domingo, 17 de abril de 2011

Reforma Política e Stanislaw Ponte Preta: das polêmicas ao samba do crioulo doido, da jabuticaba às nossas besteiras

Por Murillo Victorazzo

Defender a reforma política tornou-se o mantra de todo início de legislatura no Brasil. Não há um parlamentar que não diga ser entusiasta dela. O que mudar, porém, está longe de ser consenso. Neste contexto, o mês de abril serviu para evidenciar a complexidade prática da questão. Enquanto a Comissão especial do Senado para o tema entregava seu relatório, com propostas que ainda merecerão muita discussão no Congresso, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, lançava o mais novo partido político do país, o Partido Social Democrático (PSD).

Entre as propostas mais relevantes aprovadas pela comissão especial, uma mudança que transformaria sensivelmente o quadro político, está adoção do voto em lista fechada nas eleições para deputado (estadual e federal) e vereador. O eleitor passaria a votar somente em uma legenda, e não mais em um nome preferido. Proporcionalmente aos votos obtidos, o partido conquistaria um determinado número de cadeiras, que seriam ocupadas por nomes previamente incluídos numa lista fechada e ordenada, definida pelos diretórios.

É certo que muita discussão ainda virá sobre o assunto até a votação (se houver) em plenário no Senado e na Câmara. Mas alguns especialistas e políticos acusam este sistema de fortalecer a cúpulas partidárias, já que seriam delas o poder de escolher e ordenar os nomes da lista, em detrimento da democracia interna. Além disso, o povo deixaria de ter o direto de escolher especificamente o seu candidato. Muitos destes críticos são favoráveis à adoção do voto distrital (misto ou puro). Neste modelo, as eleições para estes cargos passariam a ser majoritárias, assim como é para os Executivos e o Senado. Os estados seriam divididos eleitoralmente em distritos, com o candidato mais votado de cada um sendo eleito o seu representante.

Como não poderia deixar de ser, há tantos outros que se opõem ao voto distrital. Argumentam, entre outros motivos, que a plataforma dos deputados ficaria restrita a atendimento de necessidades cotidianas locais, semente das barganhas clientelistas. E que políticos com eleitorado espalhados por todo o estado tenderiam a perder espaço. Entre estes, destacam-se os chamados "candidatos de opinião", aqueles que se notabilizam em debates nacionais complexos, com propostas de políticas públicas e visões de mundo  mais encorpadas. Seria, assim, a "paroquialização" ou "vereadorização" dos deputados.

Rejeitado enfaticamente por cientistas políticos, outro modelo, o chamado "distritão", é defendido principalmente pelo PMDB. Com ele, seriam eleitos os candidatos mais votados, independentemente do desempenho de seus partidos. Para tais especialistas, o sistema representaria um retrocesso democrático. Enfraqueceria os partidos e criaria o hiperindividualismo na representação popular, com a eleição dos que têm mais recursos financeiros ou de personalidades.

Segundo estes especialistas, a única vantagem do "distritão" - que é ser de simples explicação - é justamente o motivo de maior receio. O senso comum veria esta simplicidade como algo bom, até mesmo porque muitos acreditam já ser assim a escolha de nossos parlamentares. Ignoram a existência do quociente eleitoral, utilizado exatamente para dar relevância às legendas.

A busca pelo fortalecimento dos partidos políticos, entes fundamentais em qualquer democracia representativa séria, é o principal argumento dos defensores da lista fechada. Ao ter que optar por uma legenda, o eleitor necessariamente passaria a prestar mais atenção aos discursos partidários. Por outro lado, para se difundirem e se diferenciarem claramente, as siglas teriam que deixar de ser apenas siglas e fortalecer seus programas partidários com conteúdos e propostas claros.

Sabe-se fartamente que a representatividade das legendas perante a população, salvas raríssimas exceções, é muito débil. A falta de nitidez ideológica e programática delas é, contudo, a grande causa deste fosso. Mas será que o melhor meio de mudar a situação uma transformação de cima para baixo, como seria com a adoção da lista fechada? Ou o processo terá que ser necessariamente lento, de longo prazo, de baixo para cima?

Pela segunda hipótese, os partidos deveriam, primeiramente, adquirir recheio teórico para merecer a confiança da população, que, aos poucos, iria optar por uma ou outra, de acordo com sua percepção de mundo e seus interesses. Os grandes partidos norte-americanos e europeus ganharam seus adeptos no decorrer de décadas e até séculos, corrigindo e atualizando seus ideais de acordo com as transformações estruturais ocorridas na história. Em defesa dos nossos partidos, ressalte-se que os do primeiro mundo não foram cerceados por ditaduras, tendo existências longas e ininterruptas.

De todo modo, o cenário nacional é desalentador. O PT pode ser considerado a espécie brasileira mais parecida com o que se conceitua como partido político. Tem organização, militância e algum tipo de identidade, ainda que ela tenha sofrido metamorfoses éticas e ideológicas ao assumir o poder federal, em 2003. Os votos de legenda recebidos nas últimas eleições e diversas pesquisas mostram que é a sigla com maior número de eleitores simpatizantes.

Ainda que as benesses de ser protagonista de um governo altamente popular tenham alavancado estes números, já na oposição os petistas sinalizavam consistência orgânica. Seus militantes, por sinal, eram mais apaixonados e idealistas do outro lado da trincheira do que agora. Perderam alguns discursos, mas não a eloquência. Por outro lado, o PT também se tornou o que mais suscita antipatias. Tal grau de polarização, aliás, é mais um sinal de força e consistência, algumas das virtudes que o alçaram ao posto de maior partido de massa da América Latina.

PSol e PSTU também possuem razão de ser, com militância e ideologias claras. Sua capilaridade na sociedade, porém, é muito limitada, tanto por deficiências funcionais como pelo que é visto, por grande parte do eleitorado, como pensamento anacrônico.

As demais legendas não conseguem reunir todos os requisitos necessários para se intitularem portadores organizados de bandeiras. O DEM, embora tenha algum verniz ideológico, continua tímido em se assumir como é: um partido de direita, ou centro-direita. Além disso, militância e democracia interna nunca foram seu forte, desde o tempo da antiga Arena. Já o PSDB, maior partido de oposição, com quadros intelectuais reconhecidos, vive uma aguda crise existencial e não consegue falar aos corações de setores da sociedade. Em sua grande maioria, os que se dizem simpáticos aos tucanos hoje o são mais pelo ângulo do anti-petismo do que por crer em suas ideias.

De início, sob a liderança de Kassab, a adesão da senadora Kátia Abreu, líder dos ruralistas, do vice-governador paulista, Afif Domingos, e de outros políticos demistas, poder-se-ia supor que o PSD vinha para ocupar explicitamente o posto de partido da direita nacional. Desde a redemocratização, em meados da dácada de 80, este nicho encontra-se vazio, e se autointitular direitista no país tornou-se um tabu. Além da imagem vinculada à ditadura e ao coronelismo nordestino, este campo político ainda é visto mais como bastião do conservadorismo moral do que como defensor do liberalismo econômico. Tal percepção tem seus motivos: certos políticos defendem ainda defendem teses que nos remetem àquela fúnebre época.

Seria positivo para a estrutura partidária nacional que o PSD surgisse como o representante  de uma direita moderna, liberal. Lembremos que Afif foi candidato a presidente, em 1989, pelo extinto Partido Liberal (PL). No entanto, declarações dos fundadores não indicam este caminho. Kassab afirmou que a sigla não será de direita nem esquerda. Kátia acrescentou que tampouco será governo ou oposição. "Votaremos a favor do Brasil", disse ela. O velho clichê para justificar a falta de projeto político.

Na verdade, ainda que a maior parte dos políticos detentores de mandato do PSD tenha saído do DEM, outros vieram dos mais variados partidos - como o , em tese, centro-esquerdista PPS. Enfim, um saco de gatos que parece se juntar a PMDB, PP, PTB e outros menores no clube dos agrupamentos amorfos fisiológicos e das válvulas de escapes para grupos regionais e ambições pessoais de curto-prazo. O Palácio dos Bandeirantes é a fixação atual de Kassab.

Peculiar pela artificialidade, muitos de nossos partidos se tornam ainda mais estranhos quando comparamos o significado de seus nomes com sua atuações práticas. Aqui, um partido social-democrata (PSDB) nasceu, para espanto de seus homólogos europeus, sem base operária. Tanto o SPD alemão como o Partido Trabalhista britânico, entre outros, tiveram na militância sindical seu principal reduto eleitoral. Não bastasse quererem praticar social democracia sem trabalhador, os tucanos ficaram com a pecha de partido da elite paulista. Nada mais conservador. E, se não são um partido de direita, hoje são vistos como o refúgio eleitoralmente  mais viável pelo eleitorado direitista ou centro-direitista. Aqueles que defendiam uma aliança com o PT, no mínimo, a longo prazo, por suas semelhanças históricas, devem estar fazendo uma releitura de suas análises.

No mesmo rastro das esquisitices, o Partido Progressista (PP) reúne muitas das principais vozes do conservadorismo brasileiro e, praticando o arcaico fisiologismo, participa de um governo liderado pelo PT. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tão fisiológico quanto, longe está de defender os ideais getulistas. Não faz muito tempo, seu líder na Câmara era um dos principais comandantes da bancada ruralista. O que tem a ver Roberto Jéffersom com Vargas?

Para completar, nem os partidos comunistas escaparam da esquizofrenia oportunista. Oriundo do antigo PCB, o Partido Popular Socialista (PPS), de início, foi reformulado para ser a voz de uma esquerda moderna e democrática. Hoje é oposição ao governo petista, junto com o PSDB e o DEM, o filhote da Arena. Pelo visto, no Brasil, neoliberais e socialistas parecem ter mais pontos em comum do que diferenças...Contudo, nada é mais surpreendente do que ver o PCdoB, através de um de seus principais deputados, Aldo Rabelo, produzir um relatório favorável aos ruralistas no debate sobre o Código Florestal. E este mesmo partido, de integrante fiel da administração petista de Marta Suplicy, passar a integrar a base governista de Kassab na prefeitura paulistana.

Os históricos de Kassab, Kátia e Afif pouco têm de causa social. Os partidos por quais passaram, menos ainda. Pensando bem, se desejassem levantar a bandeira do liberalismo econômico, deveriam mudar o nome da nova casa. Em defesa deles, porém, o fato de não serem, como visto, os únicos a exercerem contradições.

Por terem pontos positivos e negativos, a escolha do sistema eleitoral é, por si só, delicada. Tanto que há exemplos de lista fechada e de voto distrital em diversos países desenvolvidos. O "distritão", ao contrário, é utilizado apenas em meia dúzia de países subdesenvolvidos da Ásia e África. Este parece mesmo ser uma aberração. No entanto, visto as peculiaridades de nossos partidos, o que é polêmico pode se tornar inútil. Podemos, para amenizar certos defeitos, acabar potencializando outros. Uma triste equação de soma zero.

Stanislaw Ponte Preta dizia que "tudo que só existe no Brasil e não é jabuticaba é besteira".  Seria injusto afirmar que as anomalias de nosso arcabouço partidário é mais uma prova da veracidade da frase. Muitos outros países, em especial os que não têm longas sequências de história democrática, sofrem deste mal. O mesmo Stanislaw, porém, assinaria embaixo como um légitimo "samba do crioulo doido" o quadro atual.

Por hora, não sabemos se a lista fechada é o melhor meio para corrigir os absurdos do modelo vigente e enraizar os partidos na sociedade. Contudo, debater é um bom início. O pior dos cenários será não se votar nem discutir nada. Caso isto aconteça, aí sim, nossos partidos serão cada vez mais "besteiras", dizer-se a favor da reforma política não passará um bobo clichê e nem o "crioulo doido" curtirá tal samba atravessado.

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