sábado, 22 de abril de 2023

Uma pintura de livro

Por Murillo Victorazzo

Mais do que ligar dois mares, o Estreito de Bósforo carrega consigo o simbolismo de, dentro das fronteiras da Turquia, separar a Europa da Ásia, o que dá à principal cidade do país a singularidade de ser o único grande centro urbano do mundo localizado em dois continentes. E não é qualquer cidade. Hoje a mais populosa entre as europeias, a bela Istambul, outrora chamada de Bizâncio e Constantinopla, insere-se de modo protagonista na História. Antiga capital do Império Bizantino - o "Império Romano do Oriente"-, sua tomada pelos turco otomanos, em 1453, é a linha divisória entre a Idade Média e a Idade Moderna. Melhor palco, portanto, não haveria para a literatura discorrer a respeito dos contrastes entre as culturas ocidental e islâmica.

É essa Istambul, mas lá no final do século XVI, que serve de cenário para “Meu nome é vermelho”, o premiado livro de Orhan Pamuk, já traduzido em 60 idiomas. Passada um ano após o armistício entre turco otomanos e persas, a trama se desenvolve a partir do assassinato de um dos ilustradores da equipe contratada pelo sultão para produzir, sob sigilo, um livro em celebração ao milésimo aniversário da Hégira, a fuga de Maomé para Medina, a ser celebrada no ano seguinte.

A Hégira é entendida pelos seguidores de Maomé como o início da expansão do Islã como religião, tendo sido, por isso, convencionada como o ano I do calendário muçulmano (o ano 622 dos cristãos). O livro encomendado deve assim servir como prova da superioridade da cultura islâmica em relação à dos "infiéis" europeus e demonstração da riqueza do Império Turco Otomano, um gigantesco território multilíngue cujas fronteiras iam do sudeste europeu até além de terras mesopotâmicas, passando pelo norte africano. "Um símbolo do vitorioso poder do Califa do Islã, Nosso Glorioso Sultão", nas palavras de Tio Efêndi, o chefe da equipe.
Entretanto, diferente da outras obras financiadas pelo monarca, nesta ele exige a utilização de técnicas da Itália renascentista, o que, para alguns, "trai as regras sagradas da nossa arte e atentam contra a religião”. Suas intenções secretas desencadeiam uma série de intrigas que culmina na morte de Elegante Efêndi. A trama de Pamuk, contudo, é mais do que um romance policial. É também um caso de amor proibido e, antes de tudo, uma aula de costumes islâmicos e de História turca. Não é absurdo dizer que, diante de tamanha beleza estilística e assuntos mais profundos, descobrir o autor do crime torna-se secundário.

São 568 páginas repletas de passagens reflexivas, filosóficas até, com inúmeros contos, provérbios e parábolas característicos do Islã. Alguns trechos abordam diferenças entre interpretações do Alcorão, expondo a miopia intelectual dos que veem os que professam essa fé como uma massa homogênea. É, inclusive, ponto relevante na motivação do crime a aversão fundamentalista do hodja (pregador) de Erzurum aos cantos, danças, "orgias gastronômicas" e "idolatria" à "santuários de mortos” dos sufistas, acusados por ele e seus simpatizantes de deturparem o Islã, degeneração responsável pela carestia, epidemias e derrotas militares. Ficamos também sabendo, por exemplo, que Efêndi não é sobrenome, mas uma forma de tratamento respeitoso aos homens na região. Dilemas existenciais não faltam, e é essa diversidade de gêneros que torna a história mais especial, dada a maestria com que o autor oscila harmonicamente entre eles, embaralhados muitas vezes em um mesmo capítulo.

Vencedor do Prêmio Nobel de 2006, Pamuk, hoje o principal nome da literatura turca, foi pintor durante alguns anos de sua juventude, o que explica seu enorme conhecimento sobre as características históricas da ilustração oriental e os mitos que a envolvem. Revela-nos especialmente como ela faz parte da identidade turca e o papel tradicional de sultões e paxás como mecenas. Mestres são citados e dois deles, rivais em visão de mundo, estão entre os personagens. Mestres que, além de suas expertises técnicas, emprestam sabedoria a seus discípulos - sempre em nome de Alá, claro. Exceto o casal protagonista - Negro Efêndi e sua amada Shekure - e a judia Esther, todos os envolvidos são calígrafos, iluminadores, pintores, encadernadores de uma época em que livros eram seletas obras de arte que mesclavam letras a imagens artesanalmente produzidas, e não textos vendidos em massa pela indústria cultural como hoje.

É através do diálogo entre eles que o choque entre essa escola de artistas e a europeia vem à tona. Tradicionalmente, pintores turcos não deixavam identificação alguma em suas obras. Ao pintarem heróis, guerras, amantes e datas festivas, buscavam "as lembranças de Alá com o fim de ver o mundo tal como Ele ô vê”. Não se devia, pois, procurar a individualidade. "Estilo é erro", garante um ilustrador, que completa: "A pintura é uma homenagem à riqueza da vida dos homens, ao amor, as cores do mundo tal qual Alá o criou e exorta-nos à piedade e reflexão. A identidade do miniaturista não importa".

Em conversa com Negro, outro artista lamenta que "a paixão pelo estilo, pelas assinaturas, chegou até nós vinda do Oriente, por obra de certos infelizes mestres chineses corrompidos pela influência dos europeus e de suas imagens, que lhes foram levadas do Ocidente pelos padres jesuítas". O choque ao conhecer a cultura ocidental é relembrado por Tio Efêndi, que, como embaixador do sultão, conhecera pouco tempo antes a Europa. O mestre recorda seu espanto ao ver a "epidemia" de retratos de monarcas, nobres e demais membros da elite, todos precisamente pintados com "rostos únicos, sem nenhuma parecença", distinguíveis em uma multidão. “Testemunhos de vida e símbolo de poder e dinheiro, a fim de proclamar sua individualidade", afirma.

A paixão pelo retrato, portanto, "acarretaria o fim da pintura do Islã, a pintura cujos modelos perfeitos e irretocáveis haviam sido estabelecidos pelos antigos mestres de Herat [cidade localizada no hoje Afeganistão]". Afinal, o "infiel" pinta a realidade, e o muçulmano, sua interpretação dela. “Pintores europeus medíocres pintam cavalos olhando para cavalos verdadeiros”, desdenha um dos ilustradores. "Mesmo assim é uma representação do que ele viu, gravada na sua memoria nesse piscar de olhos", ressalta enquanto discorre sobre a importância do tempo e da memória para a arte. 

Na possivelmente mais emblemática fala do livro, outro personagem vai ao cerne da questão: “Uma imagem pendurada na parede, qualquer que seja nossa primeira intenção, sempre acaba convidando à adoração. Se - não queira Alá! - eu acreditasse, como os infiéis, que o profeta Jesus é ao mesmo tempo o próprio Senhor Deus, então eu concordaria com que Alá pudesse ser visto nesse mundo e até aparecer sob a forma humana. Só então poderia aceitar que fossem pintadas e exibidas imagens representando pessoas com todos seus detalhes".

Em outra trecho, ao comentar sobre a falsificação por venezianos de moedas de outro, a maneira como o muçulmano entende a pintura ocidental é resumida de forma irônica: "Quando esses infiéis pintam, é como se não estivessem fazendo uma pintura, mas na verdade produzindo o objeto que pintam! Já quando se trata de moeda, em vez de produzir moeda verdadeira, produzem moeda falsa". E acrescenta: entre o amor à arte e a adoração ao dinheiro, motivo da busca desvirtuada pelo estilo, a moeda, além de unidade de valor, ganha o valor simbólico de “juiz do talento do pintor" e, por isso, mantenedor da ordem.

Mas provavelmente o traço mais peculiar do livro é como ele é contado. São 19 narradores diferentes, entre eles, um cachorro, uma árvore, o dinheiro, o diabo, um cavalo e um pigmento de cor. Mais do que costumeiras narrações ou descrições esmeradas do ambiente da cidade e do perfil das pessoas, eles conversam com o leitor em tom intimista, não nos poupando desabafos, indiretas, confissões, deboches e sarcasmos. É assim quando se trata do próprio morto, que, em seu monólogo, esmiúça sua passagem para o além: o que sentiu, suas dúvidas, preocupações e raiva.

Igualmente se vê quando quem narra é o criminoso, que, até o final do livro, mesmo de cara nos revelando o motivo do homicídio, conversa conosco sem se revelar. Não lhe faltam, porém, angústia, ironia, desprezo e ressentimento: "Quem teme Alá, como é meu caso, não se acostuma de um dia para outro com sua nova condição de assassino, principalmente se ela não é premeditada. Para poder continuar como se minha vida não houvesse mudado, criei uma segunda voz, em harmonia com essa nova personalidade. É com essa segunda voz, galhofeira e irônica, sem nenhuma relação com minha vida antiga, que me exprimo nesse momento".

É bem possível que o leitor que conheça o clássico "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, encontre semelhanças entre os dois livros. Assim como a obra turca, a italiana é um suspense que une preceitos religiosos, tramoias relacionadas a estes e livros secretos. Apesar da gritante diferença estilística, ambas têm um caráter filosófico. Uma no início da Era Moderna, relacionada a um grande ateliê de pintura; outra, na Baixa Idade Média, tendo uma biblioteca como pano de fundo principal. Taí, quem sabe, outra oportunidade para se comparar as duas culturas.

Metaliguagem é a linguagem que descreve a si própria. Um livro que fala sobre um livro, por exemplo. Mas a obra-prima de Pamuk pode, ainda que no sentido figurado, ser elevada também a outro caso de metalinguagem. Diante de texto tão rico e detalhista, "Meu nome é vermelho" parece ter sido escrito com a delicadeza com que o mais talentoso ilustrador pincela sua ilustração. Uma “pintura” que, com palavras, nos conta sobre pintura. 

Publicado na Turquia em 1998, o livro ganhou vários prêmios internacionais. Os principais foram o de Melhor Livro Estrangeiro de 2002, na França, o Prêmio Grinzane Cavour de 2002 (melhor romance traduzido para o italiano) e o Prêmio Literário Internacional de Dublin de 2003 (melhor romance traduzido para o inglês). No Brasil, foi publicado pela Companhia das Letras em 2006, e traduzido por Eduardo Brandão. Apesar dos 17 anos passados, continua aqui como melhor exemplo de literatura estrangeira. Faz-nos refletir, rir e adquirir conhecimento. Nos dá tudo que um livro pode nos dar, seja aqui, na Turquia ou em qualquer outro lugar do mundo.

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