quarta-feira, 6 de julho de 2011

O que o Irã deve aprender com a Turquia

Por Mohammed Ayoob (Open Democracy, 29/06/2011)*
Ao longo dos últimos dez anos, a Turquia tem traçado um caminho que combina os atributos essenciais de um Estado laico sob a governabilidade democrática com arraigados valores islâmicos, sem cair na falsa dicotomia de ter que escolher um sobre o outro. No entanto, contenciosamente, o país tem sido apontado como exemplo, se não modelo, para os países árabes que lutam para se democratizar. A Turquia é um exemplo não só para o mundo árabe mas também para a República Islâmica do Irã.
Irã e Turquia apresentam várias semelhanças. Ambos representam civilizações auto-confiantes que misturam o Islã com suas raízes históricas. Ambos se comprometeram a seguir, de modo geral, caminhos independentes em termos de política externa, especialmente em relação ao Oriente Médio. Ambos têm demonstrado, cada vez mais, recursos de soft power, aumentando assim suas influências nas relações inter-estatais e suas popularidades entre as populações árabes e não árabes da região. Ambos são poderes emergentes em suas respectivas sub-regiões - o Irã no Golfo Pérsico e a Turquia no Mediterrâneo Oriental e no Crescente Fértil. Nenhuma estrutura estável de segurança regional nestas áreas pode ser estabelecida sem a aprovação e a participação deles.

No entanto, grandes diferenças entre os dois aumentam a legitimidade interna do Estado turco e a sua influência regional, enquanto dificultam o desejo iraniano de atingir o seu pleno potencial nacional e regional. Estas diferenças foram claramente definidas com os resultados da recente eleição parlamentar da Turquia, quando o AKP obteve 50% dos votos em uma disputa livre e justa, com o notável comparecimento de 88% dos eleitores. Um significativo contraste com o regime no Irã, um sistema que tem se tornado cada vez mais faccionário e opaco. Os ataques contra o presidente iraniano Ahmadinejad vindo de apoiadores do líder supremo, o aiatolá Khamenei, incluem a acusação de que ele ganhou a eleição presidencial iraniana de 2009 através de fraudes.

A eleição turca de junho deste ano produziu um governo de partido único estável pela terceira vez, mas também reforçou os checks and balances, essenciais para a consolidação democrática, ao negar ao AKP a quantidade necessária de vagas para mudar a Constituição de forma unilateral. O partido governista dependerá de, pelo menos, parte da oposição para concretizar esta pretensão. Embora algumas das propostas sejam anacrônicas de acordo com militares e os padrões democráticos europeus, um consenso pluripartidário sobre elas lhes dará legitimidade muito maior.

O resultado do pleito turco está em nítido contraste com as eleições iranianas nos últimos anos. No caso iraniano, o não eleito Conselho Guardião tem muitas vezes desqualificados candidatos parlamentares e presidenciais por causa de suas orientações políticas. Esta prática atingiu seu pico nas últimas eleições parlamentares, quando proibiu grande parte das candidaturas reformistas. Isso garantiu a maioria para as facções linhas duras na Majlis, enquanto a eleição presidencial de 2009 produziu um resultado tão contra-intuitivo que levou a protestos de rua em massa e uma igualmente maciça repressão pelo regime.

É irônico que o líder supremo, cuja posição inicialmente prevista por Khomeini era de um árbitro neutro entre os clérigos e as instituições representativas consagradas na Constituição, tenha assumido um papel partidário, atuando contra não apenas as forças reformistas e liberais mas também um presidente eleito com a conivência do próprio líder supremo. Em vez de agir como um "check and balance", a última palavra, o líder supremo tornou-se parte da política partidária no Irã, desacreditando seu papel bem como a Constituição da qual deriva seu poder.

O que a elite governante iraniana precisa entender é que partidarismo não é a mesma coisa que organizar partidos políticos com plataformas transparentes. Instituições clericais não eleitas são vítimas de partidarismo e parcialidade por si próprias: checks and balances vêm do espírito democrático inato de Constituições, não da supervisão clerical e da manipulação de instituições representativas.

A mesma lição se aplica à relação entre Estado e religião nos dois países. Tanto o regime iraniano como o AKP se percebem como sendo enraizados em valores islâmicos que gostariam ver amplamente absorvidos por suas sociedades. No entanto, eles têm caminhado de maneiras muito diferentes na questão. O regime iraniano tentou impor sua versão dos valores islâmicos de cima para baixo, muitas vezes por meio da coerção, se não a força direta. O AKP, por outro lado está comprometido com a propagação dos valores islâmicos ("conservadores", no jargão atual Turquia) através do exemplo e sem transgredir os limites de uma constituição secular.

As duas abordagens diferentes têm sido substancialmente determinada pelas diferentes histórias dos dois países - o Xá do Irã foi derrubado por uma revolução "islâmica", em 1979, enquanto uma elite comprometida desejosa de reduzir o papel do Islã na vida pública estabeleceu a República Turca em 1923 . No entanto, essas diferenças também traduzem visões distintas da relação entre religião e Estado. No caso do Irã, o regime percebe o Estado como o instrumento através do qual impõe sua versão da lei e da moral islâmica. Na Turquia, o AKP percebe seu objetivo como resgatar o Islã por parte do Estado, enquanto, ao mesmo tempo, fornece-lhe maior lugar na esfera pública.

Esta última afirmação não é um paradoxo. A República Turca, em seu zelo para marginalizar o Islã, tem se comprometido em controlá-lo e subordiná-lo aos interesses do Estado, tal como definido pela elite kemalista. Para dar apenas um exemplo, sermões sexta-feira em todas as mesquitas na Turquia são vetados se não realmente ditada pela Direção de Assuntos Religiosos, que paga os salários de todos os funcionários religiosos, até os dos imãs de aldeias. A tentativa do Estado turco em regular os véus das mulheres é outro exemplo de como o Estado controla os preceitos religiosos. O secularismo kemalista não significou a separação entre religião e Estado. Em vez disso, significa a subordinação da primeira à segunda. O AKP está tentando suprimir progressivamente o estrangulamento do Islã pelo Estado e incentivar o país a um Estado verdadeiramente laico, no qual as duas partes podem manter suas autonomias em relação uns aos outros.

Ironicamente, na tentativa de impor ao público em geral sua versão do Islã, o regime iraniano acabou subordinando-o perante o Estado também. São os funcionários do Estado que agora ditam os contornos da religiosidade e da moral islâmica deixando a pequena sala dos crentes para exercer julgamentos independentes. Ao mesmo tempo, ao invocar constantemente seu papel de guardiães do Islã, os governantes iranianos têm confundido o Islã com o seu comportamento pessoal. Sua associação direta com a corrupção e delitos da elite dominante desacreditam a religião. O que a elite iraniana precisa aprender com a Turquia é como resgatar o Islã a partir do Estado: quando os dois se fundem, é o Estado que controla a religião, tanto distorcendo como desacreditando o último.

A recente onda de movimentos democráticos no mundo árabe trouxe para primeiro plano diferenças entre a Turquia e o Irã que transcendem o paradigma realista, muitas vezes aplicado na análise das relações internacionais. Isso não significa que a realpolitik seja irrelevante para a compreensão das reações iranianas e turcas a desdobramentos de eventos dramáticos em suas vizinhanças. As respostas turca e iraniana,  inicialmente cautelosas, à revolta na Síria, onde ambos têm grandes interesses económicos e estratégicos, demonstraram a validade do paradigma realista. Foi relativamente fácil para os dois países denunciar a ditadura de Mubarak no Egito, mas, uma vez que ambos investiram fortemente no regime de Assad, é muito mais difícil fazê-lo no caso da Síria.

Os cálculos realistas que têm dificultado as respostas à turbulência síria foram rapidamente temperados na Turquia por causa da natureza de sua política doméstica e pelo fato de a legitimidade do governo estar intimamente ligada a suas credenciais democráticas. O primeiro-ministro Erdogan fez clara sinalização aos movimentos democráticos na região em seu discurso de vitória, em 12 de junho. Declarou: "Vamos chamar, como temos, por direitos em nossa região, pela justiça, para o Estado de direito, para liberdade e democracia ". Erdogan também tem sido abertamente crítico à repressão da Síria sobre manifestantes pró-democracia e permitiu que elementos da oposição síria criem estratégias na Turquia. Suas fronteiras também foram abertas para os refugiados da repressão do regime de Assad.

Apesar da crescente evidência de repressão estatal, o Irã continua a honrar o seu aliado sírio. Protestos na Síria, como no resto do mundo árabe, espelham os protestos pró-democracia no Irã após a eleição presidencial contestada de junho de 2009. Lembram aos governantes do Irã seu próprio dilema de legitimidade. A Síria é parceira estratégica do Irã no apoio à resistência do Hezbollah libanês à dominação de Israel no Oriente Médio. Teerã tem criticado duramente a política de Ancara sobre a Síria, denominando-a de "sionista". Rompe, assim, abertamente sobre esta questão com a Turquia, que tinha emergido como amigo, se não aliado, do Irã nos últimos anos.

As diferenças das respostas iranianas e turcas à repressão brutal na Síria refletem a natureza de suas fontes domésticas de energia - um é representante da vontade popular; o outro, um híbrido de instituições representativas e fontes clericais não eleitas  de autoridade. Esta distinção não é sem importância na arena política externa, apesar do predomínio do paradigma realista nas relações internacionais. O sistema político interno turco ajudou Ancara a se posicionar no lado certo da História no Oriente Médio, enquanto o sistema iraniano conteve as escolhas de Teerã e o fez cair no lado perdedor.

*Tradução livre do blog

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