terça-feira, 23 de novembro de 2010

Obama: o homem certo na hora e no lugar errados?

Por Murillo Victorazzo

Os meses de outubro e novembro foram bastante reveladores sobre a forma de ver o mundo da sociedade norte-americana. Tanto a derrota dos democratas nas eleições legislativas e estaduais como a repercussão do vazamento  de documentos secretos sobre a Guerra do Iraque pelo site WikiLeaks nos deixam a sensação de que o pensamento médio do Tio Sam não se modificou tão significativamente como imaginado - e desejado por muitos - após a eleição de Barack Obama, em 2008.

A vitória de um negro criado na Ásia, com ascendência muçulmana e ideias mais cosmopolitas e liberais, no sentido norte-americano do termo, parecia ser  refletir o enfraquecimento do conservadorismo, fortemente hegemônico nas últimas décadas no país. A tragédia da gestão Bush teria levado a população não só à bancarrota, mas também a um processo de realinhamento ideológico. Ao elegerem um político de roupagem e conteúdo novos, estariam dispostos a ver o mundo e a sua relação com ele de outra maneira.

Quase dois anos depois, porém, a forte oposição interna a Obama deixa à mostra o grau de otimismo inserido naquelas análises. Mais do que isto,  ao contrário do suposto, são concretos os sinais de recrudescimento da direita naquela sociedade. Certas ações do democrata, vistas até como "socialistas" pelos adeptos desta corrente, parecem ter servido, se não para expandi-la, para mobilizá-los.

Não é a derrota nas eleições de novembro em si que confirma esta ebulição. Como em qualquer outro país, foi essencialmente a debilidade da economia que derrotou Obama. Embora a crise tenha sido estourada no governo anterior, a lenta recuperação, após os bilionários aportes financeiros a empresas e bancos, indigna a população. Lá como cá, ela quer resultados rápidos. Não há espaço para culpar antecessores ou pedir paciência, na espera dos esperados efeitos das medidas implementadas.

Obama sabia que a anemia econômica do país tinha tudo para prejudicar a oxigenação pretendida na Casa Branca. Mas, para a parte do eleitorado mais liberal e centrista, sua figura renovadora estimulou esperanças desproporcionalmente maiores do que a realidade. Seus discursos, já como presidente, nos quais admitia uma situação pior do que a imaginada foram como baldes de água gelada para estes setores.

Por outro lado, os eleitores republicanos, que já não simpatizavam com Obama, não se furtaram em logo demonstrar seu regozijo com as dificuldades enfrentadas por ele. E enfureceram-se com a aprovação da reforma do sistema de saúde. Promessa de campanha e provavelmente a maior vitória do democrata nesses dois anos, a reforma foi satanizada pelos conservadores. Seria a ponta do iceberg socialista. Assim foi vista também reformas que reforçaram a regulamentação do sistema financeiro. Na cabeça deles, uma maior ação do Estado é um tiro nos ideais libertários dos Founding Fathers.

A este cenário, juntou-se as negociações para fechar o presídio de Guantánamo, a pressão para Israel congelar os assentamentos na Cisjordânia, o início de reaproximação com a Rússia e os primeiros passos para a retirada do Iraque. Se, por um lado, a guinada na política externa não foi tão aguda como esperada pelos democratas mais à esquerda (em muito devido exatamente ao complicado cenário interno), tais ações são vistas como "ameaça à segurança nacional". Ainda que o tema seja sensível a todo norte-americano, os conservadores conseguem interpretá-lo de modo ainda mais obtuso.

Antipática a Obama desde antes de sua eleição, esta parcela da sociedade norte-americana insinua dizer que, outro presidente, talvez, merecesse complacência diante da horrível conjuntura. Mas ele, o negro "muçulmano" liberal, jamais! Com este, que se diz diferente, a tolerância é zero. Não é difícil de perceber como o conservadorismo impera no imaginário médio do país, excetuando os estados da costa oeste e nordeste, como Califórnia, Nova York e Massachusets. Basta lembrar que o candidato republicano Jonh McCain, mesmo enfrentando o ônus da gestão Bush, obteve 48% dos votos populares.

Este cenário político-econômico acabou por revigorar um ultraconservadorismo que se aglutinou e ganhou espaço na mídia sob o movimento do Tea Party. Com a ex-candidata a vice-presidente Sarah Palin à frente, este grupo obscurantista, que prega até o ensino do creacionismo nas escolas e deixa perplexo até republicanos mais moderados, conseguiu eleger representantes para o Congresso. Obama, para eles, é a antítese de seus dogmas.

Outro sinal de como os Estados Unidos ainda são, em sua essência, um país voltado para dentro, pouco cosmopolita, foi a reação da imprensa ao vazamento de quase 400 mil documentos da Guerra do Iraque pelo WikiLeaks. Os papéis detalham um balanço parcial de cerca de 109 mil mortos, 66 mil dos quais civis. De 832 pessoas mortas em postos de controle dos Estado Unidos, apenas 120 eram supostos insurgentes. Vídeos e fotos de inimigos rendidos e civis indefesos executados se somam a manuais de tortura.

Um arsenal de revelações deste porte deveria levar a, no mínimo, reportagens que aprofundassem, detalhassem, o caso. Sociedade e imprensa não devem se revoltar apenas com casos de corrupção. Injustiças e mortes de civis causadas por mentiras são tão ou mais graves. No entanto, como mostra a revista Carta Capital, em matéria de Antonio Luiz Costa, os principais jornais do país preferiram dar espaço à desconstrução da personalidade do editor-chefe do site, o australiano Julian Assange.

Embora criticável, não chega a surpreender que a emissora FoxNews, caixa de ressonância das retóricas anti-Obama e pró-política externa da Era Bush, tenha dito em editorial que os funcionários do site devem ser considerados "combatentes inimigos" e submetidos a "ações não judiciais". Do mesmo modo, ela dar espaço para deputados republicanos pedirem pena de morte para um analista militar de 22 anos suspeito de participar do vazamento dos documentos.

Mas é um tanto inesperada e sintomática a postura do Washington Post, The New York Times e CNN, veículos tradicionalmente refratários aos oráculos direitistas. Ao publicarem artigos em que se coloca em dúvida a saúde mental de Assange e o acusam de violência contra mulheres, nivelaram-se às retóricas de políticos como Palin. Depois de entrarem na paronóia ufanista pós-11/9 e apoiarem a invasão ao Iraque, em 2003, tinham iniciado um processo de autocrítica, posicionando-se a favor da retirada das tropas defendida por Obama. Agora, parecem ter tido uma recaída.

O Post, diz a Carta Capital, chegou a afirmar que o WikiLeaks "não é organização noticiosa, mas empresa criminosa" e a exigir que Assange fosse preso antes de "causar mais danos à segurança nacional". Em editorial, minimizou o escândalo, afirmando que "os documentos demonstram que a verdade sobre o Iraque já havia sido contada". Para o jornal, o "enfoque" de Assange "produz pouca luz, mas causa grandes danos".  Já o Times, da cosmopolita Big Apple, num exemplo de jornalismo seletivo e enviesado, manchetou: "Detidos se deram pior nas mão de iraquianos, dizem arquivos".

Sem entrar em suposições de possíveis interesses não muito nobres, o posicionamento da mídia norte-americana nos mostra que, em momentos delicados, o vulcão conservador ufanista sempre entra em erupção naquelas terras.  Por mais progressista que alguns setores possam querer parecer, acabam por defender táticas maquiavélicas em nome de um nacionalismo raso.

É em meio a uma sociedade com este DNA que surge um político como Obama. Sua ascensão é um fato histórico repleto de paradoxos. Chegou à Casa Branca sob duas guerras polêmicas e a diminuição do prestígio e do poder relativo perante o mundo. Foi, porém, a maior crise econômica desde a Depressão de 1930, mais do que qualquer outra razão, que o levou a vitória. Sem ela, sua eleição seria impensável. A maioria da sociedade não se permitiria arriscar tanto votando em uma personalidade com ethos tão diferente de si própria em um cenário de relativa calmaria.

Esta mesma crise, que exige tempo e capital político que poderiam ser gastos em inflexões maiores, volta-se agora contra ele, enfraquecendo-lhe e dando maioria aos republicanos na Câmara dos Representantes. Sua vitória, em 2008, que poderia refletir mudanças de paradigmas no norte-americano médio, com a centro-esquerda ganhando espaço, parece ter catalisado efeito inverso.

O novo tabuleiro, certamente, o fará negociar mais com a oposição, obrigando-o a abandonar qualquer projeto de cunho mais reformista, tanto internamente como em sua política externa. Arriscar-se-ia a se dissociar ainda mais do pensamento médio de seus compatriotas, diminuindo ainda mais as chances de obter um segundo mandato, em 2012.

Sem querer santificá-lo ou eximi-lo de eventuais erros ou contradições no exercício do cargo, é inegável que Obama tem todas as credenciais para revigorar a Casa Branca. Algumas de suas decisões corroboram a afirmação. Elas, porém, não foram reconhecidas por boa parte da população, o que deixa no ar a sensação de que ele é o homem certo na hora errada. E, talvez, até no lugar (país) errado.

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