sábado, 26 de fevereiro de 2022

Putin e a volta da hegemonia realista

Por Murillo Victorazzo

Segundo a teoria da transição de poder de Abramo Organsky, dominante nos estudos das relações internacionais, potências ascendentes procuram sempre redesenhar a ordem mundial, seja através de reformas pontuais ou de rupturas. A probabilidade do choque com o status quo resultar em guerra é proporcional à diferença de recursos de poder entre desafiador e desafiante e à insatisfação do último. "Uma distribuição uniforme dos recursos políticos, econômicos e militares entre grupos rivais de Estados aumenta a probabilidade de guerra, mas a paz é melhor preservada quando há um desequilíbrio de capacidades nacionais entre as nações favorecidas e desfavorecidas", argumenta o autor. 
Decorre daí a dedução de estudiosos (sem juízo de valor ideológico sobre países) acerca da maior propensão à paz de sistemas interestatais unipolares, aqueles onde apenas uma potência é capaz de moldar as regras à sua feição, o chamado hegemon. Paz aqui entendida, é preciso frisar, como a ausência de grandes guerras entre poderosos atores estatais, conflitos com elevados potenciais de disseminação geográfica e militar e equivalente capacidade de destruição. Não os conflitos localizados e guerras assimétricas (aquelas que envolvem entidades paraestatais, como rebeliões, grupos terroristas, narcoguerrilhas). Ninguém, obviamente esquece o sangue derramado em Kosovo, Bósnia, Iraque, Afeganistão, entre outros países africanos e do Oriente Médio, nas últimas três décadas de Pax Americana.

Mas variáveis internas influenciam na postura da potência revisionista. Dentre elas, o perfil ideológico do governo, a personalidade do governante e o desenho institucional do país, esta capaz de contrabalançar as duas anteriores. Base conceitual da corrente solidarista liberal,  Immanuel Kant defendeu, em A Paz Perpétua, a integração como meio de mitigar o estado de natureza de um sistema anárquico (guerras). "Repúblicas" (democracias) não entram em guerra contra repúblicas por serem intrínsecos a elas freios e contrapesos internos, acrescenta. O Estado de direito se reflete no respeito ao direito internacional. Sob a influência do ideal kantiano, nasceu como antídoto ao passado sangrento entre seus membros a União Europeia. 

Teorias, claro, não são verdades absolutas e apresentam nuances, mas é inegável as semelhanças do cenário internacional atual com o escrito décadas e séculos atrás. Por todo seu histórico, pode soar estranho considerar a Rússia potência ascendente. Contudo, a decadência política e principalmente econômica resultante dos escombros soviéticos na década de 90 destinou ao país papel secundário nas principais decisões mundiais, redigidas sob a ordem unipolar norte-americana. Putin foi eleito prometendo recuperar um protagonismo considerado como predestinado ao gigantesco país, que, embora apenas a decima economia do mundo, é a segunda maior força armada e dona do maior arsenal nuclear. 

Além de um autocrata que controla imprensa, Legislativo e Judiciário, Putin é moldado no nacionalismo expansionista pan-russo, de inspiração czarista, e na tradição realista de relações internacionais, segundo qual o sistema internacional é um jogo de soma zero e os Estados, atores unitários nesse palco.  Ao contrário do solidarista liberal, que crê na prosperidade mundial como fruto do livre comercio e de instituições e normas que restringem atitudes unilaterais e estimulam a cooperação, o realista vê esse sistema como uma incessante busca por recursos de poder ( power politics) , necessários para preservação da segurança do Estado ( o "interesse nacional"). É a lei do mais forte.

O atual governo russo é assim a tempestade perfeita para a contestação da ordem mundial. A temerosa expansão ao leste da OTAN e a crise decorrente da quebra de promessa ocidental há 30 anos são o retrato de tudo que foi descrito acima. Quando o Kremlin resolve (re) tomar para si o papel que entende ser historicamente de seu direito, interpretando o mundo como multipolar (acrescente-se a China), junto vem a inevitável ideia de que cada potência tem sua área de influência e as outras precisam respeitá-la. O Ocidente apostou alto com sua política de "portas abertas" para aliança transatlântica. Avisos não faltaram à época. Talvez tenha subestimado o tamanho e o tempo da recuperação russa. Moscou agora redobra a aposta.

Porém, o que parece ficar marginalizada em muitas análises é, além do direito de autonomia, a motivação dos pequenos e médios países na definição de suas políticas externas. E nela, a História sempre pesa. Não por coincidência, assim que os russos atravessaram as fronteiras da Ucrânia, os países bálticos (Estônia, Letônia, Lituânia) e a Polônia, por muitas décadas subjugadas por tropas soviéticas e czaristas, logo correram para acionar o artigo 4º do tratado da OTAN: “As partes se consultarão sempre que, na opinião de qualquer uma delas, a integridade territorial, a independência política ou a segurança de qualquer uma das partes estiver ameaçada”.

Também não por acaso, o primeiro efeito da guerra nos Parlamentos e na opinião pública de Suécia e Finlândia foi a volta do debate sobre a adesão à aliança. Imediatamente o Kremlin os ameaçou com "graves retaliações políticas e militares". Dois Estados democráticos, que, ao contrário da Ucrânia, não têm grupo neonazista em seus Exércitos (argumento utilizado para desqualificar o governo de Kiev), tampouco relações etnicamente umbilicais com a Rússia e presença relevante de russófonos em seus territórios. 

A adesão à OTAN ( e à União Europeia), prevista na Constituição ucraniana após ampla aprovação no Parlamento eleito pela população, foi assunto prioritário em todas eleições presidenciais do país há quase duas décadas, razão de crises politicas e rebeliões, sob acusações de influência externa tanto por pró-russos como pró-ocidentais. Zelensky, com todos seus defeitos, venceu, em 2019, uma eleição referendada por órgãos internacionais, com 70% dos votos.

Putin recorre à "indivisibilidade da segurança", termo referente ao Protocolo de Istambul, assinado, em 1999, pelos países da Organização para a Segurança e Cooperação da Europa (OSCE), entre os quais Rússia e os membros da OTAN. Segundo ele, embora o documento defenda que cada país seja "livre para escolher seus arranjos de segurança, incluindo tratados de aliança”,  há a ressalva de que “os Estados não fortalecerão sua segurança à custa da segurança de outros Estados”. É o "dilema de segurança" (o "medo hobbesiano") falando alto: o reforço da segurança de um país implica no aumento da insegurança de outro, gerando uma escalada na corrida armamentista. O que um entende como defesa, o outro compreende como ameaça.

Não se prevê, contudo, o rompimento do direito internacional para suposta defesa preventiva. Ainda mais por se saber que a Ucrânia não seria integrada a OTAN a médio-prazo, conforme Washington reafirmara a Zelensky recentemente, ao contrário do desejado por Kiev. Não eram consensos entre seu membros a adesão e o tempo necessário para sua concretização. Nem cronograma oficial havia. O próprio conflito armado interno no leste do país e a presença militar estrangeira na Crimeia, desde 2014, eram um dos empecilhos. Putin, entre outros tratados e normas, rasgou a Carta da ONU e o Tratado de Budapeste, de 1994, que previa a garantia de preservação da soberania e integridade da Ucrânia por Moscou. Londres e Washington em troca da desmobilização do arsenal nuclear soviético localizado em seu território.
 
Off-shore balances é como se chama a estratégia de uma potência que se alia a países mais fracos vizinhos a outra potência, a fim de equilibrar o poder naquela região. A expansão da OTAN ao leste europeu é a institucionalização desse movimento, que, em tom mais suave, é visto na sustentação política e econômica do regime socialista de Maduro pelo "conservador" Putin e os não raros exercícios militares conjuntos no Caribe. 

Foi sob a mesma ótica que os soviéticos colocaram mísseis nucleares em Cuba na década de 60, momento em que o mundo se viu perto da Terceira Guerra Mundial. Para Havana, era garantia de que a ilha não seria invadida. Os que hoje relativizam a invasão russa certamente criticariam, à época, uma resposta militar concreta de Washington em sua área de influência. A diplomacia venceu. A tentativa de invasão da Baía dos Porcos um ano antes, quando Kennedy buscou derrubar o regime de Fidel Castro, aliado de Moscou, mereceu, com razão, o repúdio de quem defendia a autonomia cubana, ainda que fizesse sentido do ponto de vista do realismo norte-americano.

Impérios, sejam os territoriais como os não territoriais, veem seus vizinhos menores como satélites, cujos interesses e escolhas são secundários. Poderiam, por isso, reagir da forma que lhes convir caso se vejam ameaçados. Quem se diz anti-imperialista, contudo, jamais deveria contemporizar com a interpretação realista de que é compreensível a invasão por potência nuclear de quem insinua sair de sua área de influência. O militante de setores da esquerda brasileira, por exemplo, talvez nem perceba os riscos de sua contradição. Acaba por legitimar reações passadas e futuras de quem prefere hoje culpabilizar, os Estados Unidos, em sua principal área de influência, a América Latina - o que não significa ignorar as hipocrisias e erros da política externa norte-americana.

Em 1916, Lênin disse a respeito da I Guerra Mundial: "Nem a Rússia, nem a Alemanha, nem qualquer outra grande potência tem o direito de alegar que está travando uma "guerra de defesa"; todas as grandes potências estão travando uma guerra imperialista, capitalista, uma guerra predatória, uma guerra pela opressão de nações pequenas e estrangeiras". Alguém ainda consegue ver na Rússia algum traço da "pátria" propulsora da revolução socialista internacional? O governo de Putin é o oposto: um regime de natureza plutocrática e limitado sistema de bem-estar social, permeado de reacionarismo político e cultural. O antiamericanismo patológico cega.

Ao invadir a Ucrânia, Putin gritou: "Tio Sam,  o mundo não é mais unipolar. A Mãe Rússia voltou". Quando vai além das regiões separatistas ucranianas e lança uma guerra total, reaviva as piores lembranças dos vizinhos. A exigência de desarmamento total de um país independente como condição para encerrar as hostilidades desnuda suas pretensões para além da contenção da OTAN. A ordem internacional liberal, em processo de deterioração com o retorno dos nacionalismos e o enfraquecimento da cooperação multilateral e da integração regional nos últimos anos, sofreu mais um baque. Desta vez, o tiro acertou seu peito. O que se colocará no lugar vai depender do que acontecer na Ucrânia.
 
A vantagem do agressor é a surpresa; a do agredido, o tempo, ensina qualquer teórico de guerra. Quanto mais demorar o conflito, maiores os custos para o Kremlin, mesmo que se atinja vitória militar. Não se sabe as consequências do armamento da população civil ucraniana após eventual conquista de Kiev ou queda de Zelensky. Exemplos não faltam sobre os riscos para a estabilidade futura do país e da região. Tampouco o impacto das fortíssimas e incomparáveis sanções impostas pelo Ocidente sobre uma economia que apresenta fragilidades estruturais, excessivamente depende do oscilante setor de energia. A interdependência econômica inibe guerras, afirma o solidarismo liberal. E graças a ela, o realista Putin pode ver a estabilidade política interna, conseguida com mãos de ferro nos últimos 20 anos, ruir. Ou será que, em um perigoso círculo vicioso, a reação ocidental recrudescerá o ressentimento de parcelas da sociedade russa? 

A moribunda OTAN parecia não ter razão de ser. Putin não só lhe deu uma como a tornou mais coesa e possivelmente mais ampla. Mesmo não integrantes, Suécia e Finlândia concordaram em participar da ajuda militar à Ucrânia. Sondagens de adesão se somam a mudanças de paradigmas históricos da Alemanha, tradicionalmente avessa à enviar armas para conflitos e, devido ao fortes laços com a economia russa, resistente a maiores sanções a Moscou. Mais do que concordar em suspender Moscou do sistema SWIFT e destinar mais de mil lança foguete e mísseis ao país invadido, anunciou aumento nos gastos com defesa nos próximos anos. 

O rompimento alemão com a política de restrição bélica de mais de meio século, decorrente dos traumas nazistas, ganha ainda maior simbolismo por estar o ministério das Relações Exteriores sob o comando dos Verdes, partido de forte DNA pacifista. "O ataque russo marca uma mudança de era", justificou o primeiro-ministro alemão. Tão sintomático quanto é a declaração conjunta dos presidentes de Bulgária, República Tcheca, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Eslováquia e Eslovênia pedindo a aceitação imediata, em processo excepcional, da Ucrânia na União Europeia. Países do leste europeu, notem novamente.

Putin faz questão de ignorar a necessidade de legitimidade para alterar ordem, como a própria teoria da transição de poder menciona. Sob qualquer ângulo, falta-lhe o atributo quando lança mão de uma guerra total e unilateral, iniciada à revelia do dispositivo de defesa coletiva da ONU. Periga ver-se isolado. Até a Pequim, que afirmara semanas atrás não haver limites para cooperação com Moscou, preferiu se abster na resolução que condenaria a invasão não fosse o veto da própria agressora. Crimes de guerra já estão sendo denunciados. 

Muitos têm interesses e responsabilidades, incluindo Zelensky, com suas posturas erráticas. Não há mocinhos e bandidos, é verdade, e há muitas dúvidas sobre as consequências da guerra. Há, entretanto, duas certezas. Uma é que apenas um ator é o agressor militar. Invadiu o país soberano que afirmara, dias atrás, nunca ter sido um "Estado verdadeiro". Diante de resistência inesperada, sinaliza aumentar o emprego da força e já lançou a cartada da dissuasão nuclear. A outra é que Morgenthau, Waltz e Mearsheimer, os "pais" do realismo, vibram, seja onde for. Não esqueçam, não há imperialismo do bem. 

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