quinta-feira, 8 de maio de 2014

O uso político do idioma: um obstáculo ao diálogo na Ucrânia

Por Polina Sinovets* (Open Democracy.net, 06/05/2014)

Os acontecimentos recentes na Ucrânia revigoraram o debate sobre a utilização oficial e não oficial da língua russa no país, há muito tempo parte da sociedade local. Durante as campanhas eleitorais,  partidos políticos locais e atores externos se utilizaram de cartazes nos idiomas russo e ucraniano para conquistar busca o apoio da opinião pública, atrelando a língua à identidade e à política.

Após o colapso do regime de Victor Yanukovych, o novo Parlamento da Ucrânia revogou a polêmica "Lei da Língua" de 2012 que dava ao russo (e a algumas outras línguas) o status oficial em regiões onde elas são dominantes. Vetada pelo presidente interino da Ucrânia, Oleksandr Turchinov, a revogação nunca entrou em vigor, mas foi suficiente para provocar agitações no Sul e no Leste, especificamente em Sebastopol, Kharkiv e Odessa. Também permitiu que a Rússia acusasse a Ucrânia de suprimir os direitos políticos de russos étnicos, e deu a Moscou o pretexto para a intervenção militar na Crimeia.

Na Ucrânia, há dois grupos linguísticos expressivos envolvidos com as divisões políticas do país. Geograficamente, o primeiro grupo baseou-se na maior parte do país - no Sul e no leste -, regiões por centenas de anos parte do Império Russo. Associa-se historicamente com a cultura e língua russas.

No presentes, alguns partidos políticos ucranianos, como o Rodina (legenda pró-Rússia baseada em Odessa) e o Russkiy Blok (uma aliança de partidos que inclui  o Za Rus Edinuyu e o Soyuz Russko-Ukrainskiy), bem como a transnacional Russkiy mir Foundation, usam a herança cultural e linguística russa para tentar justificar a influência da Rússia contemporânea sobre a Ucrânia.

As posições destes partidos e movimentos são bastante agressivas e radicais. Eles consideram o russo o legítimo idioma 'civilizado' das cidades, enquanto o ucraniano seria um mero dialeto rural, empobrecido pela intromissão da cultura e língua polonesas. Qualquer expansão da cultura e língua ucranianas é vista negativamente como uma tentativa de apagar a identidade eslava.

Como descreve, em russo, um membro da Russkiy mir, "para cortar a Rússia dos mares do Sul, empurre-o para o norte, e assim o processo de desmantelamento final do Estado russo está lançado". Em sua opinião, este processo levaria à degradação cultural da população ucraniana e, em último estágio, ao isolamento das minorias russas em guetos rodeados por ambientes hostis.

Tais grupos tornaram o termo "ucranianos" sinônimo de "inimigos", "traidores'", "Banderovtsy" (uma referência ao líder nacionalista ucraniano da II Guerra Mundial Stepan Bandera). Uma "quinta coluna" de ajuda ao Ocidente para enfraquecer a Rússia. Segundo eles, os russos são segregados na Ucrânia e a "Lei da Língua" de 2012 é um passo muito modesto em direção à proteção dos direitos da língua russa, já que ela também prevê direitos iguais a todas as outras línguas regionais.

Na visão destes setores, há no russo uma "inegável superioridade sobre todas as outras línguas europeias" (palavras, atribuídas ao poeta Alexander Pushkin, escrito em cartazes por toda Odessa). Um discurso radical que claramente não favorece o diálogo e o compromisso, representando, portanto, um grave conflito impossível de ser vencido.

Ao mesmo tempo, um de seus argumentos é difícil de ser ignorado: estatisticamente, a minoria russófona na Ucrânia é de entre 30 e 40% da população. Número suficiente para o russo ser considerado um idioma de estado, similar, por exemplo, à evolução do inglês como língua oficial em ex-colônias britânicas como Índia, Irlanda e Malta.

Pesquisas realizadas em 2013 sugeriram que a autoidentidade ucraniana inclui frequentemente o uso da língua russa: 35% dos inquiridos têm o russo como sua língua nativa e aproximadamente 50% disseram que o idioma é mais fácil para falar. (outros 13% afirmaram que falavam russo e ucraniano igualmente bem).

Tal percepção é uma das razões da forte influência da Rússia na vida política da Ucrânia: a questionável política de "proteger a população russa" fora de suas fronteiras não se aplica apenas à etnia russa, mas também para os falam seu idioma. Como visto na Crimeia, uma retórica que pode ser usada como pretexto para a agressão militar a um Estado soberano.

A Igreja Ortodoxa Russa também traz sua influência na esfera da política do idioma. Faz isso, em particular, através do conceito de Russkiy mir, segundo o qual russos, ucranianos e bielorrussos constituem o chamado "mundo russo", um único espaço civilizacional unido pela cultura e língua russas. Um conceito que tenta reviver a união das três nações, remontando aos tempos do Império Russo e soviético e definindo-os coletivamente como à parte da civilização ocidental.

Ao aparecer para justificar a intervenção militar da Rússia contra a Ucrânia, um porta-voz da Igreja Ortodoxa Russa mencionou a antiga declaração da Assembleia do Povo Russo mundial - associação lastreada pela Igreja - que afirma que "o povo russo é uma nacionalidade dividida em seu território histórico e tem o direito de ser reunificado em um único organismo governamental".

 As eleições são sempre um horário nobre para apresentar os argumentos pró-russo. Em 1994, a defesa do russo como segunda língua estatal foi uma das  principais bandeiras do presidente Leonid Kuchma. Um estratagema que Victor Yanukovych e seu Partido das Regiões também usaram, resultando na aprovação da "Lei da Língua" de 2012. Quando o Parlamento ucraniano inicialmente revogou a lei, após a destituição de Yanukovych, a Rússia a usou como justificativa para a ocupação da Crimeia, " a fim de defender os russos" em solo ucraniano.

No outro lado da Ucrânia, no entanto, está um segundo grupo - aqueles para os quais uma ilimitada propagação da língua russa significa certa marginalização do ucraniano. Associados ao oeste do país, onde as tradições nacionais são muito fortes, e também a Kiev, onde a ideologia nacional está sendo formada hoje, seus integrantes não aceitam o russo como um segundo idioma oficial. Veem-o como empecilho à construção da nação e do Estado ucranianos.

Integrantes destes segmentos argumentam que a língua ucraniana é privada de oportunidades e estatuto. Em particular, dizem que ela é a base para a construção da nação, e o uso onipresente do russo mata esta possibilidade por marginalizar o ucraniano a uma estreita área de comunicação doméstica.

Eles consideram que a língua ucraniana precisa ser promovida através da limitação consciente do russo, a língua cotidiana para a cultura, a informação e os negócios nas maiores cidades do país. O soft power linguístico russo tem desempenhado um papel ativo na perpetuação do domínio da língua russa.

A tentativa de revogar a "Lei da Língua" desencadeou as posições mais agressivas de ambos os grupos. Justamente quando era necessário unificar a nação, o Verkhovna Rada (Parlamento) cometeu um erro muito perigoso. O movimento nacionalista de direita Right Sector insistiu na necessidade de "derussificar" a Ucrânia, enquanto o Russkiy Blok levantou-se para defender os direitos dos russófonos contra o Banderovtsy armado.

No entanto, esta luta ideológica é oca diante da realidade. Para começar, a revogação nunca entrou em vigor, desde que Turchinov a rejeitou. Além disso, a Ucrânia ratificou a Carta Europeia para Línguas Minoritárias ou Regionais, em 1996, e deu ao russo o status de língua regional em muitas partes do Sul e do Leste do país. O único efeito da lei linguagem foi desequilibrar a balança jurídica existente a favor do russo. Revogá-la seria apenas ter nivelado campo de jogo novamente.

Hoje, a possibilidade de retirar verdadeiramente o idioma russo da Ucrânia é inimaginável e irrealista. O desafio atual a ser enfrentado é a exploração das questões linguísticas por partidos políticos e atores com o intuito de destruir o diálogo e integração.

O clichê popular garante que um russófono é sempre politicamente mais próximo à Rússia. Dados lançam dúvidas sobre esta afirmação. De acordo com uma pesquisa realizada em junho de 2013 na cidade de Donetsk, no Leste do país, o número de entrevistados locais entrevistados entre 18 e 45 anos que se identificam como ucranianos varia entre 60 a 75%, enquanto 99% de todos os entrevistados preferiram responder o levantamento em russo.

Uma Ucrânia bilíngue não é viável? Um grande grupo de nacionalistas ucranianos russófonos conduz debates em russos na popular rede social VKontakte. Seus membros consideram o ucraniano a única língua oficial, mas dizem que a transição para o ucraniano deve ser gradual e que nenhuma língua deveria ser suprimida ou humilhada no território do país.

É um erro, para ambos os lados, politizar as questões linguísticas. Há muito mais que o idioma na construção de uma nação. Apenas uma pequena parte da população ucraniana  se vê como parte da Rússia — de acordo com um levantamento, em russo, do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, realizado, em abril, no Sul e no Leste da Ucrânia, apenas 8,4% defendem a união de Ucrânia e Rússia em um só Estado. E apenas 15,4% apoiam a  anexação de sua região à Rússia.

 A maioria dos russófonos urbanos e com alta instrução na Ucrânia demonstrou forte solidariedade com seus compatriotas de língua ucraniana, mantendo-se juntos contra a agressão russa e as tentativas de dividir o território e a sociedade local. Nas cidades pequenas, o quadro é um pouco diferente. Passivos, amedrontados e confusos, hoje estes são presas fáceis para qualquer ator político - de agentes pró-Rússia que lhes dão dinheiro, comunistas, à inteligência e propaganda russas.


* Polina Sinovets é professor adjunto na Universidade Nacional de Mechnikov, em Odessa,Ucrânia
(tradução livre do blog)

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