quinta-feira, 25 de junho de 2009

Criança, ECA e Carnaval

Por Murillo Victorazzo (entrevista publicada no jornal O Beija-Flor, outubro de 2005)

Presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e Adolescente (CEDCA), a professora e pedagoga Tiana Sento-Sé trabalha com crianças e adolescentes há mais de 20 anos. Em uma feliz coincidência, teve seu primeiro contato com meninos carentes na escola Tia Ciata, no Sambódromo. A partir de então não deixou mais a militância na área social, tendo participado das discussões para a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) desde o seu início. Como outubro é o mês das crianças e o ECA acaba de completar 15 anos de existência, nada melhor do que um papo com sobre o CEDCA, os problemas do menor de idade e a relação destes com o carnaval com quem entende do assunto. “Carnaval tem tudo a ver com criança. É alegria, é festa”, diz Tiana.

Como começou a sua militância na área da criança e do adolescente?
Tiana Sento-Sé - Em 1984, após passar no concurso para o município, fui trabalhar na escola Tia Ciata no Sambódromo. Era uma escola era experimental, com objetivo de ensinar a ler e a escrever alunos que estavam fora da faixa etária regular. Começamos a receber meninos de rua, um grupo social que não conhecia bem. Até então eu havia lidado só com a classe média. Conheci meninos que tinham outros tipos de problemas. Todo mundo que tem experiência na área social termina se apaixonando e querendo fazer algo. A escola saiu do Sambódromo, mas conseguimos construí-la na Praça Onze. Atendíamos meninos do entorno, a maioria de origem das favelas de São Carlos. Pensávamos aquilo como uma retomada por eles de um espaço que é o berço dos desfiles das escolas de samba. Comecei a militância no Movimento Nacional de meninos de rua representando esse trabalho. Nessa época fizemos uma grande mobilização popular para a inclusão dos artigos 227 (“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito a vida, à saúde, à alimentação (...) além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão) e 228(“ São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeito às normas da legislação especial”) na Constituição de 1988. Abre-se assim espaço para que revíssemos o código de menores. Começamos então a batalha pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É criado um fórum nacional para trabalhar o estatuto com juristas, parlamentares e representantes de ONGs. Após muitos debates, em julho de 1990, ele é promulgado. Desde então, trabalho no Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA), criado pelo estatuto, sendo eleita presidente em fevereiro deste ano. Paralelo a isso, trabalhei numa ONG chamada Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (IBISS), onde hoje coordeno o centro de formação.

Como funciona o CEDCA?
Tiana - São dez integrantes da sociedade civil e dez do Poder Executivo local. Desses, sete são indicados pela governadora e três têm cadeira cativa definido por lei: o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública. Isso é uma distorção do ponto de vista legal que precisa ser revista. O Ministério Público já se retirou do Conselho após concluir que sua presença era inconstitucional. Como fiscal da lei, ele não poderia deliberar. Agora temos nove representantes.O Judiciário ainda não se posicionou sobre isso. O vice-presidente do CEDCA, o desembargador Siro Darlan, entende que tem que continuar. Há divergências. No entanto, o Conselho Nacional já fez uma resolução dizendo que não deveriam permanecer. As dez vagas da sociedade civil são eleitas no Fórum Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente, que reúne permanentemente ONGs do Rio de Janeiro. Em tese, o CEDCA é um órgão autônomo. Na prática, porém, as coisas ainda não acontecem assim. Temos o poder de deliberar políticas, mas administrativamente quem faz a gestão dos recursos é o órgão público ao qual somos veiculados. Por força de lei, deveríamos ser ligados ao Gabinete Civil do governo do estado. No entanto, no Rio de Janeiro foi baixado um decreto nos veiculando à Secretaria da Infância e Juventude.

Como é o trabalho do CEDCA?
Tiana - O Conselho não tem uma atuação direta com as crianças e o adolescente. Nossa responsabilidade é deliberar políticas voltadas para esses meninos. Há conselhos de defesa a nível municipal, estadual e nacional. Quem atua diretamente com crianças e adolescente nas questões de violações de direitos é o Conselho Tutelar. Ele é a porta de entrada dos casos. Lida com o menino que está sem escola, que foi discriminado no colégio, espancado pelo pai ou abusado sexualmente. E encaminha questões como abandono e a perda do pátrio poder para os órgãos competentes, como o Juizado da Vara da Infância e Juventude. Além de discutir políticas para o estado, o CEDCA tem um papel de articulador. Preocupa-se em fortalecer os conselhos municipais e qualificar os conselheiros. Temos, por exemplo, uma deliberação na área de medidas sócio-educativas.

Todas essas políticas que são discutidas e sugeridas no CEDCA são obrigatoriamente implantadas pelos governos? Há uma fiscalização?
Tiana – Na área da infância, o órgão máximo em cada nível de poder deveria ser esses conselhos. Mas infelizmente ainda não é assim. Temos que brigar muito para que as coisas aconteçam. Sendo muito honesta, há duas brigas. Uma para que o governo do estado perceba e entenda o que está na lei. Respeite essa instância de deliberação. A outra é aqui dentro no Conselho. Nem sempre se reúne todo mundo, e nem todos os conselheiros estão na mesma sintonia. Há um trabalho árduo pela frente.

A senhora participou, desde o início, de toda a formulação do ECA. Hoje, 15 anos depois, quais são as maiores dificuldades para aplicação da lei? Onde ela encontra maior resistência?
Tiana - O ECA é fruto de uma discussão ampla de quem atua com criança e adolescente. Vem das dificuldades que enfrentamos para proteger e garantir os direitos desses garotos. Se pegarmos alguns itens como violência doméstica, trabalho infantil e adoção, conseguimos avançar significativamente. Hoje sabemos que temos uma legislação muito avançada. Que bom! Não gosto dessa história de que o estatuto é coisa para primeiro mundo, que no Brasil não funciona. Garantia de direito tem que funcionar em qualquer país, independente da riqueza ou da pobreza. Ano passado, apresentamos um relatório na ONU. Eles fizeram algumas recomendações para o governo brasileiro. Mas reconheceram que temos uma legislação avançada, que tem sido referencia para outros países. Isso é uma conquista. Agora temos que fazer valer. Em alguns casos, conseguimos caminhar. No Rio de Janeiro, por exemplo, temos a ficha de notificação de maus tratos, violência domestica e abuso sexual. Precisamos avançar muito mais. Temos que caminhar muito na questão da estrutura de atendimento da criança vítima do abuso e do autor da violência. Sou desse pequeno grupo dos otimistas. Avançamos em algumas coisas, embora não tanto quanto queríamos. Não podemos jogar isso fora. Hoje em dia já se discute assuntos como trabalho infantil. A prova do Enem foi sobre esse tema, o que é bom pra garotada se posicionar. A questão do comércio e do turismo sexual está em pauta agências de turismo, a Embratur e o Ministério do Turismo já se mobilizam contra isso. É um ganho! Temos que rever não só a repressão, a responsabilização, mas também a prevenção. Como atender um pedófilo, por exemplo? Não adianta só trancá-lo. Tem que saber como cuidar psiquiatricamente dele. O trabalho infantil doméstico começa a ter a atenção necessária. Vamos analisar bem essa história de: “ah, trouxe minha sobrinha do norte para ajudar em casa...” Diz que trata a menina como filha, mas a roupa é o resto dos filhos verdadeiros. O salário não existe e a jornada de trabalho é tão exaustiva que não dá tempo para estudar. O Conselho Tutelar também precisa avançar. Há excelentes conselheiros, mas alguns precisam de melhor qualificação. E há a questão do orçamento. Há municípios que não sabem gerir o fundo dos Conselhos criado pelo ECA. Por isso o lema “Lugar de criança é no orçamento público”. Sem orçamento, não tem programa. Sem programa, não há retaguarda de atendimento. A criança foi abusada, mas não temos como encaminhá-la para um tratamento psicológico por problema de verba. Onde está a prioridade no orçamento? O governo Lula separou para área da infância R$12 milhões. É o orçamento mais baixo da história desde que o ECA foi implantado. É muito pouco para um país com essas dimensões. No estado os recursos também são micros. No meio disso tudo, há uma questão cultural que não podemos deixar de levar em conta. Temos que parar para pensar sobre certos costumes como:“ trabalhando ele está ocupado e traz um dinheirinho para casa”, “é melhor que vá vender no sinal , porque eu não consigo”, “sou adulto e não tenho o apelo que o menino tem.” Outra dificuldade é o governo se sentar com a sociedade civil para deliberar juntos. “Ih, lá vem esses ´ongueiros`...”, eles devem pensar. É um tabu que precisa ser quebrado De qualquer maneira, demos visibilidade a questões que antes estavam invisíveis.

Na maioria das vezes, quando se fala no ECA, a primeira coisa que vem à cabeça é a polêmica sobre maioridade penal. Os críticos dizem que o estatuto foi um incentivo para os menores delinqüentes. O que a senhora diria para essas pessoas?
Tiana – Eu diria que eles nunca leram o estatuto. Se lessem, veriam que apenas um pedaço trata de maioridade penal. E, mesmo levando-se em conta somente este pedaço, eles deveriam, após ler, visitar uma unidade de internação, por exemplo. Depois poderiam visitar uma penitenciaria. Provavelmente, iriam constatar que a unidade de internação do adolescente é muito pior que a do adulto. Tenho visitado essas unidades em vários estados do país. Parece que só muda o endereço e o sotaque. Para falar do ECA, tem que lê-lo sem preconceito. Sou totalmente contra redução da maioridade penal. Não resolve. Se diminuirmos para 16 anos, amanhã vão querer que caia para 14 e até 12 anos. Não se pode levar em conta legislações de outros países com realidades sócio-econômicas totalmente diferentes. Para um menino de 14 anos chegar a cometer uma infração, algo foi negligenciado lá atrás. Ninguém nasce infrator. Não posso dizer que da minha barriga saiu um menino destinado a cometer crime. Não há um gene da infração. Se acreditamos que um adulto pode ser recuperado, e por isso há progressão de pena, sursis, liberdade condicional e outros benefícios, por que com um menino, que está em formação, tem que ser diferente?

Dentro dessa preocupação em proteger a criança e o adolescente, qual é a relação delas com o carnaval? Qual é o limite para que elas desfilem em escolas de samba?
Tiana - Carnaval tem que ser visto como um símbolo cultural do nosso povo. Tomando cuidado com o desgaste físico da criança, a legalidade de ela estar num espetáculo que muitas vezes dura a madrugada toda, não há problema algum. Tem que ser priorizada a proteção da criança. Carnaval tem tudo a ver com criança. É alegria, festa. Mas às vezes há algumas desvirtuações, como a exploração da nudez. Nesse aspecto, será que uma criança em desenvolvimento precisa ter contato com isso? Precisa ter sua sexualidade estimulada? Se há esses cuidados, tem mesmo que participar! No caso de um garoto de 16 anos, me desculpa. Ele já tem uma certa idade. Não podemos ser hipócritas de dizer que ele não sai para as baladas. Mas temos que ter cuidado para, por exemplo, não colocar uma adolescente nua na Avenida. Embora essa precaução devesse atingir também as maiores de idade. Mas aí vamos entrar em uma outra discussão, que é a questão da mulher. Não lido com os desfiles de escolas de samba no meu trabalho. No entanto, pelo que me parece, com os contatos que tenho com o doutor Siro Darlan, esses excessos são muito pontuais, exceções.

Como a senhora vê o trabalho social das escolas de samba?
Tiana – Alguns anos atrás eu fiz uma parceria com a Império Serrano. Era um trabalho com os meninos de rua de Madureira. Foi muito legal. A escola cedeu a quadra e fizemos uma oficina de máscaras. Mas foi uma coisa embrionária. Depois, por problemas políticos internos da escola, não retomamos a proposta. Acho esses projetos extremamente interessantes. Carnaval tem tudo a ver com nossa a cultura, com a nossa história. E é um mercado de trabalho poderoso, que não se restringe ao desfile. O garoto que é aderecista pode trabalhar amanhã no teatro, na televisão, fazendo cenários, por exemplo. É claro, porém, que tem que ter cuidado com esses trabalhos. Minha preocupação é com a formação do indivíduo. Não é porque o menino aprendeu a tocar tal instrumento que ele vai ser percursionista, vai ganhar dinheiro com isso. Mas sei que as escolas sabem disso. Infelizmente não conheço o trabalho social da Beija-Flor. O da Mangueira é mais divulgado. Mas dou todo apoio a essas iniciativas.

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