no Estreito de Taiwan elevaram a tensão na região e fez com que, ao reiterar seu posicionamento histórico, o Brasil passasse a imagem de apoiar as pretensões de Pequim.

Em tese, portanto, usar como barganha os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), grupo composto por três democracias ( ainda que imperfeitas) e duas autocracias, é pragmatismo, não simples ideologia. Princípios contam nas relações internacionais, mas sempre são modulados pelos interesses, como mostra o próprio Estados Unidos e sua política externa de seletiva ênfase na democracia. Ver com bons olhos um mundo multipolar não é necessariamente alinhar-se ideologicamente aos autocratas chines e russo, e a não adesão brasileira à Iniciativa Cinturão e Rota, mega projeto de infraestrutura chinês, com tentáculos em diversos continentes, pode ser uma prova. Vinte e um países latino-americanos fazem parte da iniciativa.  

Entretanto, uma linha tênue separa as duas intepretações. Uma relevante linha na qual a retórica ganha maior peso. Nada justifica, especialmente em território chinês, a subida de tom de Lula contra os Estados Unidos. Ainda pior quando apela a falsas equivalências sobre a guerra na Ucrânia. O presidente brasileiro já havia sido criticado quando sugeriu que a Crimeia, anexada pelos russos em 2014, ficasse de fora das negociações. Dando-lhe o benefício da dúvida, não há como negar que, de forma realista, Putin jamais retrocederá na conquista da península, onde até um polêmico referendo já foi realizado para referendar o domínio de Moscou, status quo até 1954. Na região, encontra-se, por acordo de décadas, a base da Frota Naval russa do Mar Negro. 
 
Sim, é falacioso dividir o conflito na Ucrânia como um choque entre democracias e autocracias. É compreensível que soe hipócrita a defesa dos direitos humanos pela Casa Branca. Sim, a OTAN pecou por expandir seu alcance para as fronteiras russas. Não é mentira que o Ocidente pressionou pela aprovação no Parlamento ucraniano do pedido para entrada na aliança transatlântica - assim como Vladimir Putin pressionou em sentido contrário, ambos os lados incentivando a queda de governos contrários ao que lhes interessa. Mas a escolha foi soberana e há apenas um agressor. Há um país invasor e uma nação invadida. Nenhuma escola russa está sendo atacada. Nenhum hospital russo está sendo bombardeado. Nenhuma criança russa está sendo deslocada à força. Nenhuma cidade russa está sendo destruída. Nenhum civil russo morreu. É disto que se trata.

O próprio sistema de segurança coletiva, base legal da ONU, prevê que uma guerra só é legítima como defesa a uma agressão e com a aprovação da comunidade internacional, representada pela organização, que tem na Rússia uma de suas fundadoras e membro permanente do Conselho de Segurança. Sim, os Estado Unidos agiram igual no Iraque, e o Brasil, à época também sob o governo Lula, também condenou acertadamente. Além do direito internacional rasgado pelo autocrata russo, a Constituição brasileira, em seu artigo 4º, diz que nossa política externa se regerá pela autodeterminação dos povos e a não intervenção. "Putin e Zelensky nada fazem para parar a guerra", declarou Lula. Se Putin parar de atacar, a guerra acaba. Se Zelensky parar de se defender, quem acaba é a Ucrânia. Em essência, a fala é tomar partido de um lado sob o manto da neutralidade.

As reações logo vieram. A Casa Branca obviamente considerou "profundamente problemática" as declarações; nada mais do que uma "repetição da propaganda russa e chinesa" sem "olhar para os fatos". Alguns governos da União Europeia ainda preferem ver Lula como uma ponte entre ocidentais e russos. Para estes, suas falas seriam acenos ao Kremlin de que é um interlocutor confiável. Outros, porém, já não o veem com legitimidade para esse papel. Não há espaço para relativizar a invasão, afirmam. As críticas chegaram até ao Parlamento de Portugal, onde o presidente brasileiro discursará na próxima semana. O líder de um partido de centro-direita disparou: "A Assembleia da República que convidou Zelenski para discursar não pode receber um aliado de Putin. E o presidente que atribuiu a Ordem da Liberdade a Zelenski não pode estar confortável com a presença de um aliado de Putin como Lula na Assembleia da República."

Nesta segunda-feira, dia 17, Lula recebeu no Palácio do Planalto o chanceler russo, Sergei Lavrov, o que por si só pouco diz, desde que brevemente receba alguém de alto nível do governo ucraniano. Em entrevista coletiva ao lado de seu homólogo brasileiro, Mauro Vieira, Lavrov afirmou que "as abordagens de Brasil e Rússia de questões que acontecem hoje no mundo são similares". Vieira voltou a criticar a imposição de sanções unilaterais, fora da ONU, outro traço tradicional do Itamaraty. Ano passado o governo Bolsonaro votou contra resoluções com esse mesmo fim no Conselho de Segurança. Perguntado, mais tarde, sobre o comentário russo, escapou sem refutá-lo: "A conversa, tanto comigo como com o presidente, não entrou em quadro de guerra. Falamos de paz. Reiteramos que o Brasil está disposto a cooperar com a paz". 

São ambiguidades semelhantes às com as ditaduras venezuelana e nicaraguense. A visita do assessor para assuntos internacionais do governo, o ex-chanceler Celso Amorim, a Nicolas Maduro rendeu críticas na parcela bem à direita da sociedade brasileira, mas reabrir o diálogo com Caracas é fundamental caso o Brasil queira reassumir a liderança regional. É necessário voltar a ter papel protagonista nas negociações acerca da infindável crise venezuelana, e os laços históricos do chavismo com o PT são um ativo. As bravatas ideológicas de Bolsonaro, que o levaram a romper relações diplomáticas com a Venezuela e reconhecer um presidente e uma embaixadora fakes serviram apenas para agradar Trump e sua base mais incendiária, que ignora a contradição de exaltar liberdade enquanto namora com afinco as monarquias teocráticas do Oriente Médio e o regime de Victor Orbán, na Hungria. Sem falar nas antigas exaltações a Pinochet, Medici e Stroessner... 

O diversionismo ideológico do governo anterior abriu espaço para russos e chineses cacifarem-se para esse papel que deveria ser de Brasília. No entanto, a dificuldade em externar rejeição ao autoritarismo chavista fragiliza a credibilidade do movimento de Amorim. Reforça a imagem não de mediador, mas a de cúmplice, já arraigada em parcela da população. Na mesma linha, embora tenha anunciado acolher os refugiados do regime nicaraguense, a diplomacia brasileira negou-se a aderir à declaração do Conselho de Direitos Humanos da ONU, assinada por 55 países, que condena as violações contra os direitos humanos do governo de Daniel Ortega. A justificativa foi discordar do tom, um empecilho a "um canal de diálogo". O silêncio, porém, joga contra.

 Com a derrota de Trump, Bolsonaro se escudou no líder russo para tentar atenuar o isolamento. Não hesitou em viajar à Moscou quando se sabia que Putin estava contando as horas para atravessar seus tanques e disparar mísseis. Ao abraçar Bolsonaro, o russo cutucava Biden e a União Europeia, outro alvo ideológico do bolsonarismo. No Kremlim, o brasileiro disse ser "solidário à Rússia", ter um "casamento perfeito", com Putin e que este "buscava a paz". Assim como Lula hoje, Washington e Bruxelas, apesar do voto brasileiro a favor da condenação da invasão russa na ONU, entenderam aqueles movimentos não como neutralidade, mas como apoio, ainda que disfarçado. 

Os reacionários de Bolsonaro veem Putin como a ponta de lança na batalha contra o "globalismo" uma visão compartilhada pela extrema-direita do próprio Estados Unidos, em contraste com os republicanos tradicionais, independentes e democratas, unidos no apoio à Ucrânia. São frequentes, nessas redes e grupos, elogios ao russo, contra Biden e Macron, representantes dos valores progressistas, causa da "decadência" do Ocidente.

Ironicamente, setores da militância petista e de outros grupos da esquerda clássica veem o mesmo déspota como a ponta de lança na batalha contra o "imperialismo" norte-americano e a OTAN, seu principal instrumento. Pipocam entre eles a relativização da agressão à Ucrânia, "fantoche" do Ocidente. Insistem em repetir a propaganda do Kremlin sobre "desnazificação" do país e o direito à suposta defesa preventiva. Não importa que Putin persiga movimentos sociais que aqui dizem defender nem que de socialismo hoje na Rússia exista apenas o mausoléu de Lênin e outras estátuas. Putin comanda um regime fascistóide e plutocrático, mas a patologia os prende aos grêmios estudantis e células clandestinas da década de 60.

Lula recentemente foi convidado pelo primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, a participar da reunião do G7, o grupo das sete democracias mais ricas do mundo, a ser realizada no final de maio em Hiroshima. Desde 2008, quando o Brasil estava sob seu segundo mandato, esse convite não era feito ao país. É mais uma mostra da boa vontade do Ocidente com o petista, depois de quatro anos da excrescência bolsonarista. Sem até agora confirmar presença, restringiu-se a criticar a ausência da "segunda, ou primeira, dependendo como se analisa, maior economia do mundo" (a China) no grupo. “O G-20 é coisa muito mais importante”,  desdenhou.

Percepções são subjetivas, mas a sensação que fica é que, de forma semelhante ao do seu antecessor, Lula almeja manter um pé nas tradições do Itamaraty e outro nas idiossincrasias de sua base mais fiel. Mas, quanto mais se agravar a disputa entre Washington e Pequim/Moscou, mais a linha se atenuará. Vargas, ainda que tardiamente, teve que optar por um lado, chegando a mandar tropas contra o Eixo na Itália. Nesse quadro instável, cada movimento no tabuleiro precisa ser meticulosamente pensado, incluindo declarações presidenciais.

A dinâmica política, especialmente a internacional, não é binária, para espanto de militantes. Não dá pra negar, contudo, que os últimos passos da diplomacia brasileira colocaram em risco a autoimagem neutra, o que, se não por princípios morais, é péssima para o almejado papel protagonista de mediador da paz mundial, roupagem que Lula tanto busca usar. Ainda por cima, ofuscaram o êxito da viagem em termos econômicos. O tom se dissociou da ideia. É a velha máxima: a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

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