domingo, 19 de junho de 2011

Uma ótima razão para ler

Por Murillo Victorazzo (resenha escrita em 2003, ainda na faculdade, revisada recentemente )

O marcante papel  de Samuel Wainer na imprensa brasileira é notório para todos os envolvidos na área. Entretanto, muitos dos que não conhecem em detalhes sua trajetória, ao lerem Minha Razão de Viver – Memórias de um repórter, se surpreenderão com o alcance de seu protagonismo - não só na história de nosso jornalismo como na de nossa política. “Eu teria a chance de ser, além de testemunha, um protagonista da Historia”, diz ele no livro, uma reunião das memórias ditadas pelo próprio em 53 fitas às vésperas de sua morte.

Repleto de confissões, ironias e críticas a diversas personalidades da política e dos meios de comunicação nacionais, o livro conta como um judeu pobre do bairro paulista do Bom Retiro se tornou dono-fundador de um dos maiores jornais do país nas décadas de 50 e 60, a Última Hora. Narra antes a evolução da brilhante carreira  de Wainer. Pela Diretrizes, revista que marcou época nos anos 40, ele foi o único jornalista brasileiro a cobrir o Tribunal de Nuremberg e a criação do Estado de Israel, em 1948. Histórias de reportagens suas com forte repercussão no Brasil e na Europa, como, por exemplo, as que fez sobre a ditadura de Francisco Franco na Espanha, também são esmiúçadas. 

Mas são os pormenores de sua amizade com os presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart e a consequente aproximação do círculo íntimo do poder federal, o que mais chama a atenção. Extravasando sinceridade e sem falso moralismo, Wainer nos revela os bastidores da política, os motivos que o levaram a fundar seu jornal e os ideais que aí existiam. Com humildade, conta-nos as fases boas e ruins de sua vida profissional e pessoal - o “céu” e o “inferno”. Lembra detalhadamente não só os momentos em que foi bajulado por ser amigo do presidente e ter em mãos uma “arma” chamada Última Hora como também as crises financeiras, a acusação de falsidade ideológica que o levou a prisão em 1955, as humilhações sofridas e a venda do jornal.

Nas 282 paginas do livro, o leitor se depara com constantes autocríticas e confissões. Wainer, por exemplo, afirma que criação do semanário Flan foi um “erro político”. Mostra também arrependimento pela compra da então Rádio Club, embora tente se justificar alegando que “sempre foi um aventureiro, e um aventureiro é, por definição, um otimista”. Demostrando franqueza, admite que via e sabia de muito dos tráficos de influência existentes, dos negócios de “cartas marcadas” e das relações delicadas entre empreiteiros e os governos que apoiou (os dos seus três amigos). E surpreende ao revelar que sempre que algum negócio lhe beneficiava, o dinheiro era integralmente aplicado no jornal. “Nunca quis nada para mim”, diz.

O livro começa no encontro do jornalista com Getulio Vargas, recém-eleito presidente da Republica, em 1950. Os dois tinham se conhecido havia pouco mais de um ano. Segundo ele, em meio a uma viagem ao Rio Grande do Sul para fazer uma reportagem sobre trigo,  “pressentira " que o ex-ditador, exilado em sua fazenda, estava pronto para anunciar sua volta à vida política. É partir deste momento que a vida profissional de Wainer ganha novos contornos.  O mesmo político que o havia censurado na ditadura do Estado Novo se tornaria seu amigo intimo. Por todo o livro, o sentimento de amizade, afeto, respeito e admiração por Vargas está presente. “Éramos amigos e, eventualmente, cúmplices. Ele, às vezes, me comovia com preocupações paternais”, recorda-se.

Em outro trecho, diz: “A campanha (presidencial de 1950) me revelara Vargas por inteiro. Compreendi, entre outras coisas, que conhecera o primeiro líder burguês da Historia do Brasil a conseguir efetiva comunicação com o povo. As classes conservadoras não souberam captar tal fenômeno e por isso o mataram. Quando o país perdeu Getúlio, o capitalismo brasileiro perdeu seu grande defensor. Se hoje estivesse vivo, ainda estaria fazendo composições, aparando arestas, conciliando. Porque essa era a natureza de Getúlio Vargas”.

Dessa relação, surgiu a Última Hora. Sem medo de parecer um jornalista “vendido” ao governo, Wainer admite que a fundação do jornal tinha como objetivo dar sustentação ao governo Vargas. Era, para ele, um momento em que todos os outros meios de comunicação faziam questão de ignorar a existência daquela administração. “Ao chegar ao Palácio, constatei, espantado, que, além de mim, só um repórter da Agencia Nacional subira a serra (para cobrir a primeira reunião ministerial). Percebi que a imprensa decidira fechar o cerco a Vargas através da conspiração do silêncio”. Aliado ao desejo de ter o seu próprio jornal, o intuito era levar as ideias do getulismo às massas. “Estava evidente que a Útima Hora seria um jornal marcadamente político e favorável a Getúlio, embora pronto a criticar membros do governo”.

Mais desconcertante ainda é a confissão de que sempre escondeu, até nas sessões da CPI feita para devassar o jornal, ter havido realmente um pedido presidencial para que criasse o jornal. O pedido, entretanto, viera implicitamente em forma de pergunta: “Por que tu não fazes um jornal?”, indagou-lhe Vargas. As conseqüências desse triângulo Wainer-Última Hora-Vargas viriam a nortear a sua vida.

O ódio que Carlos Lacerda nutria por ele é outro ponto destacado em Minha Razão de Viver. Os duelos verbais travados violentamente através da Última Hora e da Tribuna da Imprensa são relembrados em tom nada arrependido, ainda que, no início, Wainer  pareça tentar entender as razões de uma amizade de juventude ter resultado em tamanha antipatia. Basta destacar que foi ele o autor do apelido pelo qual o líder udenista ficou notabilizado: "o corvo".

Segundo ele, o anti-getulismo de Lacerda fez com que a rivalidade se transformasse numa “guerra sem quartel, sem tréguas, sem limites”. O objetivo de seus inimigos - destruir a Última Hora - não seria alcançado sem que ele fosse destruído. Por isso, “as agressões pessoais não conheciam fronteiras”, diz, confessando, porém, que revidava agressivamente também. Lacerda, porém, não foi o único inimigo de Wainer. Assis Chateaubriand, que chegou a ser seu chefe, merece  “elogios” como gangster, ladrão e autoritário. A aliança entre seus desafetos, aliás, é tida por ele como o momento em que “o cerco começou a se fechar”. Ao ganhar o abrigo da TV Tupi de Chateaubriand, o udenista tornou-se um inimigo muito difícil de derrotar.

É, contudo ao recordar a acusação de não ser brasileiro que Wainer mais expõe seus sentimentos. Mesmo décadas depois é fácil notar a mágoa, a tristeza e o inconformismo com o fato: “...sucediam-se manchetes sempre agressivas: ‘CONFIRMADO: WAINER NASCEU NA BESSARABIA’; ‘AFINAL, PORQUE ELE QUER SER BRASILEIRO?’; ‘WAINER CHEGOU AO BRASIL COM DOIS ANOS.’ Assis Chateaubriand nessa campanha não poupou esforços para destruir-me.” Tal período, que culminou com sua prisão por falsidade ideológica em 1955, foi certamente um dos mais difíceis de sua vida. Na mesma época, em agosto de 1954, seu amigo e líder viria a se suicidar. A conjuntura negativa e seu forte impacto político  financeiro nos levam a antipatizar com a figura de Lacerda e seus aliados.

A tristeza é perceptível ainda no episódio da venda da Última Hora para um grupo de empreiteros, em 1972. A sua “razão de viver”, como ele chamava o jornal, já agonizava diante das dificuldades impostas pelo AI-5. Ele, que, após quatro anos de exílio em Paris, voltara em 1968, lamenta não poder sustentar mais aquilo que fora a realização de um sonho. Todos os seus ideais e pensamentos nacionalistas não tinham mais espaço para divulgação. Tudo estava nas mãos de pessoas que em nada representavam a linha editorial original de um jornal, que, de fato, foi revolucionário e pioneiro. Era, para ele, o fim de sua grande aventura, “o desfecho de um capitulo importantíssimo da historia do jornalismo brasileiro.”

Além das excitantes disputas políticas que narra, Wainer - acima de tudo, um excelente jornalista - deixa diversas mensagens para os profissionais e estudantes da área. Pelo livro, há frases que devem não ser esquecidas por quem pretende ter sucesso na carreira. “Um jornalista precisa viver na eterna expectativa de que pode viver situações que não ocorrem em outras profissões” e “quando se é correspondente de guerra, convém entender que o imponderável viaja permanentemente em nossa companhia, pronto para alterar planos e destinos” são alguns exemplos.

Wainer consegue agradar até aqueles que adoram de falar mal da imprensa. Em momentos de crítica à sua profissão, comenta que “a imprensa era tratada como uma parcela do Olimpo, fenômeno que, aliás, se manifesta ainda hoje e abrange também repórteres.”. “Quando um jornalista leva uma surra, o mundo vem abaixo. Mas a indignação e infinitamente menor se quem apanha é, por exemplo, um líder operário”, acrescenta acidamente.

Independentemente de posição ideológica, o livro é tão apaixonante e intenso quanto a vida do autor e o período da Historia vivido por ele. Crítico, autocrítico, sincero, realista, emotivo e idealista. É daqueles livros que, quando acabamos de ler, ficamos com a vontade de dizer “Quero mais”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário