domingo, 26 de novembro de 2017

Zimbábue e a máxima de Lampeduza: mais um fracasso da comunidade internacional

Por Murillo Victorazzo


Aos 93 anos, Robert Mugabe era o governante há mais tempo no poder no mundo. Desde de terça-feira retrasada, quando, em meio a blindados e soldados nas ruas de Harare, foi detido em casa por militares, a latente instabilidade institucional do Zimbábue veio à tona.

Depois de dias de incertezas e pressões de generais e partidários seus, o veterano tirano negociou sua renúncia. Garantiu imunidade e segurança para manter-se no país. Poupou ainda a comunidade internacional de ter que enfrentar novos dilemas acerca de democracia, direitos humanos e não ingerência em assuntos internos .

No poder desde a independência do país, em 1980,  a imagem de Mugabe foi mudando com o tempo: de "libertador" da nação, passou a ser visto, dentro e fora das fronteiras nacionais, como um déspota sedento de poder a qualquer custo e responsável pela decadência da economia zimbabuense, uma das mais dinâmicas da África até o século passado.

Dois fatos determinantes consolidaram a faceta tirana e sectária de Mugabe: a cruel repressão à rebelião popular na província de Matabeleland, de etnia dissidente ndebele, ainda na década de 80, e, a partir de meados da década seguinte, a expropriação das fazendas de brancos de origem britânica, chancelando inclusive invasões por grupos de negros armados. Não faltaram ameaças de deportação dos ex-proprietários e bravatas sobre eventual declaração de guerra contra o Reino Unido.

O saldo da radicalização foi desolador: vinte mil rebelados assassinados em Matabeleland e a ruína do setor agrícola do país, dado que, entre outras razões, os novos donos de terras não usufruíam da tecnologia de produção. O Mugabe conciliador, avesso à caça a bruxas, que permitiu a Ian Smith, o governante por ele derrubado, continuar a viver livremente no país, caía por terra.

Durante todo esse tempo, o ditador contou com o apoio das Forças Armadas. Postura explicitada a partir de suas reeleições em 2008 e 2013, quando, mesmo diante das evidentes irregularidades nas votações e de crescentes rejeição interna e pressões externas, deixaram claro que apenas ele seria reconhecido como presidente.

Em 2008, diante do imensurável caos inflacionário de 500 bilhões por cento, as fraudes denunciadas por observadores internacionais não impediram que os primeiros números indicassem a vitória de seu adversário, Morgan Tsvangirai. Mas Mugabe recusou-se a reconhecer a derrota, dando início a violentos conflitos. Cerca de 200 militantes oposicionistas foram assassinados por aliados seus .

A fim de forçar negociação entre as partes, EUA e Reino Unido propuseram no Conselho de Segurança da ONU sanções ao governo Mugabe. Rússia e China vetaram, mantendo a tradição doutrinária e pragmática de não se intromissão em "assuntos internos".

Além de os direitos humanos serem grandes calcanhares de Aquiles para os dois países, pesaram as antigas e íntimas relações da China com o Zimbábue, as quais remontam à independência dos africanos, quando Mugabe buscou nos asiáticos o apoio não recebido de Moscou para a guerrilha contra os brancos ocidentais. Pequim estabeleceu relações diplomáticas com o novo Estado já no primeiro dia de sua proclamação e foi o destino da primeira viagem internacional do novo chefe de governo.

Enquanto Estados Unidos e União Europeia vinham, desde o início do século XXI, aplicando sanções contra a ditadura de Mugabe, os investimentos chineses no país africano, oitavo maior produtor de diamantes do mundo, foram se intensificando. Uma influência tão intensa que hoje a moeda chinesa, o renmibi, é aceita como meio de pagamento oficial no Zimbábue.

Postulante a líder regional, a África do Sul também mostrou-se contrária às sanções propostas na ONU; preferiu liderar as buscas por diálogo dentro da União Africana e da SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral), cujo fortalecimento é de seu interesse. Ex-colonizadores, os britânicos, derrotados no Conselho de Segurança, preferiram não insistir unilateralmente. A imagem de Mugabe como vítima da ingerência da "metrópole imperialista" ainda tinha o potencial de unificar o país em torno de si.

A espiral de violência crescia em proporção ao impasse. Tsvangirai, então, cedeu e aceitou ser primeiro-ministro em um governo de "união nacional". Candidatou-se de novo em 2013, quando o final foi semelhante. Em outra votação sob suspeita por observadores internacionais, Mugabe venceu com cerca de 60% dos votos. Dessa vez, no entanto, não houve sangue derramado, apenas uma débil "resistência pacífica" da oposição, sem grandes efeitos com o passar dos dias.

A queda de Mugabe está longe de ser fruto de movimentos internos e internacionais a favor da democracia e da luta contra corrupção. É sim resultado da fragmentação do Zanu-PF, o partido no poder, dominado por veteranos da guerra da independência, muitos deles militares aposentados que enriqueceram ao ocuparem cargos civis de alto escalão.

Quando Mugabe afastou o vice-presidente, Emmanuel Mnangagwa, seu companheiro de guerrilha, e mais de cem funcionários ligados a ele, a crise estourou. Ao sinalizar que bancaria a primeira-dama, Grace, como sua sucessora, entrou em rota de colisão com os militares, avessos à uma dinastia familiar. Enquanto não atingiu os interesses do Exército, o ditador o teve como sustentáculo. Perdendo-o, perdeu junto o de seu partido.

Pouco se sabe qual o cálculo levou o velho ditador a fazer jogada tão brusca, ciente, imagina-se, dos riscos de provocar seu único alicerce em um contexto de crescente rejeição popular. Alguns dirão que o isolamento do poder ensurdece e cega. Seja como for, entra para o hall de suas escolhas políticas e econômicas racionalmente duvidosas.

Porém, por mais fraudulento que tenham sido as eleições e opressor seja seu regime, Mugabe fora sufragado constitucionalmente pelas urnas para um mandato predefinido. Eleições presidenciais estão marcadas para o ano que vem. Era o governo reconhecido por todos. As principais potências do mundo e as economias emergentes em momento algum haviam fechado suas embaixadas em Harare.

Falácias jurídicas típicas de autocratas que se escudam em aparente ordem legal? Certamente. Mas em uma comunidade internacional regulada por normas, ainda que aplicadas mais em funções de interesses do que de princípios, tais falácias criam de fato barreiras para pressões externas eficazes - e favorecem escapismos. O confronto entre os princípios da não-intervenção e dos direitos humanos como valor universal é permanente - e se torna ainda mais angustiante quando ambos os lados em choque fogem ao segundo.

Enquanto milhares saíram às ruas para celebrar a prisão do ditador, nenhuma voz interna saiu em sua defesa. O total isolamento de Mugabe foi fundamental para sua relativamente rápida renúncia e ajudou a reforçar a versão dos rebelados de que não houvera golpe militar, apenas uma "transição sem sangue". Mugabe sim teria usurpado a Carta ao afastar Mnangagwa e pretender nomear Grace em seu lugar.

Uma unanimidade abençoada pela a comunidade internacional, livre do desafio de mediar um conflito cujos dois lados guardam em comum nenhum apreço por regras e de ter que defender direitos de um déspota há anos alvo seu. A começar por referendar ou não a versão do Exército sobre o caso. A definição de golpe não é mera formalidade semântica e varia infelizmente em função da conjuntura.

Por lei, por exemplo, os EUA são proibidos de ajudar financeiramente governos assim originados. Na crise egípcia de 2012, o governo Obama saiu pela tangente quando Mohamed Mursi, há pouco tempo eleito presidente, foi deposto pelo Exército por namorar com práticas nada democráticas do islamismo político.

A Casa Branca preferiu relevar olhando pelo ângulo do "contragolpe", ou do "golpe preventivo". Reconheceu o governo do general Sisi (formado por remanescentes do ditador anteriormente deposto Mubarak) e manteve o importantíssimo aporte de bilhões de dólares anuais a Cairo.

A ajuda norte-americana ao Zimbábue é mínima comparada ao Egito, e, mais do que nunca, a África parece longe da lista de prioridades do Tio Sam, tanto que cargo de secretário de Estado para Assuntos Africanos do Departamento de Estado está vago. Contudo, a "escolha de Sofia" se assemelhava.

A maneira como Mugabe encerrou sua era caiu como uma luva para o apregoado isolacionismo do governo Trump, para quem, ao contrário dos republicanos tradicionais, a defesa da democracia não se encontra em sua agenda - exceto na retórica contra Irã, Coreia do Norte, Cuba e Venezuela. "Parabenizamos todos os zimbabuenses, que se manifestaram e afirmaram de forma pacífica e clara que estava na hora de mudanças". Assim se manifestou, em breve nota, o secretário de Estado, Rex Tillerson.

Empossado domingo,  Mnangagwa está muito longe de ser um democrata. Encontra-se intimamente associado aos massacres de Matabeleland e teve papel fundamental nas fraudes de 2008. Porém, é visto como um pragmatista. Deu declarações sobre a necessidade de se aproximar do Ocidente, reformando a economia e oferecendo compensação aos fazendeiros brancos expulsos.

Maior parceiro comercial do Zimbábue, a China, o paroxismo da realpolitik, desde o início repetiu o mantra do desejo por resolução interna da crise. Entretanto, a visita do chefe do Exército zimbabuense à Pequim semanas antes do golpe levantou rumores sobre a participação chinesa no levante.

Sinais de que Mugabe estaria perdendo o apoio da potência asiática já vinham aparecendo. A instabilidade política interna, sempre prejudicial a investimentos, se juntava ao seu anúncio, ano passado, de que nacionalizaria firmas estrangeiras e controlaria todos os diamantes no território nacional. Respeito à propriedade: o mesmo aviso dado por britânicos no passado recente começou a ser emitido por Pequim.

Se carece de provas a participação ativa dos chineses na conspiração, é fácil concluir que, no mínimo, eles não se mexeriam para ajudá-lo. Como reagirão à eventual aproximação do Zimbábue com o Ocidente, cujo efeito pode se chocar com interesses seus, é mais uma incógnita que surge.

Por hora também, a África do Sul e os blocos por ela liderados não precisaram mostrar se seriam capazes de moldar a resolução do conflito sem o protagonismo indesejado das potências. Um conflito com potencial de  rastilho de pólvora em uma região na qual tantos países compartilham do mesmo mal: a frágil institucionalização democrática, pelo menos sob a visão de democracia liberal predominante no Ocidente.

Rastilho, aliás, não apagado. Querendo ou não, a renúncia, ou até mesmo o aventado processo de impeachment, não teria acontecido sem a coação das armas, com posteriores acomodações à frente do rito constitucional. Quanto maior a flexibilidade retórica para se relativizar a seu gosto um golpe, maiores são os precedentes abertos como exemplo para a vizinhança. Pode ser para derrubar um tirano aqui, mas pode servir para ascender outro lá.

Hoje o Zimbábue comemora com razão a queda de um déspota. No entanto, ninguém sabe o que os espera a médio prazo. O processo seguinte de formação do novo governo, o papel dos militares e principalmente se as eleições se confirmarão estão para ser esclarecidos. Mudou-se a cabeça, mas o corpo despótico permanece.

É inegável o quanto são dramáticos os dilemas e as barreiras para ações externas mais efetivas contra regimes ditatoriais. Tampouco que, depois do deposto, quem sai derrotada é a chamada comunidade internacional, pelos menos os Estados e organismos que vendem como princípio a defesa do Estado democrático de Direito. Menos pelos fatos da última semanas e mais pelo conjunto da obra nas últimas décadas em relação ao país.

Um racha interno, e não suas sanções e pressões, derrubou Mugabe, que, em troca, afora garantias, receberá, afirmam agências de notícias, US$ 10 milhões de indenização - quem, aliás, deveria julgar e prender governante criminoso é o Poder Judiciário.

Na constante balança entre não intervenção em assuntos internos e direitos humanos como valor universal, alguns requisitos deveriam ser estimulados prévia e incondicionalmente por esse atores externos : o estimulo à cultura da separação entre as esferas pública e privada e da submissão do poder militar ao civil, contra patrimonialismos e personalismos, sem arranjos internos de momento, ainda que estes contem com aparente aprovação popular.

Caso contrário, o maior entre vitoriosos será a máxima de Lampeduza: "Algo tem que mudar para que tudo permaneça como está". Evitá-la é o grande desafio para uma sociedade de nações que diz priorizar o ser humano acima da soberania estatal. Sob o risco de sua desmoralização completa.

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