terça-feira, 15 de julho de 2014

O conveniente anacronismo espanhol

Por Murillo Victorazzo

Fragilizado por problemas de diferentes ordens, o rei da Espanha, Juan Carlos de Borbón, abdicou, mês passado, em favor do filho, Felipe- ou Felipe VI, como passará a ser chamado. O novo monarca é reconhecido como preparado para suceder o pai. Mas, diante de tamanha adversidade política, econômica e social por que passa o país, muitos ressaltam que a transição pode vir a ser o vácuo desejado para os que desejam a república e os que sonham com a independência de suas regiões, como catalães e bascos. Teria sido aberta a "Caixa de Pandora" da realeza espanhola?

Ano após ano, as monarquias vêm sofrendo desgastes, com suas legitimidades colocadas em dúvida por parcelas cada vez mais significativas das sociedades em que vigoram. Um movimento mais do que compreensível, haja vista ser difícil explicar para as novas gerações as vantagens de ser súdito de alguém, e não quem delega poderes a um representante com mandatos limitados.

Não parece fácil convencer, principalmente os mais jovens, ser justo reverenciar, sem ferramentas de cobrança alguma, alguém que, além de tudo, não alcançou a chefia de Estado por seus atributos pessoais, muito menos pela vontade da maioria da população. Está lá apenas por pertencer a uma família que há séculos - quando a noção de representatividade era outra e a distinção entre Estado e governante, pouco clara -  foi ungida como acima das outras.

As poucas democráticas imagem e posição ( para os padrões contemporâneos) das famílias reais são ainda resquícios do Direito Divino absolutista, pelo qual o monarca governava pela vontade de Deus. Ele era o "escolhido" e, portanto, seu descendente também o seria após sua morte. Somente a Ele o rei deveria prestar contas até o final de seus dias.

Os reis perderem poderes, as monarquias, pelo menos nas nações desenvolvidas, tornaram-se constitucional - ou seja, com Parlamentos, primeiros-ministros e freios e contrapesos entre os Poderes. Mas a noção de "excepcionalidade" que os envolve permaneceu de certa forma no senso popular e na estrutura estatal dos países em questão.

A mesma imagem, em consequência, traz consigo outra: por estar acima de todos, ser um símbolo permanente do Estado, imune e à parte de disputas partidárias, o rei tem legitimidade (e até o dever) para se portar como neutro nas mediações de crises. Pela mesma lógica, é visto também como garantia da unidade nacional.

Assim, em um país como a Espanha, de histórico imperial mas pouca coesão interna, traço expresso no separatismo latente de algumas de suas regiões, ninguém melhor do que um rei para manter o status quo do centralizador regime de Francisco Franco após sua morte. Assim pensou o próprio ditador e seus aliados na hora de, já beirando os 80 anos, ter que ser escolhido seu sucessor.

Com o falecimento do "el generalísimo", como era conhecido o líder do cruel regime que oprimiu o país por 39 anos, Juan Carlos de Borbón - neto de Afonso XIII, rei deposto com a instauração da Segunda República, em 1931 - assumia, em 1975, o trono. Estava reinstaurada a monarquia na Espanha. Era a garantia de manutenção dos pilares do ultraconservador e católico franquismo.

Mas, dono da Coroa, Juan Carlos não seguiu à risca o imaginado por Franco. Ao convocar eleições diretas para a elaboração de uma nova Constituição, renunciava através dela a muito de seus poderes. A nova Carta reservava à Coroa apenas a Chefia de Estado - seu papel seria o de representação perante o exterior, chefe supremo das Forças Armadas e, principalmente, fiador da estabilidade institucional do país.

A Espanha, a partir de então, tinha um Parlamento independente e forte e, na Chefia de Governo, um presidente de gobierno  (nome lá dado para o que outros países parlamentaristas chamam de primeiro-ministro), designado pela maioria parlamentar oriunda da vontade popular.

Seu pulso na tentativa de golpe em 1981, quando militares franquistas insatisfeitos invadem armados o Parlamento, carimbou ainda mais em sua imagem o perfil de democrata e estabilizador do país. Relegava-se ao esquecimento seu apoio passado à ditadura franquista.

Embora essencialmente conservador, de modo a evitar rupturas especialmente à esquerda, o processo por ele conduzido levou a Espanha a ser uma das mais modernas, ricas e sólidas democracias do mundo. Um prestígio que foi se perdendo nos últimos anos por diversos motivos simultâneos.

Por não ser o chefe de governo, responsável pela gestão da política econômica, Juan Carlos poderia  passar quase incólume pela severa crise econômica que atinge o país nos últimos anos, se não tivesse ela se tornado, mais do que tudo, o estopim para o estouro da latente insatisfação popular com todo o sistema político vigente. Incluí-se aí toda a classe política, vista como corrupta,e o arcabouço da União Europeia, do qual o rei fora um dos maiores entusiastas.

O movimento dos "Indignados", formado basicamente por jovens, e a expressiva votação de siglas eurocéticas nas eleições para o Parlamento europeu mês passado refletiram a profunda contrariedade dominante, em maior ou menor grau, em toda sociedade espanhola.  As urnas debilitarem os dois principais partidos, PP e PSOE, jogando no córner o tradicional bipartidarismo do país. Um  significativo "não" ao status quo tão bem moderado e defendido pelo monarca.

Neste cenário, com o país sob severo arrocho fiscal, alta taxa de desemprego e recessão, os gastos reais tornavam-se abusivos para boa parte da população. Indignação realçada com a luxuosa viagem do rei à África, em 2012, a fim de participar do supérfluo hobby de caçar elefantes.

Quase ao mesmo tempo, estourava o escândalo de corrupção envolvendo Iñakli Urdangarin, marido de sua filha, a infanta Cristina. Suspeitas de desvio de dinheiro público para a fundação presidida por Urdangarin levaram o genro real aos tribunais. Extratos bancários mostraram que parte do capital da instituição sem fins lucrativos fora utilizado para pagar as volumosas despesas pessoais do casal, como, por exemplo, sapatos de 900 euros.

Indiciada também no por fraude fiscal e lavagem de dinheiro, Cristina entrou para a História espanhola como a primeira descendente de um rei a depor na presença de um juiz. No dia de seus depoimento, centenas de manifestantes antimonarquia se puseram à frente do tribunal. Um deles dava o tom dos descontentes: “A nossa monarquia é uma instituição arcaica, medieval e está totalmente protegida por uma máfia. É a pedra angular da corrupção que há neste país”.

Não por acaso, assim que se soube da abdicação, milhares de espanhóis de diferentes cidades foram às ruas para festejar e pedir um referendo sobre o fim da monarquia. Na Cataluña, onde a crise já servira para estimular a convocação de  uma consulta popular sobre independência por parte do governo regional, posteriormente barrada por Madrid,  a mobilização foi ainda maior.

Pesquisa divulgada no jornal El País, de Madrid, mostrou que o referendo conta com o apoio da maioria da população, 62%. Porém, caso convocado, apenas 36% votariam pela república, contra 49% simpáticos à manutenção da atual forma de governo. Revelou ainda que a popularidade de Juan Carlos,depois de meses de queda, voltou a subir. Um certo paradoxo sintomático.

São números que, pelo menos inicialmente, sinalizam para o acerto da decisão do "rei da transição democrática". Por mais anacrônica que seja, por mais fragilizada que esteja, talvez a monarquia ainda seja a mais segura - quem sabe a única - forma de manter a estabilidade do país.

Uma republica acirraria disputas partidárias e regionais em uma  nação que enfrenta tantos obstáculos políticos e socioeconômicos. O vácuo de poder sempre é perigosamente incerto. Um rei jovem oxigenaria o regime e, como no passado, seria a viga da unidade nacional. Juan Carlos pode ter acertado de novo, ao apostar no receio popular de rupturas imediatas. O tempo dirá.

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