terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Jogada de alto risco para Putin

Por Murillo Victorazzo

Ao reconhecer a independência das províncias separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, Putin fez, na segunda-feira, 21, um dos mais estarrecedores discursos de chefes de Estado nas últimas décadas. Foi além de contestar o governo estabelecido do país vizinho ou defender-se da expansão da OTAN em direção a suas fronteiras. De forma não tão sutil negou o direito de existência de um país soberano, em inquestionável rompimento com o direito internacional, a partir de interpretações históricas. 

"A Ucrânia nunca foi um Estado verdadeiro", disse em cadeia nacional de televisão. Uma frase com uma dedução implícita: se um país é artificial, não há motivo para respeitar sua soberania. Simpatia ideológica alguma deveria ser tentar negar a gravidade da afirmação. Remeteu-nos a líderes de séculos passados que evocavam para si o direito de (re)desenhar fronteiras sob argumentos que lhes convinham. Ou, guardadas as proporções, ao terrorismo do Hamas, para quem Israel não tem legitimidade como Estado, não importa dentro de quais fronteiras. A quebra de promessa feita três décadas atrás pela aliança transatlântica parece apenas ter aflorado sua concepção pan-russa de nacionalismo, inspirada no Império Russo.

A base teórica, contudo, vem de antes dos czares. Vem da Kiev Rus, a medieval federação eslava cujos territórios abrangiam o que hoje é Ucrânia, Bielorrússia e parte do oeste russo. Sua capital era a atual capital ucraniana, o que leva muito russos a considerarem Kiev o berço de seu país. Um nacionalismo calcado assim na união da Grande Rússia (Rússia), Pequena Rússia (Ucrânia) e Rússia Branca (Bielorrússia), com tradições culturais, linguísticas e o cristianismo ortodoxo em comum.

No revelador discurso, Putin voltou cem anos no tempo e aproveitou para reforçar sua política de desconstrução do legado histórico comunista. Disse, em tom crítico, que a "Ucrânia moderna" era resultado da "política bolchevique": "A Ucrânia de Vladimir Ilyich Lenin. Ele é seu autor e arquiteto".

As enfáticas palavras se referiam à autonomia, com delimitações de fronteiras, dada à Ucrânia soviética nos anos pós- Guerra Civil (1917-1922). No entendimento de Lênin, a maneira mais eficaz de atrair elites e camponeses ucranianos para o projeto de industrialização soviético. Alguns privilégios e a manutenção de terras privadas fizeram parte do pacote. O progresso social decorrente reforçaria o Estado multiétnico comunista em detrimento de sentimentos nacionalistas. Afinal, o marxismo prometia um mundo livre de nações. 

No entanto, a fim de defender o "socialismo em um país só", Stálin rompeu com o acordo e esmagou, política e militarmente, inclusive com extermínios em massa, minorias étnicas internas vistas como ameaças ao regime, à época uma gigantesca ilha cercada por imperialistas e capitalistas. Temia ele a cooptação delas por Japão, Alemanha ou Polônia. A consciência nacional de camponeses ucranianos era, para o ditador, ainda mais perigosa por haver na região expressiva minoria polonesa. Apenas com o fim da União Soviética, no início da década de 90, a Ucrânia se viu independente. Hoje o "imperialismo" norte-americano, na forma da OTAN, é a justificativa de Putin.

O líder russo elevou a pressão sobre Joe Biden e aliados. Calculou que os custos das sanções estabelecidas são, por hora pelo menos, menores que os benefícios. Sabe as restrições de um presidente sob freios e contrapesos institucionais, popularidade em queda e forte oposição interna, cenário oposto ao dele. Os Estados Unidos não entrarão em guerra direta em uma região que não é prioritária para sua segurança. Mais de dois terços dos norte-americanos são contra engajamento de porte semelhante. 

Mas Putin, embora visto como grande estrategista (o que de fato é) pode ter apostado alto demais. Até pouco tempo atrás, a OTAN parecia ser uma entidade moribunda, em meio a divisões e dúvidas quanto sua razão de ser. Trump fazia questão de mostrar seu desapreço por ela. Em constante briga com os aliados tradicionais dos Estado Unidos, reclamava que eles não cumpriam metas de investimento em defesa enquanto aumentavam acordos econômicos com a Rússia, como no caso do setor de energia alemão.

Afora as teorias mal esclarecidas e bastante contaminadas pela disputa eleitoral interna sobre sua relações com Trump, a debilidade da OTAN em muito explica por que o líder russo optou por não mostrar suas garras durante aquela gestão. O Kremlin não se via ameaçado. Tampouco é coincidência uma nova ofensiva em meio à curva ascendente do preço do petróleo, assim como em 2008 e 2014, nas invasões da Georgia e Crimeia. Quanto maior a receita acumulada, maior o colchão para amortecer o impacto de sanções.

Biden foi eleito prometendo reforçar os laços ocidentais desgastados pelo unilateralismo do antecessor. A atitude de Putin ajudou-lhe a concretizar o intento. O anúncio do congelamento do licenciamento do enorme gasoduto Nord Stream 2, motivo de dissenso interno no governo alemão até poucos dias atrás, é forte sinal de unidade da aliança. Metade do gás utilizado pela Alemanha vem da Rússia. O empreendimento reforçaria esses laços com a Europa toda. Países neutros como Suécia e Finlândia, esta vizinha à Rússia, viram reavivar em suas opiniões públicas o debate sobre adesão à organização norte-atlântica.

Putin reconheceu o território inteiro das duas repúblicas do Donbass (hoje os separatistas controlam apenas um terço) e fez três exigências a Kiev: renunciar à OTAN, reconhecer anexação Península da Crimeia e a desmilitarização de armas pesadas. Sim, a mesma Rússia que, em 1994, em troca da entrega do arsenal nuclear soviético na Ucrânia (o terceiro maior do mundo à época), prometeu, em acordo com Reino Unido e Estados Unidos, manter a integridade e soberania do país vizinho. As exigências não serão acatadas, pois seriam uma capitulação indireta. Crescem as chances de confronto militar entre os dois países e não limitado àquelas regiões.

Para o Kremlin, o ideal teria sido concretizar o Protocolo de Minsk, enterrado definitivamente após o reconhecimento de independência, ato justificado pela descrença em qualquer consenso diante das hesitações de Kiev. O vácuo legal estava, segundo Putin, permitindo o "genocídio" de cidadãos russos no leste. Foram cruciais para o esfarelamento do acordo a indefinição sobre o tipo de autonomia a ser dada a Donetsk e Luhansk. Uma Ucrânia federalizada, com essas regiões com poder de veto em assunto de defesa, jamais prosseguiria na adesão à OTAN. Contudo, agora, restringir a anexação a essas províncias, sob o eufemismo de "forças de paz", não apenas não interromperá como reforçará a contínua cooperação econômica e militar da Ucrânia com o Ocidente, mesmo que fora da organização.

"Conforme o tempo passar, Moscou terá um vizinho mais forte", adverte Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP. E, acrescente-se, embora retalhado, sem mais separatistas e tropas estrangeiras em seu território, empecilhos a processos de adesão à OTAN. Os incentivos são, portanto, prosseguir até Kiev, ainda que se limite a derrubar o governo pró - Ocidente de Zelensky.  De qualquer maneira, seja ocupação ou deposição, a agressão tenderá a acarretar algum tipo de resistência civil no oeste, norte e capital, tragando possivelmente o pais para uma guerra civil. A Ucrânia pode tornar-se o Afeganistão de Putin.

Ao insinuar estar disposto a redesenhar fronteiras "artificiais", o autocrata russo arrisca-se a ver países que pertenceram ao Império Russo e outros vizinhos correrem para o colo de uma potência mais forte, no caso uma OTAN mais coesa. Tanto através de maior mobilização de tropas e equipamentos nos já integrantes como pedidos de adesão de outros.

Ao contrário do que, às vezes, aparenta-se ignorar, a candidatura não é fruto de coerção, mas sim uma opção estratégica de cada país, resultante de debates políticos internos, com, claro, influências de ambos os lados. Em 2019, por exemplo, a Ucrânia incluiu em sua Constituição, após ampla aprovação no Parlamento, o compromisso de "obter o pleno pertencimento à OTAN e à União Europeia". Gostemos ou não do perfil extremista de alguns parlamentares, uma decisão legítima, legal e soberana. Uma escolha em que traumas de subjugações passadas pesam muitas vezes.

Putin provavelmente conseguirá de algum modo afastar a Ucrânia do Ocidente. O preço, entretanto, poderá ser alto demais, elevando a tensão no leste europeu de forma permanente e com o inimigo reforçado não muito longe de suas portas, enquanto gere um conflito militar interno de proporções desconhecidas em seu quintal preferido. Considerados grandes estrategistas, Napoleão e Hitler apostaram alto demais coincidentemente também naquelas redondezas, ironicamente, porém, contra os russos. Arrependeram-se eternamente.

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