segunda-feira, 25 de julho de 2011

O dilema de Dilma

Por Murillo Victorazzo

Desde que estourou o escândalo no Ministério dos Transportes, a presidenta Dilma Roussef evocou para si  retórica da "faxina". Ainda que com o eufemismo da "reestruturação", demitiu, quase que sumariamente, 16 funcionários do Dnit e do ministério, do primeiro ao terceiro escalão, acusados de corrupção. O chamado "feudo" do Partido da República (PR) estaria desmoronando. Mais ainda: dia após dia, neste mês, as manchetes dos jornais anunciam a sua disposição em estender a "limpeza" para outros órgãos.

Majoritariamente avessa ao governo Lula, a classe média tradicional brasileira votou em peso nos candidatos José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV), nas eleições passadas. A antipatia à então candidata petista fundamentava-se basicamente no discurso da ética. Sete meses depois de sua posse, com tais as iniciativas, Dilma, aparentemente, estaria agregando um trunfo fundamental na busca por sua reeleição. Caso o país chegue a 2014, economicamente estável, como até agora, com ganhos reais para as classes C, D, a presidenta teria garantido, como em 2010, esse eleitorado. E, diferentemente do ano passado, teria ainda votos em potencial nesses setores até então refratários. Em tese, a equação se fecha com resultado amplamente favorável ao governo. Porém, na prática, as dificuldades são bem maiores, tanto por motivos partidários como estruturais.

Embora a oposição tucana-demista, acompanhada de parcelas ideologicamente refratárias ao PT e alguns jornais, pretenda fazer crer que a corrupção no governo federal nasceu em 2003, com a posse de Lula, infelizmente, o drama não é tão simples. A prova cabal é que, em 2002, o ex-presidente ganhou grande parte dos votos dessa mesma classe média, especialmente por garantir que o PT era o partido da ética. Loteamento de cargos para ter maioria no Congresso não é artifício inovador de petista. Para ficar em um passado mais recente, basta recordar o domínio de PFL e PMDB nos setores elétrico e de transportes durante o governo FHC, por exemplo. Difícil crer, aliás, que o Ministério da Justiça comandado por Renan Calheiros e Íris Resende naquela mesma época fosse reduto de ética. Ou que eles tenham sido escolhidos ministros por seus notórios saber jurídicos. Da mesma forma, basta pesquisar na internet para lermos que o contingenciamento de emendas já era constantemente usado como moeda de troca na relação com a base aliada de então. Voltando a um passado mais remoto, Getúlio Vargas não se matou acuado com as acusações constantes de "mar de lama" no Catete?

Embora sirva de desculpa para alguns petistas usarem o discurso calhorda do "todos fazem", tais fatos antigos demonstram como esses vícios estão arraigados em nosso sistema político. Indica, por isso mesmo, a árdua tarefa que Dilma terá -caso queira mesmo moralizar a administração federal. Não é por acaso que, exceto um ou outro parlamentar, todos os chamados partidos fisiológicos (PTB, PR, PP, PMDB) integraram a base de FHC. Nem mesmo o mais entusiasta eleitor tucano pode acreditar que estes mudaram seu caráter de repente e que votavam a favor do governo de então por ideais ou acordos programáticos.

Para o cidadão apartidário, que não tem pré-concepções ideológicas rígidas, a constatação é, antes de tudo, motivo de angústia. Serve para a reflexão daqueles que baseiam seu cotidiano na ética e desejam apenas outros valores no trato do seu imposto, independente do grupo político no poder. Antes nossos males se resumissem aos quadros petistas; o otimismo poderia ser maior. As raízes desses absurdos se encontram em profundidade muito maior. O pecado diferencial do petismo foi ter vendido com tamanho cinismo a ilusão de que eram diferentes.

Todo brasileiro, independente de idade, cresceu ouvindo casos de clientelismo, fisiologismo, fraudes, superfaturamentos, propinas. Há mais de 50 anos, o mestre Raymundo Faoro já se aprofundava na tentativa de explicar as causas desses nossos males. Em "Os Donos do Poder" , concluía que a origem estava essencialmente em nosso passado patrimonialista ibérico. Uma herança que nos levava a ter aguda dificuldade em separar o público do privado. Foi, é e ainda será farto debate para cientistas sociais e historiadores. Atualmente, na opinião pública, muitos consideram que, com o PT no poder, os casos extrapolaram. Pode até ser, mas essa é uma sensação muito difícil de assegurar. Nem todos os casos de corrupção são descobertos, muitos perpassam governos e é inegável o amadurecimento e o fortalecimento da imprensa investigativa e do Ministério Público com o passar dos anos, desde a redemocratização.

Ressalte-se ainda que em ditaduras, com cerceamento de liberdade de imprensa e Judiciário subjugado, a sujeira é mais fácil de ser varrida para debaixo do tapete. Haja vista as grandes fortunas de ditadores como Pinochet, Pol Pot e Ferdinando Marcos descobertas logo após suas quedas. E o fato de que políticos da estirpe de Paulo Maluf, José Sarney e o finado ACM surgiram e cresceram sob as asas dos generais brasileiros. Não se pode negar também que as décadas acumuladas de impunidade encorajaram as quadrilhas a perderem qualquer constrangimento. Metem a mão com força e cinismo maior. Nivelar, entretanto, o debate à disputa partidária, na qual se discute quem roubou menos, além de ser constrangedor e deprimente, não nos levará a local algum -pelo menos, para quem não quer levar vantagem eleitoral.

O drama brasileiro é mais grave porque a tibieza ética não se resume ao setor público. Infelizmente, propagou-se em diversos setores da sociedade. É claro que a maioria da população prefere zelar pela retidão de caráter, mas certa "flexibilização" da moral é sentida em diversos níveis: desde infrações cotidianas -que muitos pensam ser apenas "pecadilhos"- até violações tributárias, por exemplo. São fartos os casos de promiscuidades entre agentes da lei e contraventores. Os políticos não são criaturas especiais: não nasceram políticos nem têm DNA específicos; não são uma etnia e muito menos alienígenas. Vêm do seio da sociedade! Aqueles que já têm os vícios de caráter encontram na carreira política um terreno fértil em dinheiro e poder pra se locupletar do modo mais fácil e sujo.

Além desses precedentes, a conjuntura política não favorece Dilma. Sua base foi montada sob essas características e, portanto, faz todo o sentido o receio de que ela fique isolada no trato com o Congresso Nacional. Em termos estritamente pragmáticos e políticos, alguns líderes petistas, especialmente  o ex-presidente Lula, consideram uma aposta arriscada esticar a corda para ver até aonde o PR e outras legendas (caso ela cumpra a promessa de intervir em outras áreas), vão. Até que ponto permanecerão aliados? Irão retaliar, rebelando-se e, por consequência, paralisando  o governo? Em um cenário econômico delicado, com ajustes fiscais e preocupações cambiais e inflacionárias para este e o próximo ano, a margem para o enfrentamento não é larga o suficiente para Dilma.

Nos últimos dias, as notícias vindas de Brasília parecem confirmar esses temores. Matéria do "Globo" de segunda-feira, 25, revela que Dilma não iria, pelo menos, neste momento, mexer nos "feudos" do PMDB. Hesitaria também em avançar no Ministério das Cidades, do PP. A lógica da presidenta é a previsível: receio de perder a dita "governabilidade". O PR é um partido médio, ao contrário do PMDB, sigla comandada até ano passado por seu vice-presidente. Se por menos, a cúpula peemedebista usou o trator, pode-se imaginar o que fariam caso mexessem em seus vespeiros.

Ainda que esses partidos mereçam o repudio por seus modus operandis, para o drama de Dilma e de todos brasileiros, o caso não se resume a eles. Assim como seria melhor que o câncer da corrupção no país se restringisse aos governos Lula e Dilma, é bom ressaltar que alguns dos casos mais graves dos dois governos não foram protagonizados pelos aliados, mas sim pelo próprio partido do chefe de governo. O mensalão e o escândalo Antonio Palocci saíram do berço petista, por exemplo. Rumores de desmando em órgãos comandados pelo PT nos diversos escalões vêm rondando o Planalto há tempos, e, não por outro motivo, políticos do PR e PMDB mandam recados subliminares a toda hora. A apreensão nos rostos de líderes petistas com o que o ex-diretor-geral do Dnit Luis Antonio Pagot iria falar em seu depoimento no Congresso Nacional é o sinal maior dessa teia complexa.

É notório que a influência de Dilma sobre as correntes internas do PT é limitada. Ela não tem histórico de militância no partido e foi ungida candidata por imposição de Lula. Mesmo que se queira crer que sua vontade de oxigenar a gestão pública é sincera, não é difícil imaginar as reações internas que surgiriam. Ademais, seja por simpatia pessoal ou pela importância do nome para seu governo, a maneira insegura com que tratou o enriquecimento suspeito de seu braço direito Palocci nos faz crer que com seu partido ela pise menos no acelerador.

Certamente a presidenta sabe que o enfrentamento pode também causar danos eleitorais colaterais. Por hora, tem a bonança econômica a lhe sustentar. Mas, caso o cenário se altere, o bolso falará mais alto. Na hora do voto, é ele que manda, principalmente nas classes mais carentes e em parcelas dos setores médio e alto da população. Não é inverossímil imaginar uma cínica rebelião de aliados que resulte em aprovação de inúmeros gastos públicos inflacionários. Um presidente popular tem cacife mais alto para se impor; um fraco é mais fácil de ser domado. As raposas governistas no Congresso sabem muito bem disso.

São esses empecilhos e essas contradições que se impõem diante de Dilma na busca pelos votos da classe média. Assim como a inflexão para uma política externa voltada para a defesa dos direitos humanos, a "faxina" corre o risco de ficar mais na retórica, ou, no mínimo, com indesejável seletividade. Além de correr o risco de gastar parte de seu mandato "enxugando gelo", a presidenta pode frustrar os ditos formadores de opinião. E, quase sempre, a frustração resulta em antipatia feroz, ainda mais quando o sentimento é reincidente. Dilma sabe que conta com o apoio de todo brasileiro honesto nessa batalha. Porém, no momento em que se dispôs a levantar tal bandeira, deveria saber que terá que optar entre o que o eleitor deseja e os limites que sua base -e seu partido- lhe impõem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário